Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Plínio Bortolotti

‘Militante dos movimentos sociais, diretor da ONG Brasil Cedhuc – Centro de Direitos Humanos e Cidadania, o advogado André Luiz de Souza Costa é articulista-colaborador da editoria de Opinião, sendo seus artigos publicados semanalmente, às sextas-feiras. Para a edição de 26 de janeiro, ele enviara o seu texto, como sempre faz. No entanto, no dia anterior, recebeu uma ligação do jornal informando-o que a direção da Redação decidira não publicar aquele artigo. No texto, André trata de casos de preconceito que ele vê ‘em alguns setores da imprensa cearense’. Abaixo, a íntegra do artigo que deixou de ser publicado, escrito sob o seguinte título:

Até quando?

‘Em julgamento histórico sobre crime de racismo e anti-semitismo, o Supremo Tribunal Federal afirmou que a liberdade de expressão não é uma garantia constitucional absoluta, pois há limites morais e jurídicos, baseados nos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica que proíbem, por exemplo, apologia de preconceitos e práticas discriminatórias.

Mas não é essa interpretação que prevalece em alguns setores da imprensa cearense. Colunista social já escreveu que ‘baianos, negros, índios’ eram ‘sub-raças’ e sobre o ‘absurdo de atrizes brancas contracenarem com negros parecidos com escravos’. Como a impunidade e o silêncio andaram a galope e de mãos dadas, a história se repete, inclusive com outras minorias políticas.

No último dia 4 de janeiro, a colunista Regina Marshall publicou nota referindo-se a um ‘advogado mignon’. Aparentemente irrelevante e travestida de crítica política à família Ferreira Gomes, o texto reproduz um perverso e inaceitável preconceito contra o advogado Reno Ximenes Ponte e todas as pessoas portadoras de deficiência, já revelado noutra nota anterior da coluna que afirmou textualmente: ‘O que estará fazendo um anão, literalmente, anão mesmo, que vem sendo visto transitando diariamente no plenário da Assembléia Legislativa, sempre em contato com Cid Gomes? Até agora ninguém sabe qual sua função no Poder. O ´meio-quilo` foi assessor jurídico de Iraguassu Teixeira na Câmara Municipal. Estaria levando recado de alguma ´Branca de Neve?` Espera-se que sua bagagem intelectual seja bem superior a sua altura’ (edição de 26/02/1995). Nada de diferente numa coluna que veicula piada racista (‘Eu sou branco’, 18/7/2004). O que pode ser diferente é a reação da sociedade e das instituições públicas contra essas manifestações criminosas e discriminatórias, que humilham e degradam a dignidade das pessoas. Com a palavra a OAB Ceará e o Ministério Público.’

Preconceito

Alguns esclarecimentos: o ‘colunista social’ citado no artigo é Cláudio Cabral, que enfrentou um processo judicial, depois de ter escrito na edição de 11/4/1997 do extinto jornal Tribuna do Ceará, que feijoada era ‘comida de músico baiano, negros e índios. Sub-raças evidentemente’, a pretexto de criticar ‘estes mal cheirosos músicos baianos que andam por estas terras’. O processo chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que não julgou o mérito, devido a um recurso fora de prazo do Ministério Público Estadual. Nas instâncias inferiores o colunista fora absolvido. Cabral defendeu-se dizendo ter havido um ‘mal-entendido’ sobre suas palavras e que fizera uma despretensiosa ‘brincadeira’ ao escrever o que escreveu. Regina Marshal mantém uma coluna social no jornal Diário do Nordeste, na qual escreveu as notas citadas no artigo de André Costa. O advogado Reno Ximenes, tratado pejorativamente pela colunista de ‘mignon’, ‘anão’ e ‘meio-quilo’, devido ao nanismo, atuava como assessor legislativo do deputado (hoje governador) Cid Gomes quando foi escrita a nota mais agressiva contra ele.

Perguntei ao editor-chefe, Erick Guimarães, por que o artigo não fora publicado, ele disse o seguinte: ‘A chefia de Redação foi consultada sobre o artigo pela editoria de Opinião. Avaliamos – tanto eu como Fátima Sudário (diretora de Redação) – que, se o articulista quisesse responder a uma colunista do Diário do Nordeste, ele deveria escrever uma carta àquele jornal. Simples assim: lá é o local ideal para ele fazer esse tipo de questionamento. Isso não significa que o jornalista está acima de críticas. Ninguém está. A existência da coluna do ombudsman já é prova disso. A existência de uma seção de cartas de leitores; ou de um Conselho de Leitores; ou até mesmo de blogs em que os jornalistas do O Povo são freqüentemente questionados, mostra a clareza com que temos essa compreensão. Ao leitor, basta procurar o caminho certo.’

Razões

Antes mesmo da resposta do editor-chefe, já sabia que a rejeição ao artigo nada tinha a ver com o mérito do tema abordado: o preconceito em relação à cor e à deficiência física, assuntos que o jornal estimula para ajudar no combate ao preconceito. O próprio André Costa destaca com freqüência o tema em seus textos. O problema é que nas páginas do O Povo, criticar-se-ia, mesmo sem citar-lhe o nome diretamente, o Diário do Nordeste. E há uma espécie regra não-escrita na imprensa, raramente rompida, estabelecendo que um jornal deve se abster de criticar o outro – e isso fica claro na resposta do editor-chefe.

Reconheço a disposição do O Povo em submeter-se à crítica, nisso não tenho divergência com o editor-chefe. Mas, ao contrário dele, não entendo o caso em pauta como tão simples. Não se resolve um problema desses mandando o leitor (ou o articulista) queixar-se a quem comete um deslize ofensivo à cidadania. Um jornal tem de servir para abordar temas de interesse público e não há motivo para dar (e receber) um salvo-conduto aos seus homólogos quando estes precisam ser criticados. A imprensa tem de estar disposta, sem embargo, a se submeter ao escrutínio público. Com leitores cada vez mais exigentes, não tenho dúvida ser esse um assunto a merecer debate aprofundado. E seria relevante se O Povo e todos os meios de comunicação aceitassem fazê-lo sem subterfúgios. Tenho certeza de que contribuiria para melhorar a qualidade do jornalismo que todos nós fazemos.

(Este caso chegou-me por meio da ombudsman emérita do O Povo, professora Adísia Sá, depois de o advogado Reno Ximenes tê-la informado sobre o assunto. Ela orientou-o a procurar este ombudsman, ao tempo em que me passou o artigo que deixara de ser publicado.)’