Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Quem tem moral entre os evangélicos?

Com edição especial para celebrar os 50 anos da Rede Globo, o programa Na Moral de 23 de abril de 2015 discutiu “Quais os limites da moral na TV e como esses limites evoluíram ao longo dos anos?”, com ênfase em dois temas: a sexualidade humana e o fascínio pelos vilões. Participaram do bloco sobre sexualidade o pastor da Assembleia de Deus Vitória em Cristo Silas Malafaia, o humorista e apresentador Jô Soares, a desembargadora Maria Berenice Dias e o autor de telenovelas Silvio de Abreu. O segundo bloco, que tratou da representação dos vilões nas novelas, durou cerca de 15 minutos e trouxe outros dois debatedores (um psicanalista e uma juíza) em substituição a Maria Berenice Dias e Silas Malafaia.

O conteúdo do programa não trouxe novidades (veja no YouTube o programa na íntegra). É possível reafirmar o parágrafo que abriu as minhas “Notas sobre o Programa Na Moral”, de 2013, que apresentou o tema do Estado Laico para debate:

“Quem espera densidade em qualquer das tantas ‘mesas-redondas’ de qualquer programa de entretenimento na TV aberta, seja de momentos liderados por Ratinho ou Fernanda Lima; por Luciana Gimenez ou Ana Maria Braga; por Ronie Von ou Fátima Bernardes; por Cátia Fonseca ou Pedro Bial, certamente ficará frustrado. Não poderia ser diferente com a edição do programa da Rede Globo Na Moral” (leia aqui notas sobre a edição do programa de agosto de 2013).

Dessa forma, nos quase 35 minutos do bloco que tratou o tema da “moral na TV”, houve a exploração de falas curtas e superficiais sobre a exibição de corpos nus, de cenas de sexo e de beijos gays na dramaturgia televisiva. Jô Soares, Maria Berenice Dias e Silvio de Abreu cumpriram o seu papel de oposição a todo e qualquer controle dos conteúdos da dramaturgia e defesa do serviço social educativo que a dramaturgia presta. O pastor Silas Malafaia foi fiel ao personagem que encarna nas mídias, de defensor da verdade dos evangélicos, ainda que tivesse que enfrentar três opositores no debate, e mais o apresentador que representou o papel de “advogado do diabo”, quando o pastor se colocava. O religioso não disse nada além do que já sabemos de suas posições, com a forma contundente e autoritária que lhe caracteriza: manifestou-se contrariamente à “ditadura gay” nas novelas, à adoção de crianças por casais gays e à aceitação da homossexualidade por cristãos. No mais, Silas Malafaia aliviou as críticas à TV, defendendo que cenas de nudez, de sexo e de homossexualidade deveriam ir ao ar em horários avançados na noite, para evitar que crianças assistam.

Clima bélico

O pastor Malafaia insistiu que suas posições não eram somente teológicas ou religiosas, mas buscou respaldo citando um “filósofo de Harvard” e um “pesquisador doutor em sociologia da Universidade do Texas”. Justificou citar estudiosos “da América” porque “na América pesquisa é coisa séria” e “na América não tem o negócio de botar um estudo e a imprensa bater palma”. Ao lançar mão de alusões e citações, o religioso traz à sua fala marcas típicas de discursos autoritários de quem demanda credenciamento da fala e nega a divergência. Tudo isto para denunciar o “paradigma humanista-ateu” que ele entende reger a sociedade e “jogar fora séculos de valores cristãos-ocidentais”. Com este pensamento, o pastor Malafaia alinhou homossexualidade e prostituição, ao responder à provocação de Silvio de Abreu sobre a existência de pastores homossexuais e se colocou como o “papa dos evangélicos”. O pastor assembleiano disse que assim como na Igreja Católica Romana não há “igreja de prostitutas” porque o papa não permite, ele, como presidente do Conselho de Pastores do Brasil, que tem autoridade para excluir pastores que se apresentem como homossexuais.

O debate foi reforçado pela participação de uma família do bairro de São Cristovão, na cidade do Rio de Janeiro, apresentada como um modelo familiar típico, de dentro do estúdio-casa do Big Brother Brasil (BBB). Só a participação desta família daria um artigo exclusivo, já que aparecia como representação do reforço do modelo de “família tradicional”, tal como defendida pela bancada evangélica na Câmara dos Deputados. Assim como no BBB, havia nitidamente uma pré-definição de perfis de participação das pessoas que mais se manifestavam: a senhora idosa liberal, que não se importa e assiste com gosto às cenas “imorais” na TV, e por isso foi tratada com humor; a senhora tradicional, contrária à exibição de “cenas imorais”, especialmente de homossexualidade que contrariam “o que está escrito na Bíblia”, que foi tratada com seriedade; e a jovem mulher que assiste à programação mas defende a família das más influências dela, bastante destacada. Eram enfatizadas várias cenas de reação corporal dramatizada da senhora tradicional em reação negativa à fala dos liberais do debate e de expressões de apoio da jovem mulher que defende a família em aceitação às falas do pastor Silas Malafaia.

Frustrado com a ausência do “inimigo”, deputado federal Jean Wyllys (PSOL/RJ) [inicialmente escalado para o debate mas teve participação inviabilizada por conta de viagem de representação à Alemanha] o pastor Silas Malafaia manteve aceso um clima bélico em torno de sua participação no programa. Ele divulgou, dias antes do Na Moral ir ao ar, um vídeo com críticas. Para ele, o debate não havia sido “democrático” porque a produção teria selecionado três pessoas com posições semelhantes para lhe fazerem oposição. Com seu linguajar típico, o pastor Malafaia disse no vídeo que “o pau comeu” durante as duas horas de gravação do programa, com momentos em que teve que questionar a postura de Pedro Bial: “O coro comeu. O apresentador, alguma hora, chegou até a perder o equilíbrio, ficou muito nervoso, porque eu questionei a parcialidade dele. Certo? Mesmo ele sendo um cara fenomenal, inteligentíssimo em televisão – eu não estou aqui para falar mal do Bial –, mas não foi um debate democrático.”

