Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

SBT acionado por não pagar direitos autorais

A identidade de um programa de televisão é composta perante o telespectador por vários eixos – no seu formato, no seu conteúdo ou no seu aspecto artístico. Uma das características que causa impacto inicial perante o receptor é a música que acompanha determinado programa ou telejornal. Uma composição que visa retratar o clima e a proposta da atração e que serve como parte da identidade de marca do produto. Através do tema musical, o telespectador identifica que seu programa favorito está entrando no ar. Quando bem utilizada, uma vinheta musical pode se tornar referência absoluta perante o público, como no caso do Jornal Nacional, da Rede Globo. Desde a estréia do telejornal, em 1969, a emissora usa versões freqüentemente refeitas da composição The Fuzz, do músico norte-americano Frank Devol.


O trabalho de caracterizar musicalmente programas, muito embora seja freqüentemente realizado a partir de pacotes musicais estrangeiros comprados, tem no Brasil representantes ativos. Um deles é o compositor paulistano Mario Lúcio de Freitas, que acumula em seu currículo trabalhos como ator, publicitário, diretor de dublagem, produtor e, provavelmente, aquele o faria ser ser mais reconhecido pelo público: autor de diversos temas musicais de aberturas do SBT.


Freitas tem em sua lista contribuições familiares para o telespectador da emissora, tais como os temas de programas extintos e atuais como Hebe, Programa Livre, Escolinha do Golias, A Praça é Nossa, Punky, a levada da breca e o campeão da programação infantil da emissora, Chaves. No campo jornalístico, ele assinou as vinhetas musicais de produtos como Aqui Agora, Jornal do SBT e TJ Brasil.


‘Foi um processo extremamente prazeroso. Não recebia interferência nenhuma’, relata o músico. Numa relação extensa, incluem-se ainda vinhetas institucionais e realizações como as aberturas em português de novelas mexicanas como Os ricos também choram, O direito de nascer, Chispita e outras. A famosa campanha institucional usada pelo SBT nos anos 1980, ‘Quem procura, acha aqui’, também foi musicada por Freitas, a partir da versão original ‘NBC, Let´s All Be There’, usada pela rede norte-americana. Da mesma fonte, surgiu a campanha ‘Come Home to NBC’, que foi recriada pelo compositor como ‘Vem que é bom pro SBT’. E este histórico multifacetado é encarado com orgulho. ‘Apesar de ter feito composições também para a Rede Globo, reconheço que estes [do SBT] foram meus principais trabalhos’, diz.


Onde está o engano


Após uma parceria de sucesso ao longo dos anos, hoje a relação de Mário Lúcio com o SBT se dá somente em nível judicial. Apesar de ter ajudado a construir a imagem das produções da rede de Silvio Santos, Freitas nunca teve seu nome incluído nos créditos de encerramento dos programas, como prevê a lei. Por isso, o compositor decidiu processar a emissora por danos morais, relativos à não exibição do seu nome como responsável pelos temas musicais dos respectivos programas.


O capítulo 2 (‘Da autoria das obras intelectuais’) da Lei nº 9.610, de 19/2/1998 – que rege os direitos dos autores de obras fonográficas – explica que é direito constituído dos autores terem os seus nomes devidamente sinalizados quando da utilização das suas respectivas obras, além de poderem reivindicar a qualquer tempo a autoria. Ou seja, no caso de um programa de televisão, é exigido que haja o crédito para o compositor das peças musicais presentes na atração. ‘O SBT impediu a fixação para o os telespectadores em geral do seu nome, deixando de divulgá-lo como autor junto ao público, ao mercado publicitário, ao mercado das produtoras, como também junto aos mercados de emissoras de rádio e televisão, causando-lhe prejuízo irreparável’, argumenta o advogado Gilberto Veiga, que representa Freitas. O compositor está exigindo na Justiça uma indenização considerada milionária.


Veiga explica que a infração cometida pelo SBT teve fundamentação financeira. ‘O valor da música é muito grande em publicidade de televisão pela chamada de público que faz, implicando faturamento. É de se imaginar quanto dinheiro não arrecadou injustamente o SBT, usurpando milhares de segundos dos créditos autorais de nominação do autor’, afirma. ‘Não resta dúvida que a utilização do SBT constitui procedimento ilegal’.


