Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Telejornalismo e a crise do velho modelo

A Folha de S.Paulo de domingo (5/12) acertou em editar lado a lado as matérias sobre a ascensão da Fox News (‘Nova fórmula da Fox muda a TV americana’, pág A32) e a aposentadoria de dois dos três principais âncoras dos telejornais das grandes redes norte-americanas (‘TVs aposentam os âncoras da era dourada’, pág A33). Acertou porque uma e outra falam sobre a mesma coisa: telejornalismo e credibilidade.

O espantoso crescimento da Fox News, particularmente nos últimos três anos (a rede foi criada há oito), vem sendo acompanhado há algum tempo com a inquietação que o caso exige. A rede noticiosa de Rupert Murdoch surgiu para enfrentar a CNN e disposta a abrir mão do que até então se considerava clausula pétrea nos princípios jornalísticos das grandes redes de televisão: a isenção.

A verdade é que o público comprou, sabendo o que estava comprando, uma cobertura jornalística em que a imparcialidade não fazia parte do jogo. A perplexidade não é apenas em torno da escalada de audiência da Fox News, mas da possibilidade de que o princípio da isenção não queira dizer nada para o público que hoje se instalou diante da TV. Se Deus e a isenção jornalística não existem, tudo é permitido.

‘Nova era’

A ‘era de ouro’ que o título da Folha refere teve seu apogeu bem antes que esse público usasse fraldas. Dan Rather, hoje com 73 anos, e que anunciou sua aposentadoria para 9 de março do ano que vem, foi o sucessor, no CBS Evening News, de Walter Cronkite, que moldava a opinião pública dos Estados Unidos e definiu os rumos da guerra do Vietnã quando Nixon admitiu que ‘se perdemos Walter, perdemos a América’.

Âncora do telejornal das 18h30, Cronkite era, para o cidadão americano, a única pessoa em todo o país que jamais lhe diria uma mentira. Uma confiança tão ampla não se forja com uma bela estampa (nenhum apresentador é particularmente bonito e dificilmente atinge o apogeu antes dos 60 anos), mas se constrói todos os dias. É um trabalho penoso e difícil, que junta talento jornalístico e carisma pessoal.

Na escala de prioridades das divisões de notícias das grandes redes norte-americanas, o furo de reportagem vem muitos pontos abaixo da manutenção da credibilidade de quem está apresentando a notícia. Para o público, ele é o fiador da própria emissora. Por isso ganham quase um milhão de dólares por mês e também por isso são tão importantes para divisões que faturam mais de 2 bilhões de dólares por ano.

Os números do mercado, reproduzidos na matéria da Folha, mostram a derrota que a Fox News vem impingindo à CNN (que, como as grandes redes abertas, vende o princípio da independência, ao lado da abrangência e permanência de sua cobertura) e também o surpreendente desempenho da cobertura das eleições presidenciais de 3 de novembro, quando a rede fechada atingiu 8,1 milhões de espectadores, contra 9,5 milhões da emissora aberta CBS.

Tais números devem-se ao fato de que grande parte do público, naquele dia, não procurava uma rede que permanecesse eqüidistante, mas sim que, como a maioria dos eleitores, tivesse feito sua opção por Bush. Naquela noite, pelo menos 8 milhões de norte-americanos buscavam na sua televisão qualquer coisa, menos isenção.

Se isso configurar uma tendência, todo o modelo do telejornalismo norte-americano, no que ele tem de melhor, terá de ser revisto – e o sucessor de Rather, por exemplo, já não será um espelho de seu antecessor, como Rather foi de Cronkite.

É possível que seja isso o que Brian Williams, o sucessor de Tom Brokaw, por 23 anos à frente do atual líder NBC Nightly News, estivesse querendo dizer quando afirmou, em sua estréia há poucos dias, que ‘nessa noite começa uma nova era nessa emissora’.

O pilar da isenção

É compreensível que o público que está hoje diante de um aparelho de televisão não veja os mesmos programas, não tenha os mesmos valores e nem use a sua televisão da mesma maneira com que o fazia o público que dependia de Rather, Brokaw e Cronkite para ter certeza de que não lhe estavam dizendo mentiras. O que temos que tentar entender agora é o que este público está procurando num noticiário.

Adesão e cumplicidade seriam respostas insatisfatórias. Podia ser no último dia de uma eleição disputada, onde se havia criado o clima de um jogo de futebol. O público prefere o comentarista que fale bem de seu time. Mas os telejornais das três grandes redes norte-americanas, que há 30 anos tinham mais de 70% de toda a audiência, hoje têm perto de 20%.

É certo que, a partir dos anos 1980, o ambiente de TV por assinatura roubou quase 60% dos espectadores da TV aberta nos EUA. Mas a pergunta que está no ar é se a isenção ainda pode se sustentar como o principal produto de venda dos noticiários de TV – e se não puder, pelo que ela estará sendo substituída.

Sensação de credibilidade

No Brasil, isenção é um prato relativamente novo no cardápio do telejornalismo. Extraordinários lampejos de independência já existiam desde os anos 1960 em produtos como o Jornal de Vanguarda, até hoje uma experiência singular de jornalismo em televisão por qualquer padrão internacional.

Os avanços da Rede Globo neste campo são notáveis. A grande rede brasileira pratica hoje um jornalismo que em nada lembra o dos tempos em que a própria população reagia à presença de equipes de reportagem da emissora nas ruas. Mas não há dúvida que apenas Boris Casoy expressa plenamente a concepção norte-americana de um âncora que não deixa que mintam para o seu público – e que para isso seja fiador da própria emissora.

Há diferenças, é claro. A primeira é que é bem mais complicado ser fiador da credibilidade da Record que da CBS. Para vencer isso, Casoy conseguiu fazer com que na Record – como no SBT – a sua própria divisão de notícias (há outras na Record, como havia outras no SBT) tenha estrutura própria e uma forte desvinculação editorial da emissora. A segunda é que Boris, ao contrário dos grandes âncoras americanos, opina no ar. Ambas as diferenças apontam para uma personalização muito forte dos telejornais conduzidos pelo único âncora brasileiro a lembrar o modelo dos âncoras que hoje estão passando o bastão nos telejornais norte-americanos.

O público brasileiro comprou esta sensação de credibilidade? Em parte sim, se formos comparar o desempenho do Jornal da Record, particularmente o seu faturamento, com o de outros produtos dentro da mesma emissora e com a incapacidade de sua redação gerar tantos fatos jornalísticos, denúncias comprovadas e furos de reportagens quanto a da Globo.

Mas se se ampliarem as dúvidas que se instalam no modelo gerador de tudo isso, então todo o telejornalismo que se pratica à luz do modelo estará em risco. A questão a se pensar é se existe a imagem de um modelo melhor nas novas formas de organização da mídia eletrônica – ou para onde quer que se procure enxergar.