Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

TV Globo projeta o futuro

Por ocasião dos 50 anos da Rede Globo, celebrados no domingo (26/5), o Valor entrevistou Roberto Irineu Marinho, presidente do Grupo Globo acionista do Valor em parceria com o Grupo Folha ­, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho, vice­presidentes. Eles falam dos primórdios da Globo, das relações com o regime militar e com a censura, das dificuldades com os bancos, da concorrência, da estrutura do grupo e de sua situação financeira, da preparação de “O Globo” como jornal digital e dos projetos da Fundação Roberto Marinho.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que Roberto Marinho decidiu entrar na televisão já no início da década de 1950?

Roberto Irineu Marinho: Papai era um homem moderno e apaixonado pela comunicação de massa em todas as suas possibilidades. Em 1925 começou a trabalhar no “Globo”, tornou-se diretor em 1931. Em 1937 passou a publicar revistas e em 1944 criou a Rádio Globo. Nada mais natural que, quando a televisão chegasse ao Brasil, ele pedisse ao governo uma concessão para explorá-la. Estava convencido de que uma emissora de televisão era necessidade imprescindível para quem vivia do ramo da comunicação. Em janeiro de 1951, a Rádio Globo encaminhou pedido de concessão de um canal de televisão. Em julho de 1957, Juscelino Kubitschek aprovou a concessão do Canal 4 do Rio de Janeiro para a Globo.

Por que ele fez da TV um projeto pessoal e não do grupo empresarial?

Roberto Irineu: Quando foi aprovada a concessão, a composição acionária da TV Globo era a mesma do jornal “O Globo” e da Rádio Globo. Os sócios eram Roberto Marinho e seus irmãos. Como o projeto da televisão estava custando a dar retorno, seus irmãos decidiram, em 1966, não continuar no investimento, não acreditavam que fosse possível reverter a situação. A família continuou sócia no jornal e nas rádios, mas a televisão tornou-se um negócio do Roberto Marinho. A participação deles foi sendo diluída ao longo do tempo até que, em 1995, compramos as ações remanescentes. A TV Globo só parou de dar prejuízos no início de 1971, operou no vermelho por cinco anos. Hoje o Grupo Globo é gerido por uma empresa holding, a OGP, sociedade anônima de capital fechado, e todas as ações pertencem a membros da família Marinho.

Como nasceu o acordo com a Time-Life?

João Roberto Marinho: Quando a família decidiu investir em uma emissora de televisão, papai fez um acordo com o grupo de mídia americano Time-Life para o desenvolvimento do projeto.

Roberto Irineu: Foram firmados dois acordos em 1962: um de assistência técnica e outro de joint venture, que seria base para um acordo societário na produtora de programas. Na ocasião, o grupo americano repassou um adiantamento financeiro para investimentos, mediante a garantia de uma promissória. O contrato de assistência técnica vigorou efetivamente. A Time-Life se comprometeu a enviar à TV Globo, na qualidade de assessor da diretoria, pessoas capacitadas no campo de contabilidade e finanças e assegurava também o treinamento da equipe da TV Globo nas especialidades necessárias para a operação técnica. Mas a parte que tinha joint venture na produção de programas nunca se realizou. Com o dinheiro que eles tinham adiantado para isso, compraram o prédio e cobravam aluguel do prédio. Quando a gente acabou não formando a tal joint venture para fazer uma produtora de programas, eles disseram: “Não? Então dá o prédio como garantia”. Aí o papai fez empréstimo para recomprar o prédio e encerrar o contrato de assistência técnica.

Sorte da Globo, não é? Porque a partir daí começou a ganhar dinheiro. Compartilhar o lucro ia ser duro, hein? (Risos)

Roberto Irineu: Quem deu o empréstimo foi o Citibank, com aval do BEG [Banco do Estado da Guanabara]. Para dar o aval, o BEG listou 100% dos bens do papai, todos os carros, o barco, todas as casas, os quadros, as ações de todas as empresas. Assim, 100% dos bens hipotecados. Assinei como avalista, porque, como ele tinha 65 anos, na época, pela lei brasileira, os filhos poderiam dizer que ele estava fora de juízo por ter assinado esse contrato. Assinei como dizendo “os filhos avalizam essa coisa”. Foi o primeiro grande contrato que assinei na vida! [Risos]. Pouco menos de US$ 5 milhões. E foi uma imensa dificuldade para cumprir o pagamento. O contrato venceu dois anos depois e não tínhamos o dinheiro. Evidentemente, o Citi não queria renovar, e quem emprestou um novo dinheiro foi o Banco Nacional.

Foi o José Luiz de Magalhães Lins?

Roberto Irineu: Sim. Essa noite foi dramática, porque para aquela quantidade de dinheiro eles precisavam autorização do conselho do banco.

João Roberto: Foi fantástico, porque papai vinha negociando com outro banco, estava muito bem encaminhada a negociação, mas faltando dois ou três dias para a data final…

Roberto Irineu: Foi na véspera. O telefonema para o Zé Luiz foi de manhã, eu estava em casa e vi. O Zé Luiz chegou para conversar com ele, eram 5 horas da tarde. A conversa foi no quarto do papai. O Zé Luiz saiu dali, foi conversar com o Magalhães Pinto. O Magalhães Pinto autorizou a fazer a operação. No dia seguinte de manhã ele foi ao Banco Central entrar no redesconto para levantar o dinheiro, porque não tinha o saldo, e apresentou ao conselho do banco, que aprovou. O dinheiro saiu até as 6 h da tarde.

Foi pelo fio de um cabelo, hein?

Roberto Irineu: É, porque o outro banco cometeu a traição. Aliás, foram dois momentos dramáticos. Primeiro a hipoteca de tudo e segundo a renovação.

E ainda havia a campanha do Carlos Lacerda [governador da Guanabara]…

Roberto Irineu: Eu me lembro do papai, que nunca foi um bom orador, desesperado, ensaiando em casa porque ia aparecer na televisão para responder às acusações do Lacerda. Ele realmente tinha dificuldade de falar em público. Você sabe por que foi a briga com o Lacerda? Ele queria ser candidato a presidente da República, queria que “O Globo” se engajasse na campanha e o papai disse que não ia apoiá-lo, que ia ficar neutro. Ele ficou furioso e começou toda a coisa.

E depois apoiou o Negrão de Lima para…

Roberto Irineu: … governador do Rio.

Aí ele ficou mais furioso, não? Porque ele queria emplacar o…

João Roberto: … Flexa Ribeiro.

Roberto Irineu: O Lacerda fez duas maldades: a primeira foi desapropriar o Parque Lage. O projeto Parque Lage era mais ou menos o projeto do Parque Guinle: o parque no meio e prédios nas duas bordas. Mas o Lacerda disse que ia desapropriar porque o papai ia botar abaixo todas as árvores e ia fazer um cemitério de crianças ali. E desapropriou o parque pagando o correspondente a um Volkswagen, na época.

Porque ele usou o valor do pagamento do imposto territorial do parque, que era um parque protegido, então o imposto era baixo.

Roberto Irineu: Mas para mim a maldade maior é que o Lacerda era um grande orador e os discursos do Lacerda não eram brincadeira não, eram terríveis! E coitado do papai respondendo, sendo um péssimo orador! [Risos]

João Roberto: Era covardia…

Roberto Irineu: Quem assistiu ao Lacerda falar… era um negócio sensacional, shakespeariano.

E aí veio a campanha no Congresso…

João Roberto: A Comissão Parlamentar de Inquérito foi criada em 1966 para investigar a constitucionalidade do acordo entre Globo e Time-Life e teve muita repercussão devido à campanha que o deputado João Calmon (diretor dos Diários Associados, grupo proprietário da Rede Tupi) e o Lacerda moveram contra a Globo. A CPI, presidida pelo deputado Roberto Saturnino Braga com o deputado Djalma Marinho como relator, deu parecer desfavorável à Globo, alegando que a empresa americana estaria participando da orientação intelectual e administrativa da emissora. Em fevereiro de 1967, o governo mudou a legislação sobre concessões de telecomunicações, criou restrições aos empréstimos de origem externa e à contratação de assistência técnica do exterior, mas reconheceu a legalidade dos contratos anteriores entre Globo e Time-Life.

Como foi a relação da TV Globo com o regime militar?

João Roberto: Roberto Marinho acreditava na vocação democrática do presidente Castello Branco e na eficácia da política econômica do Roberto Campos e Octavio Gouvêa de Bulhões. Nunca negou sua simpatia em relação a Castello. Em 7 de outubro de 1984, no editorial “O Julgamento da Revolução”, publicado no “Globo”, fez um balanço dos anos de autoritarismo, dando ênfase aos ganhos econômicos proporcionados pelos governos militares. Em 1988, em entrevista à “Folha de S.Paulo”, admitiu ter apoiado a “ação construtiva” desses governos, mas disse que “fez questão de não obter favores”. Nunca pegou empréstimo de grande valor em bancos oficiais, com exceção do aval fornecido em 1966 pelo BEG. Também nunca ganhou concessão de TV dos militares. As duas únicas concessões recebidas foram outorgadas em 1957, por JK, e em 1962, por João Goulart. Os outros canais foram comprados diretamente de empresários. A Globo enfrentou dificuldades para expandir-se porque novas concessões lhe eram negadas, enquanto o governo militar se esforçava por criar redes concorrentes, outorgando diversas concessões ligadas ao Adolpho Bloch, do Grupo Manchete, e ao Silvio Santos para formação de redes nacionais. A Globo jamais demitiu um profissional em consequência de suas ideias. Apesar da pressão, mantinha sob contrato vários profissionais de esquerda, alguns ligados ao Partido Comunista, como Oduvaldo Viana Filho, Dias Gomes, Mário Lago, Gianfrancesco Guarnieri, Carlos Vereza, entre outros.