O cálculo do valor foi feito com base no argumento de que o tempo que um crédito nominal sobe pela tela no final de um programa fique na casa dos cinco segundos. Freitas entende que o seu nome não foi inserido no final dos programas para que se abrisse tempo de comercialização nos intervalos. Deste modo, chegou-se a uma fórmula que multiplicou o valor de cinco segundos de um comercial de horário nobre do SBT pelo número de exibições de cada programa em que o seu trabalho foi transmitido. (Por exemplo, o Programa Livre teve um total de 3.240 exibições nos dez anos que ficou no ar; já a novela mexicana Chispita teve 720, incluindo reprises). O valor final solicitado pelo músico foi considerado ‘pornográfico’ pelo SBT, em juízo. Veiga rebate alegando que ‘o SBT não está mais em condições de discutir ou recusar valores’.


Este seria somente mais um caso de disputa na esfera jurídica se não fosse por alguns detalhes polêmicos. Em sua defesa formal, elaborada pelo advogado Marcelo Migliori, o SBT alegou que não reconhece que os programas – nos quais foram usados os temas musicais de Mário Lúcio – tenham ido ao ar. Também argumenta que a noção de que o crédito de autoria nunca tenha inserido é improcedente. ‘A ré nega que tenha transmitido os programas listados pelo autor, bem como nega que tenha omitido o nome do autor dos créditos autorais inerentes àqueles mesmos programas listados na petição inaugural’, diz o texto da defesa.


De acordo com Freitas, seu nome jamais foi incluído em nenhum encerramento de programa do SBT, levantando assim mais um questionamento sobre a representação feita pela emissora. O advogado Gilberto Veiga acredita que a emissora possa vir a apagar arquivos para sustentar sua alegação. ‘Talvez o SBT menospreze a inteligência das pessoas e pense que o tempo tem memória curta. E talvez por estar de posse das cópias das filmagens acredita na sua impunidade pensando em rasurá-las ou consumi-las. Aí está o engano’, acredita.


‘Abundância de provas’


Outro ponto mencionado pelo autor foi o fato de a emissora ter atacado a assistência jurídica gratuita por meio da qual ele moveu a ação. De estilo de vida modesto e morando de aluguel em apartamento pequeno da zona sul de São Paulo, Freitas foi caracterizado como ‘rico’ pelo relatório da defesa. A redação do advogado Marcelo Migliori diz: ‘Era uma vez o autor da ação, que morava em São Paulo, numa pequena e tranqüila rua, no sétimo andar de um prédio muito legal… rodeado de outros tantos prédios legais’. ‘Se o SBT não paga o que deve aos autores, como eles podem ser ricos?’, questiona Freitas. A medida teria sido tomada para convencer a Justiça de que o músico supostamente teria condições para sustentar os custos da ação que move, quando na realidade unicamente recorreu ao recurso da assistência jurídica por atravessar uma fase de dificuldades financeiras.


Em entrevista a este Observatório, Mário Lúcio de Freitas explica que encarou com indignação a estratégia de defesa do SBT, e que acredita que é possível chegar a um acordo, desde que a emissora mobilize-se rapidamente.


***


O que é pior? Não receber o que é devido ou ver a emissora alegar em juízo que nenhum dos programas para os quais você trabalhou foi ao ar?


Mário Lúcio Freitas – Quando li a defesa da emissora, fiquei sem dormir direito quase um mês. Não entendia como o SBT teve a coragem de vir perante a justiça dizer que Boris Casoy, Serginho Groisman e Ronald Golias nunca trabalharam na emissora. Que novelas, como Os ricos também choram, que acabaram de fazer o remake, não fez parte de sua programação. E o pior: que a música de abertura da série Chaves não é minha. Mas se não é minha, por que me pedem anualmente para mantê-la sincronizada? Isso me deixou muito indignado. Mas a verdade é que minha obra para casa é muito grande e não pode ser jogada pra baixo do tapete assim, sem mais nem menos.


Qual é a sensação de encarar um processo dessa natureza após ter sido responsável pela identidade musical de boa parte dos produtos do SBT? A parceria de longos anos presumiria boas relações.


