Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Quem entende o humor na TV?

Cena do programa Zorra, que retornou à grade da Globo no último sábado. Em uma corporação qualquer, um brilhante anjo Gabriel, negro, aparece diante de uma mulher chamada Maria, assoberbada em suas tarefas cotidianas. Anuncia uma novidade: o Deus, todo poderoso e onipotente, tem planos para ela, o de gerar o filho Dele. Maria – que primeiramente entende que quando o anjo fala de Deus, refere-se ao “seu Josias”, seu chefe – reage incrédula e desanimada; segundo ela, não é possível assumir esta tarefa porque “o mundo corporativo tem regras”. Esclarece a Gabriel a existência de uma escala de gravidez entre as funcionárias. Desobedecer a regra seria por em risco o emprego.

O anjo escandaliza-se, ao que Maria afirma ter ciência do absurdo da situação, mas acrescenta: “é um horror mesmo, mas é isso ou ter que trabalhar na concorrência, que paga bem menos para mulher”. Conformado, Gabriel acaba por passar a tarefa para outra funcionária, Suelen Cristina, que está melhor situada na escala da gravidez. Ela se anima ao imaginar a possibilidade de conceber um filho sem ter que conviver com um homem, namorar, etc. O quadro encerra com o anjo tentando imaginar a oração da Ave Maria reconfigurada para “Ave Suelen Cristina”.

Espécie de segunda divisão do Tá no Ar, Zorra foi reconfigurado pela emissora no ano passado , passando a ter um posicionamento mais claro, que assume uma visão política do humor enquanto gênero responsável por fazer circular certas visões da vida social (e, é claro, tolher outras visões). Conforme já pontuou o ator e roteirista Marcius Melhem, a nova fase do Zorra assumiu o compromisso de um humor que se situa ao lado dos menos favorecidos, e não o contrário, extinguindo os quadros que, intencionalmente ou não, estimulavam a homofobia (como o quadro chefe da Valéria Bandida no antigo Zorra), o preconceito racial e em relação às mulheres.

No quadro que descrevo na abertura do texto – em minha visão, o mais engraçado deste retorno – os subtextos são vários. Há críticas às desigualdades no mundo do trabalho, à alienação requerida para uma boa adaptação numa empresa (chegando a igualar o chefe a um deus), à perda das referências “espirituais” num mundo marcado pela materialidade, à incomunicabilidade entre homens e mulheres no universo amoroso, à crise econômica que impossibilita que um funcionário se rebele contra más condições trabalhistas, pois não há outros empregos possíveis.

Frente a isso, chama-me a atenção uma pequena polêmica levantada há algumas semanas por uma entrevista concedida por Boni, entendido por muitos como o “guru” que definiu o caminho da Rede Globo rumo à hegemonia. Ao comentar o Tá no Ar, ele declarou que 90% das pessoas não entenderiam as piadas do programa. O comentário causou reações tanto nos produtores do programa, que ali viram um preconceito explícito à população, quanto nos comentaristas das redes sociais. Vale dizer que muitos foram os que concordaram com Boni, sustentando sua resposta na existência de tantos programas ruins nas grades.

Seria o humor bem feito inacessível às massas?

Creio que há aqui uma discussão interessante, que se volta aos dilemas (insolúveis?) sobre as funções da televisão. Cabe a ela a tarefa de formar um público (ou seja, insistir em textos melhores, menos fáceis, mais sofisticados) ou estaria a TV fatalmente condenada a produtos menores, para poder se comunicar com a “massa”? Quem fala ao grande público está fadado a comunicar “por baixo”, sob a pena de ficar no vácuo, ser mal compreendido ou (o pior!) ser um fracasso comercial?

Não obstante, vale a pena observar que este posicionamento quanto à massa – presente não apenas no comentário de Boni, mas em boa parte dos chamados “comentaristas da internet” – é, em si, problemático, pois pressupõe uma superioridade do falante, daquele que faz a crítica. Ou seja, quem critica a massa sem dúvida considera sempre que está fora dela.

Mas penso haver uma incongruência interna na fala de Boni, pois ele se pronuncia a partir de um papel de “Midas” das grandes mídias, como alguém que tornou ouro tudo aquilo que tocou. Seu papel enquanto guru se sustenta nos resultados obtidos pelo que produziu; portanto, a crítica à possível incompreensão do Tá no Ar parece paradoxal ao sucesso que angariou em todas as suas temporadas – seja em níveis de audiência, seja em repercussão com a crítica.

Ao que me parece, tanto Tá no Ar, com sua crítica bastante contundente não apenas à televisão, quanto o Zorra, enquanto formato mais “acessível” e voltado aos temas do cotidiano, estão resgatando uma ideia historicamente consolidada no Brasil mas um tanto esquecida nas últimas atrações humorísticas da TV (vide, por exemplo, programas ao estilo Pânico, que começaram como formatos carregados de crítica social e se perderam no simples culto do grotesco). Eles nos lembram que o humor serve, sobretudo, como instrumento de informação a ser explorado especialmente nos momentos de tensão, tal como este em que vivemos. O humor fala sem falar explicitamente. Como bem mostra o quadro da “Virgem Suelen Cristina”, quase sempre, uma piada é bem mais que uma piada.

Em tempo: ainda que não seja um programa de humor, a novela Velho Chico tem corajosamente enfrentado o desafio de testar uma narrativa ousada, que exige um espectador que presta atenção, e ao mesmo tempo permanecer bem sucedida para os padrões da novela das 20h – desafio também tentado e, de alguma forma, fracassado por sua antecessora A Regra do Jogo. O resultado de suas escolhas será uma oportunidade e tanto para discutirmos a maturidade (ou não) do espectador para enfrentar tramas mais sofisticadas e modos mais provocantes de contá-las.

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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha