Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os bons e os maus policiais

A edição de 21/09/2015 do Jornal Nacional, da Rede Globo, foi encerrada com uma reportagem um tanto “pitoresca”, com forte apelo à emoção do telespectador, “uma história bonita”, segundo a âncora do telejornal, “que fica ainda mais doce contada pela própria aniversariante” – no caso, uma garotinha de oito anos, moradora do morro São Bento, no litoral santista.

Três policiais militares que faziam a ronda pelo local encontraram a menina chorando na rua porque era o aniversário dela e não tinha ganhado nada. Os policiais se comoveram e, com a permissão da família, providenciaram uma pequena festa e um presente para ela, que ficou muito feliz e retribuiu em abraços, já que os policiais “não puderam ficar para a festinha por causa do serviço”. Só levaram uma foto de recordação.

No arremate jornalístico informa-se que a garota mora numa casa alugada com os pais, cinco irmãos, o cunhado e três sobrinhos. O pai é aposentado e a mãe cuida de um filho com necessidades especiais. E nada mais se acrescenta. Ao telespectador, a brevíssima pausa como um respiro de alívio em meio a tantas notícias ruins e pesadas, quem sabe até para enxugar uma lagriminha discreta no canto dos olhos.

De algum modo, sinalizou-se o contexto social em que a família está inserida, moradora de um morro em Santos, talvez até em condições de vulnerabilidade ou sujeita à violência e criminalidade, e atingida, como outras tantas famílias brasileiras, por dificuldades econômicas, mas que ainda pode contar com policiamento e eventualmente com a solidariedade de policiais no exercício de seu trabalho.

A violência como prática sistemática

O pitoresco da notícia talvez não esteja no fato em si, mas na abordagem, no tratamento dado ao conteúdo, na própria escolha de algumas palavras, no tom de voz empregado e na carga subjacente de emotividade, já que não é novidade a estratégia (usual) de encerramento de um noticiário por uma amenidade. A partir disso, espera-se que o telespectador faça suas inferências. E não seria forçoso perguntar-se o porquê dessa condução, uma vez que não parece haver gratuidade nenhuma em tais mecanismos.

O propósito, menos nobre do que possa parecer, ainda que com a demonstração de atitudes solidárias, talvez seja o de uma espécie de pequena redenção (do noticiário em si e da própria corporação representada pelos três PMs) – redenção que significaria resgate ou reabilitação, uma reparação, e que nesse contexto serviria para amenizar a imagem da PM paulista, vinculada a inúmeros episódios de violência, desvio de conduta de policiais, violação de direitos humanos e até execução de suspeitos.

Uma busca simples no próprio portal G1, para ficar apenas no caso paulista, elenca uma série de reportagens nesse sentido, principalmente no último mês, sem contar a suspeição de envolvimento de policiais na chacina de Osasco (em 13 de agosto), além da destituição do comando da Ronda Ostensiva Tobias Aguiar (Rota), sob a alegação de uma “decisão estratégica”.

De certa forma há uma quebra do papel de responsabilidade do Estado (no caso, de uma unidade federativa) no monopólio da violência tida por legítima, quando integrantes de sua corporação militarizada agem fora da lei, à semelhança do que é associado ao mundo da criminalidade, embora já se denuncie o uso abusivo da violência como uma prática sistemática. E nem é preciso perguntar quais as camadas sociais mais atingidas por essa norma.

Polícia merece enfoque mais corajoso e democrático

Procede-se, no plano discursivo, a recortes jornalísticos para a construção de um todo significativo (ou noticioso), na configuração ou sustentação de uma imagética para a manutenção do status quo, da opinião pública, num assunto tão delicado quanto a segurança pública, tendão sempre vulnerável de qualquer governo. Tal recorte se dá quando se busca desvincular os casos de violência policial de uma prática recorrente, num processo de apagamento da imagem da corporação como agente de violência ela própria, senão como resposta ao mundo criminal e, portanto, justificada. Embora nos tribunais das redes sociais facilmente se constate a legitimização de todos os excessos (policiais) e da radicalização de um discurso de ódio ou da justiça pelas próprias mãos, desde que bem delimitados os extratos sociais.

Assim, nesse cabo de guerra discursivo, os desvios de conduta (policial) recairiam unicamente naqueles que os cometeram (sempre exemplarmente punidos), enquanto que os “bons exemplos”, como no caso dos três agentes e a garotinha de Santos da reportagem citada, serviriam para corroborar a imagem institucional da PM paulista, na normatização de uma ética solidária, embora também se possa constatar nesse procedimento (de recortes direcionados) uma diluição dos sujeitos (os policiais) em favor do que representa a corporação.

As discussões sobre que tipo de polícia a sociedade precisa, sobre o modelo de segurança pública, ou mesmo se deve ou não haver uma desmilitarização das polícias ainda são um campo aberto, e talvez minado, mas que merece um enfoque mais corajoso e democrático dos meios de comunicação, pois que envolvem muitos interesses, nem sempre claros.

O pitoresco, num sentido jornalístico, não extrapolaria o seu próprio caráter de ineditismo ou inusual, emprestando alguma leveza a um noticiário – o que não parece ter sido o caso (da reportagem do JN), dada a contextualização de tal notícia, num veículo e programa de abrangência nacional e num tipo de jornalismo que não costuma ser assim tão ingênuo. Forçosamente pitoresca foi a maneira como isso se deu.

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Afonso Caramano é funcionário público e escritor