M.L.F. – Infelizmente, o brasileiro realmente parece não ter memória. Neste caso, é compreensível, porque o fato de tê-la viria comprovar uma falha grave cometida pela emissora e seu departamento jurídico, que se acha acima do bem e do mal, e nunca iria admitir isso. Mas ainda bem que não se pode aprisionar a história, pois ela é dinâmica. Criamos mais de 40 temas de abertura, entre novelas, séries, desenhos, programas jornalísticos e de entretenimento, se juntar tudo. Tudo isso é facilmente comprovado. A maioria das pessoas se lembra de muitas dessas canções. Não dá para tapar o sol com a peneira. Quanto à parceria, o mínimo que se esperava é que ela fosse reconhecida pela empresa. Mas, infelizmente, até o presidente do SBT, o senhor Luiz Sebastião Sandoval, disse recentemente ao meu advogado que nunca tinha ouvido falar em mim. Não sei se isso é desinformação, má-fé ou os dois.


Como avalia a estratégia da emissora em tentar caracterizá-lo como ‘rico’ para desestruturar a assistência jurídica gratuita que recebeu?


M.L.F. – Acho que a casa, atualmente, enveredou por caminhos tortuosos e sem volta. Não vem cumprindo seus compromissos, principalmente com os autores. Veja que a utilização das canções nos programas é remunerada por segundo que vai ao ar. O SBT vem descumprindo essa regulamentação do ECAD, provocando imensas distorções. No meu caso, por exemplo, a música Aí vem o Chaves é utilizada, aproximadamente, 75 segundos por capítulo de 30 minutos e 89 segundos por capítulo de 45 minutos. Como o SBT se nega a cronometrar, o ECAD me paga o que acha que deve. E, pasme: neste último trimestre, o SBT nem pagou. Uma vergonha. Se eu fosse um autor norte-americano, tendo a obra musical que tenho, aí sim estaria muito bem financeiramente. Mas, infelizmente, venho vivendo com extrema dificuldade.


A situação que você vive é comum a vários profissionais. Por que poucos exigem seus direitos na Justiça?


M.L.F. – Porque, talvez, não acreditem na Justiça, mas não é o meu caso. Acho que ela será feita. O crédito de nominação é regulamentado por lei. Veja que no final dos filmes americanos, os créditos duram quase 8 minutos para rodar. Nomeiam tudo. Aqui, as coisas são distorcidas. Dão crédito a quem emprestou um ramalhete de flores para enfeitar o cenário e não dão crédito de nominação a quem criou a música-tema do programa. Será que as flores são mais importantes que a música-tema?


Qual desfecho imagina para esta situação?


M.L.F. – Vamos ver aonde eles querem chegar. Não acredito que eles levem isso às últimas conseqüências, pois isso pode quebrar a emissora. Acredito num acordo e rápido. Enquanto for viável para ambas as partes.


O advogado Gilberto Veiga segue a mesma linha. ‘Certamente pela abundância de provas e amparado na legislação constitucional e infraconstitucional, o maestro Mário Lúcio de Freitas terá reconhecido o seu direito de maneira justa e que não contemple o SBT com enriquecimento sem causa’, diz.


Danos morais


Como determina a ética jornalística, o SBT foi procurado para dar sua versão dos acontecimentos e externar as suas opiniões e necessárias considerações. O advogado Marcelo Migliori foi procurado para uma entrevista. Após instrução da emissora, as perguntas lhe foram enviadas. O SBT, porém, optou por não se manifestar. Não só a emissora não se pronunciou como não ofereceu razão alguma para manter o silêncio.


Processos por danos morais e outras violações são velhos conhecidos do SBT. Um dos temas musicais mais conhecidos da emissora – ‘Sílvio Santos vem aí’ – foi o motivador de uma ação movida pelo compositor Archimedes Messina, criador da marchinha. Depois de duas décadas usando o tema sem permissão e sem remunerar Messina, o SBT foi condenado em 2001 a indenizar o compositor em 50 salários mínimos com juros e correção monetária. Na época, a emissora se defendeu alegando que o compositor da música-tema era Heitor Carillo, que prontamente desmentiu a informação e confirmou Messina como responsável pela criação, no ano de 1965.


Mais recentemente, em 2005, outra condenação. Desta feita, o indenizado foi o ator da TV Globo Thiago Lacerda. A razão do processo foi o leilão de uma sunga no programa Domingo Legal, em abril de 2000. O apresentador Gugu Liberato alegou no ar que a peça supostamente teria sido usada pelo ator. O valor da indenização chegou na casa de 1 milhão de reais, por danos morais e uso indevido de imagem.

******

Jornalista