Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Plínio Bortolotti

‘Recentemente, escrevi a coluna ‘Quem nos protege dos guardiões?’ (edição de 25/3), comentando estudo da Agência Nacional dos Direitos da Infância (Andi), mostrando ser a imprensa bastante econômica quando se trata de publicar assuntos que diretamente lhe dizem respeito. Entanto, os últimos meses têm sido pródigos em notícias envolvendo a mídia: a) o anúncio da televisão pública pelo Governo Federal; b) o debate sobre a classificação indicativa, de acordo com a faixa etária, dos programas de televisão; c) a restrição à publicidade de bebidas de ‘baixo teor alcoólico’, como a cerveja, que não poderá mais ter anúncios de TV antes das 21 horas, de acordo com decreto presidencial (com previsão para vigorar em três meses); d) e o assunto que causou o maior barulho esta semana: o fechamento da Radio Caracas Televisión (RCTV), na Venezuela, pelo fato de o governo de Hugo Chávez não lhe ter renovado a concessão de freqüência.

A rigor, são assuntos bem distintos, mas alguns setores, por desconhecimento ou com o propósito deliberado de confundir, vêem todos os casos, genericamente, como ataques à ‘liberdade de expressão’ ou mais especificamente como agressões à ‘liberdade de imprensa’.

É dessa manobra que as emissoras de TV brasileiras usam para dificultar a classificação indicativa, estabelecida por portaria do Governo Federal. A medida não proíbe nenhum tipo de programa e muito menos se refere ao jornalismo (que não sofre nenhum tipo de restrição), apenas procurara estabelecer o horário adequado de programas de rádio e televisão, de modo a proteger crianças e adolescentes. Em todos os países do mundo, incluindo, e principalmente, naqueles de democracia consolidada, vigora algum tipo de controle sobre o que pode ser visto por menores de idade. Classificar isso como ‘censura’ é má vontade com o objetivo de pôr a audiência e o lucro acima de qualquer outra consideração. Mais sobre o assunto pode ser visto no portal do Ministério da Justiça (http://www.mj.gov.br/classificacao).

Sobre a questão das bebidas alcoólicas pode ser dito a mesma coisa. Nem a venda, nem o consumo, nem a publicidade serão proibidos. Trata-se apenas de disciplinar o vale-tudo que toma conta da propaganda de bebidas – incluindo a publicidade de cerveja divulgada em qualquer horário –, claramente induzindo adolescentes ao consumo. Contra o decreto 6.117/2007, que instituiu a Política Nacional do Álcool, estabelecendo medidas restritivas à venda (em rodovias federais, por exemplo) e à publicidade de bebidas de menor teor alcoólico (já existem restrições para bebidas consideradas de alto teor alcoólico), as cervejarias se insurgem. Elas estariam preocupadas com a liberdade de expressão, com a saúde das crianças ou com o faturamento?

TV pública

Sobre a Rede Nacional de TV Pública, que o governo pretende implementar, ela segue a política estabelecida na Constituição de 1988, prevendo a existência do sistema público, estatal e privado dos meios de comunicação. Cada um deles tem uma função específica, podendo conviver harmonicamente, como ocorre em todos os países democráticos. A existência de um sistema público e estatal não significa sobrepor-se à iniciativa privada ou restringir-lhe a liberdade. As TVs e rádios privados são concessões do Estado a particulares; o sistema estatal é aquele controlado diretamente pelo governo, como a Radiobrás (rádio e TV). A grande novidade no Brasil seria uma rede nacional pública, desvinculada do Estado (ainda que possa ser financiado por este), dirigido por conselhos formados pela própria sociedade. Sem ingerência estatal ou da publicidade, um meio desse tipo poderia oferecer uma programação diferenciada, sem estar submetida aos índices de audiência e à ditadura do ‘mercado’. Nada mais democrático do que isso.

RCTV

Falta ainda o também espinhoso tema da cassação da licença de funcionamento da RCTV pelo governo venezuelano. Em primeiro lugar, é preciso esclarecer que a freqüência para funcionamento de rádios e TVs, em todos os países, é concedida do Estado. A concessão é necessária porque o espaço eletromagnético é limitado, havendo necessidade uma instância disciplinadora. Segundo, o concessionário beneficiado por uma licença, assume junto com o direito de transmissão, também alguns deveres: oferecer programação de qualidade e educativa, atender o interesse público, promover valores éticos e de cidadania, entre outros. Mas a praxe indica que os ‘donos’ das televisões entendem possuir somente direitos e deixam de prestar contas sobre o que fazem, a não ser ao oráculo ibope. Assim, supressão de uma licença de funcionamento, não é, em si, algo antidemocrático – se o concessionário deixa de respeitar as regras estabelecidas legalmente.

Porém, é indefensável que uma única pessoa, como fez o presidente da Venezuela, decida os destinos de um meio de comunicação. O mais grave nas ações de Hugo Chávez (já ameaçando outra emissora de televisão) é que elas parecem seguir a trilha do choque irreversível com a democracia.

Mas, as notícias veiculadas no Brasil sobre o assunto falham na falta de aprofundamento e contextualização. Se Chávez age de maneira arbitrária, sua atitude não purifica automaticamente a RCTV. A rede de televisão envolveu-se diretamente no golpe contra o presidente, em 2002, que o afastou temporariamente do poder, e, reconhecidamente, continuava a lhe fazer oposição sistemática. Portanto os que clamam pela liberdade de imprensa têm também de questionar abertamente se o papel dos meios de comunicação é agir feito um partido político. Lustrar a imagem da RCTV, como se ela fosse o paladino da liberdade de imprensa, é desinformar o leitor. Ao passo que condena Chávez, a mídia mundial teria de lembrar à emissora venezuelana que o seu papel era o de informar corretamente, de modo que as pessoas, conscientemente, pudessem tomar suas próprias decisões. O fato é que Chávez e a RCTV travaram uma feroz disputa política – em que era difícil distinguir o lado justo (o mais certo é que ambos eqüidistam desse ponto) –, contenda que o presidente encerrou com um golpe de mão: e nesse gesto dissolveram-se as razões que ele poderia ter.’