Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Paixão por helicópteros

Passada a primeira onda de enchentes e tragédias de janeiro, o jornalismo na televisão se vira como pode nesta fase de rescaldo, com reportagens piegas aqui e dramas acolá.

No caso do Brasil Urgente, da Band, um clássico da gritaria vespertina, a novidade parece ser a paixão cada vez maior de José Luiz Datena por helicópteros.

Na falta de uma enxurrada, um acidente, um crime ou uma tragédia de grandes proporções, o espectador pode ficar tranquilo, pois o apresentador vai lhe oferecer emoções, seja a bordo do helicóptero pilotado pelo comandante Hamilton, seja em algum Águia da Polícia Militar de São Paulo. Na última terça, até choveu forte. ‘O dia virou noite, comandante Hamilton’, sublinhou Datena. Mas quando ‘o melhor repórter do ar do mundo’, segundo o apresentador, partiu em buscas de imagens de impacto, o espectador se deu conta de que não havia muito a mostrar.

Hamilton localizou uma rua alagada perto do parque D. Pedro, no centro de São Paulo, e ali parou. Ficou tanto tempo que, a certa altura, Datena mandou-o correr dali: ‘Se você fica parado aí, dá a impressão de que a cidade inteira está debaixo d’água. O que a gente não faz’.

O piloto seguiu viagem, então, rumo a Guarulhos. ‘Olha a água aí no rio, Hamilton’, gritou Datena’. ‘É o Cabuçu de Cima, Datena’, respondeu, explicando se tratar de um afluente do Tietê. O helicóptero seguiu até uma favela, parcialmente alagada. ‘Já morei em casa que tinha goteira. Não tem coisa pior moralmente. Não é, comandante?’, observou o apresentador.

Longos minutos se passaram com Hamilton e Datena conversando sobre a situação daqueles moradores. Até que… ‘Comandante, você quer procurar outro ponto? É melhor mudar porque já mostramos este à exaustão’.

Enquanto Hamilton roda Guarulhos, o Brasil Urgente mostra: ‘Crime da mala! Mulher era dançarina e morava no exterior’. Datena entrevista a mãe da vítima. E logo grita: ‘Comandante, o senhor está aonde agora?’ E o programa volta a exibir imagens de Guarulhos, agora de uma avenida alagada.

‘Agora! Temporal deixa Guarulhos debaixo d’água’, informa a TV. Datena ri da placa no alto de um semáforo, que adverte: ‘Em piscante, não siga: enchente’. E critica: ‘Em vez de resolver o problema, eles colocaram um semáforo antienchente. Piada pronta. Precisa de semáforo aí? Precisa de vergonha na cara’.

Dia seco

Na quarta-feira, o Brasil Urgente volta a Guarulhos e mostra uma reportagem sobre um ônibus queimado por moradores revoltados com as enchentes. ‘Estou sempre do lado do povo, mas não nesse tipo de manifestação. Porque aí vira bagunça. Anarquia.’

Nem uma gota caiu em São Paulo na quarta. Hamilton, então, dedica-se a mostrar, do alto, imagens da Polícia Militar. A equipe do Brasil Urgente acompanha a rotina do grupamento, elogiadíssimo por Datena.

‘Vamos mostrar toda a logística do Águia. A valorosa equipe… Assuma, Hamilton. Vai, Hamilton!!!’, grita.

Corre a notícia de um assalto em um hipermercado no Tucuruvi, na zona norte. ‘Não prenderam ninguém, Hamilton?’ ‘Ainda não, Datena.’ O apresentador, então, fala com um policial. ‘Se prenderem os bandidos, queremos dar a boa notícia, capitão’. ‘Pode deixar’, diz o militar. ‘Se prendermos, avisamos a sua produção.’

Minutos depois, Datena volta a gritar: ‘Atenção! Tocou a sirene no ninho dos Águias. Imagens ao vivo. O Águia vai ser acionado para um cerco policial’. Na falta de alguma coisa mais emocionante para mostrar, o apresentador destaca o objeto do seu fetiche: ‘Decolagem do Águia em detalhe para você. Águia 9, comandante Hamilton!’

Na volta do bloco comercial, reencontramos Hamilton sobrevoando uma favela, repleta de policiais. ‘Comandante Hamilton, melhor ‘news ar’ do mundo’, diz Datena. ‘Policiais com arma na mão. Uma mulher estaria em cativeiro. Então não é sequestro relâmpago’, grita.

São 19h15, hora do próximo programa. E Datena se despede de Hamilton e do público, agradecendo a audiência, mas sem contar como acabou a história.

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Repórter e crítico do portal UOL