Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O que esperar da TV brasileira

Do ponto de vista das emissoras de TV, a relação com os seus fiéis telespectadores pode ser traduzida como uma espécie de casamento com pacto de fidelidade eterna e relativamente favorável a um dos parceiros. O negócio é mais ou menos assim: você me aceita do jeito que eu sou, releva meus erros, não me questiona e tudo o que eu fizer deve ser bem compreendido, já que é para a sua felicidade e permanente evolução.

Até aí tudo bem, mas o problema deste tipo de matrimônio é a indissolubilidade da relação, pois, na prática, mesmo quando a gente desliga a TV ela continua ‘passando em nossa vida’ (é só lembrar o slogan do canal GNT). Este fenômeno ocorre com todas as TVs, com toda a programação. Se a gente parar para pensar vai perceber que, por algum motivo, depois de desligados os aparelhos receptores, os conteúdos de fato ficam com a gente.

Sim, é verdade, TV e você… têm tudo a ver! Outro dia mesmo, o ministro Gilberto Gil disse que a TV é capaz de educar. Não é incrível essa descoberta do ministro, ainda que tardia? Vejamos: a Constituição brasileira já diz no seu artigo 221 que a TV deve atender prioritariamente à função educativa. Lembro de uma canção famosa do rock brasileiro em que um dos versos dizia que a TV nos deixou burros, muito burros demais.

Burros ou não, a verdade é que de fato, vira e mexe, a TV mexe com a gente. E mexe com o nosso jeito de falar, de vestir, de votar, de se relacionar, de se alimentar, mexe principalmente com a maneira como percebemos e enxergamos o mundo a nossa volta.

Para além do cancioneiro brasileiro, alguns dados científicos comprovam esta perfeita simbiose entre TV e telespectador: segundo estudos do Kaiser Family Foundation (que nada a ver com a cervejaria brasileira),

** 68% das crianças com menos de dois anos assiste TV ou vídeos todos os dias;

** 26% dos bebês têm aparelhos de televisão no quarto.

Somente levando-se em conta estes números, seria justo afirmar que mais importante do que saber se as crianças de fato assistem é saber que podemos pensar em discutir algum tipo de controle sobre o conteúdo da programação que os pequenos assistem. Isso quer dizer que o Brasil precisará avançar na questão do seu marco regulatório do setor de telecomunicações, que apenas engatinha no que diz respeito à regulação do conteúdo da TV.

Amor e ódio

E mais, precisamos fazer com que pais e professores interajam com as crianças, e não apenas façam uso da televisão na condição de ‘babá-eletrônica’, quando deixam os filhos entregues à própria sorte e às investidas do quase novo brinquedo eletrônico. Investidas que, de qualquer modo, para o bem ou para o mal, estão educando os pequenos desde o berço.

No caso do Brasil isto é ainda mais grave, já que todas as pesquisas nos apontam como campeões mundiais de consumo televisivo na categoria público infantil:

** segundo dados do Ibope, nossas crianças consomem cerca de 3,5 horas diárias – o que têm agravado os índices de obesidade infantil;

** crianças como estas começarão a ler mais tarde, dormirão menos e, muito provavelmente, serão adultos ‘acorrentados’ pela mídia.

Quer dizer, quanto mais TV nós vemos, mais TV nós ficamos.

Cientistas têm dito que os critérios usados para caracterizar dependência química podem ser aplicados a quem assiste televisão em demasia. Polêmicas à parte, o fato é que o brasileiro ama e odeia a TV que consome. Reclama da programação, mas entra semana sai semana lá estamos todos aboletados em frente à TV.

Educação para os meios

E o vício da televisão está aí mesmo, não vai desaparecer tão cedo, e as cargas de drogas televisivas com maior ou menor potencialidade destrutiva, oferecidas nos programas recheados de sexo e violência, não param de ser despejadas por meio de praticamente todos os canais, principalmente os abertos, todas as programações, inclusive aquelas dirigidas a crianças e/ou adolescentes.

Mas será que isto é sério ou seria mais uma das muitas teorias conspiratórias que povoam nosso imaginário midiatizado?