“Minoria que fala a verdade”

Com o discurso da vitimização (“quatro contra um”), Silas Malafaia declarou no vídeo que durante as negociações para sua participação no programa, chegou a sugerir à emissora que convidasse o senador Magno Malta (PR-ES) para participar ao lado dele e, assim, equilibrar o número de pessoas em posições opostas. No entanto, durante a exibição do programa, acompanhando a repercussão de sua participação, o pastor Malafaia voltou atrás em sua crítica à emissora e publicou no Twitter:

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Em novo vídeo, publicado em 24 de abril, o pastor Silas Malafaia ressaltou a preocupação que tinha quanto ao resultado da edição, mas deu parabéns à emissora e disse: “Não fizeram molecagem comigo.” Ele avaliou: “Tenho que ser honesto: duas horas de gravação para 34 minutos – foi o tempo da minha participação – e você falar dentro de uma emissora onde ela será questionada, isso não é brincadeira, não. E os princípios que eu falei, os meus princípios, eles não cortaram nenhum. Quero ser bem honesto aqui. foram imparciais, e colocaram as minhas principais falas. Verdade é a verdade.” O religioso lamentou: “Pena que muito quebra-pau não saiu, muita coisa que ferveu…”

Silas Malafaia ainda comentou a ausência de Jean Wyllys: “O camarada estava com uma viagem parlamentar para representar o Congresso na Europa. Não vai faltar a oportunidade. Eu sei que eu vou ter o confronto com ele. Eu não acredito que ele tenha medo de mim. Isso é bobagem. Vai chegar a vez”, disse ele.

A criação de um clima bélico anterior ao programa e de vitimização de “minoria que fala a verdade”, garantiu publicidade à segunda participação do pastor Silas Malafaia no programa.

O Na Moral foi ar já na madrugada de 24 de abril, com sete pontos de audiência, dois a mais para a média do horário na emissora, com picos de 10 pontos no Rio de Janeiro. Isto foi celebrado pelo pastor que publicou no seu perfil no Twitter em 25 e 26 de abril:

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Retórica enganosa que a mídia insiste em repercutir e reafirmar

O pastor Silas Malafaia tem mesmo que parabenizar a Rede Globo. Chama a atenção o destaque dado ao pastor na edição do Na Moral. Um simples levantamento do tempo dedicado a cada debatedor, nos quase 35 minutos de bloco, mostrou: (a) desembargadora Maria Berenice Dias: cerca de 2:20 minutos de fala; (b) humorista e apresentador Jô Soares: cerca de 2:35 minutos de exposição; (c) autor de novelas Silvio de Abreu: cerca de 3 minutos de fala; (d) pastor Silas Malafaia: cerca de 8:15 de discurso. São do pastor, ainda, as falas mais longas: cerca de 1:20 minutos e 2:13 minutos nos dois momentos mais extensos entre os 10 em que ele interviu no debate. Os demais participantes intervieram seis vezes (Silvio de Abreu e Maria Berenice Dias) e quatro vezes (Jô Soares). A fala mais longa depois das de Silas Malafaia foi de Silvio de Abreu, em um momento de cerca de um minuto. Maria Berenice Dias não falou mais de 25 segundos em suas intervenções e Jô Soares falou mais quando interveio por 1:06 minuto.

Só neste levantamento quantitativo vemos o poder de palavra dado pela Rede Globo a Silas Malafaia. Além de ter falado quase três vezes mais de quem mais falou, o pastor teve a palavra final do bloco de debates com direito a aplausos da plateia presente ao estúdio. Não só teve a última palavra como obteve aprovação simbólica do público.

Neste sentido, o programa Na Moral cumpre o protocolo já estabelecido pela Rede Globo no que diz respeito à religião e particularmente aos evangélicos: Silas Malafaia é a voz deste grupo religioso e ponto final. Esta parceria da Globo com evangélicos, que tem em vista audiência e participação do mercado de bens religiosos, revela a opção por uma identidade evangélica tradicional e conservadora teológica, ideológica e politicamente. A edição do programa Na Moral ilustra bem esta dinâmica. Ao mesmo tempo em que dá espaço para três debatedores de postura liberal, não-religiosos, quanto à exposição midiática da sexualidade humana, o religioso que fala, com destaque, dá voz ao segmento evangélico conservador.

Se o programa deu ênfase às transformações na moralidade sexual da sociedade que a TV acompanhou, também abriu amplo caminho para a afirmação reacionária a essas mudanças, classificadas por Silas Malafaia como “paradigma humanista-ateu”. A presença de uma “família tradicional” no programa e a última palavra do pastor, aprovada com aplausos, deram o tom do recado que a emissora quer transmitir ao público.

Não é à toa que grupos conservadores e de ultradireita política veem-se fortalecidos por tais mensagens, como esta postagem no Twitter, em 26 de abril:

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Como sempre buscou fazer ao longo de sua história de 50 anos no Brasil, a Rede Globo busca ditar tendências e, neste caso, ela determina quem é que tem moral entre os evangélicos, tornando invisíveis aqueles não “rezam nessa cartilha”. Retórica enganosa que as demais mídias insistem em repercutir e reafirmar. Nestes tempos de religião nas mídias, a palavra de Jesus de Nazaré ecoa cada vez mais forte: “Quem tem ouvidos para ouvir, ouça…”

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Magali do Nascimento Cunha é docente e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo e editora do blog Mídia, Religião e Política