Para começar, devemos nos lembrar dos chamados dispositivos pedagógicos da mídia, os modos de educar na e pela TV e reiterar que a TV também constitui um lugar de formação da sociedade, ao lado da escola, da família, das instituições religiosas, etc. Isto quer dizer que a mídia não somente reúne as ferramentas mais adequadas para a educação de massa, por exemplo, linguagens, formatos etc., mas também tem poder incomparável de alcance e mobilização. É/pode ser a mais completa e poderosa sala de aula do planeta!

Outra discussão fundamental é a questão da educomunicação ou a educação para os meios. Este trabalho já vem sendo desenvolvido em algumas escolas, enquanto disciplina transversal, oferecida a todos os estudantes, desde a educação infantil, e com a participação da família. Acontece que esta prática, ainda muito restrita à iniciativa de escolas particulares, deveria ser encampada pelo Estado em todos os níveis: federal, estadual, municipal.

Mais um slogan

Creio que a educação para os meios pode tornar-se uma espécie de luz no fim do túnel para inverter a passividade dos adultos e, principalmente, a vulnerabilidade das crianças e jovens, frente à ação educadora da TV. A grande verdade é que nós somos o que vemos, lemos, comemos, consumimos, enfim… Um pouco de tudo que apreendemos, permanece conosco de algum modo.

Aí começam as perguntas, os questionamentos: será que capacitar cidadãos a aprender a escolher melhor aquilo que consome é interessante para a maioria dos governantes? O que podemos esperar da TV? Esta a nossa principal pergunta!

Ora, o que podemos esperar da TV? Como utilizaremos as infinitas possibilidades de interação entre emissor e receptor, programadores e telespectadores, governo e sociedade, excluídos e escolhidos, analfabetos e graduados, escola e família, enfim, entre a sociedade e ela mesma? Acredito que quem pode e deve responder a esta questão é a própria sociedade.

Uma questão que me parece importante é a chegada da TV Digital ao Brasil. Daí gostaria de sugerir um tema de debate: os novos legisladores deveriam incluir urgentemente na agenda de discussão parlamentar/governamental o debate sobre conteúdo dos programas de TV e suas conseqüências na educação do povo brasileiro; caso contrário, a nova TV digital seria tão velha quando as valvuladas de outrora, e a revolução pela educação seria apenas mais um slogan de candidatos terceiro-mundistas.

Liberdade de escolha

Vamos pensar o seguinte: de que nos adiantará ter, já no próximo ano, 1.000 canais de TV disponíveis para consumo, se os controladores forem os mesmos e se os conteúdos forem idênticos aos de agora? De que nos adiantará ter acesso à interação se tivermos que interagir com os mesmos programas recheados de sexo, violência, com os mesmos intervalos comerciais abarrotados de propaganda dirigida ao público infantil? Até o momento esta é uma discussão paralisada pelo fato de que parceiros/atores interessados não conseguem entravar uma discussão produtiva. O chamado ‘jogo de soma zero’. Sociedade, Estado/governo, mercado. Cada um fala uma língua; cada um fica no canto do seu ringue, com uma pilha de interesses não-discutidos. A sociedade (e, se possível, arrastando Estado/governos) precisa buscar outras formas de atuação.

É claro que não devemos abandonar o ringue da luta pelo marco regulatório do conteúdo televisivo. Sobretudo aquele que é dirigido ao público infanto-juvenil, inclusive os comerciais. Também não devemos deixar de lado a denúncia dos patrocinadores da baixaria. Mas está claro que devemos buscar saídas (ou entradas!!). E mais:

** a educomunicação é uma grande forma de atuação.

** compreender a TV enquanto educador permanente: precisamos encontrar mecanismos satisfatórios, não-agressivos, para propor a discussão dos conteúdos;

** trabalhar por mais e mais conteúdo regional.

Enfim, ‘o que podemos esperar da TV’ é um questionamento que, certamente, cada um de nós que nos dispusemos a pensar sobre tema de tamanha relevância tem uma resposta que representa uma esperança e uma expectativa. A minha é que possamos lançar mão de toda a capacidade pedagógica da mídia, especialmente da TV, para, a curtíssimo prazo, transformamos esta que se tornou a maior de todas as escolas públicas já criadas pela humanidade num veículo de inclusão social e formação de cidadãos capazes de exercer a maior de todas as liberdades: a liberdade de escolha.

******

Publicitário, diretor e roteirista de programas educativos, autor dos livros Manual do telespectador insatisfeito (Summus, 1999) e Acorrentados, a fábula da TV (Letra Legal, 2006)