Quais foram os efeitos da censura nas telenovelas e no “Jornal Nacional”?

Roberto Irineu: O “Jornal Nacional”, como o principal telejornal da Globo e do país, foi censurado desde a estreia. Investimos no jornalismo internacional, já que não podíamos cobrir o Brasil como desejávamos. De 1968 a 1988, praticamente todas as telenovelas tiveram algum problema com a censura, e algumas foram proibidas de ir ao ar, como “Roque Santeiro” (1975) e “Despedida de Casado” (1977). Em 1984, no período de abertura, a Globo ainda sofria forte ação da censura. No movimento das Diretas Já, por exemplo, papai foi pressionado diversas vezes.

E em que momento a Globo começa a virar o jogo?

Roberto Irineu: A passagem para o primeiro lugar foi em 1971. Em 1970 já tivemos alguns programas que atingiam o primeiro lugar aqui no Rio ou em São Paulo. Tinha o Chacrinha, Silvio Santos, Dercy Gonçalves. Como programação de meio-dia à meia-noite foi a partir de 1971.

E a virada financeira da empresa?

Roberto Irineu: A partir do final de 71 já começou a se equilibrar e em 72 começou a dar lucro. Papai reinvestiu na empresa praticamente tudo o que ganhava em equipamentos novos, aumento da capacidade de produção. Isso fez diferença.

A que vocês creditam o crescimento da Globo?

João Roberto: A TV Globo cresceu apoiada em pilares: excelência técnica, talento criativo e profunda sintonia com a sociedade brasileira. Inovou em toda tecnologia de gravação e transmissão, culminando na criação do Projac, maior conjunto de estúdios televisivos das Américas. Foi pioneira na transmissão de programação nacional por satélite e, em 1969, colocou no ar o “Jornal Nacional”, primeiro telejornal de rede do país. Implantou a grade de programação horizontal, com conteúdos locais e nacionais combinados em rede. Criou novos formatos, inventou a interatividade televisiva antes mesmo de surgirem as tecnologias digitais (“Você Decide” é um exemplo). Esteve sempre profundamente sintonizada com a alma brasileira, tanto no telejornalismo como na teledramaturgia. Coberturas jornalísticas e narrativas de ficção ficaram impregnadas na memória afetiva dos brasileiros durante os últimos 50 anos, campanhas de merchandising social mobilizaram a sociedade com resultados surpreendentes avaliados por diversas instituições internacionais. Foi isso que permitiu a consolidação do que ficou conhecido como “Padrão Globo de Qualidade”.

Por que decidiu ser quase autossuficiente em produção, em programação? Foi de longe a maior das grandes emissoras do mundo nessa linha.

João Roberto: Até hoje é. A estratégia de meu pai era criar a diferenciação pela identificação com a nação brasileira, a cultura brasileira. Esse processo de identificação do que estava no ar com as pessoas, com a população, foi virando um casamento muito forte.

Nos Estados Unidos, empresas de cinema forneciam muito programa para a televisão aberta. Foi diferente aqui.

Roberto Irineu: A TV americana nasce do cinema e da capacidade de produção do cinema. A TV brasileira nasce do rádio, com a programação do rádio. As novelas de rádio se tornaram novelas de televisão com a adição da imagem. “Jerônimo, Herói do Sertão”: Rádio Nacional às 6 horas da tarde. Depois tinha a “Hora do Brasil”, depois o “Repórter Esso”. O hábito da programação horizontal do rádio formou a programação de TV horizontal. O Brasil é o único país do mundo que tem a programação horizontal. Nos Estados Unidos, cada dia é diferente no horário nobre, só o jornal é no mesmo horário.

Como avaliam as experiências da TV Globo no exterior?

Roberto Irineu: A atuação internacional da Globo ocorre há quase 40 anos, de forma muito bem-sucedida. Em 1976, começou a exportar programas para países da América Latina, com a novela “O Bem-Amado”, de Dias Gomes, no Uruguai. Dois anos depois, a novela “Gabriela”, do romance “Gabriela, Cravo e Canela”, de Jorge Amado, foi vendida para Portugal, a primeira exportada para outro continente. Um imenso sucesso. A partir dos anos 1980, a teledramaturgia da Globo passou a ser exportada para centenas de países de todo o mundo, transformando-se em uma das principais divulgadoras da história e da cultura brasileiras. “Escrava Isaura”, fenômeno de venda, alcançou até mesmo os países do então bloco comunista, como Cuba e China. Outro exemplo é o das coproduções. Em 2002, a Globo se associou à Telemundo, rede americana voltada para o público hispânico, e estreou “Vale Todo” de Gilberto Braga e em 2010 coproduziu “El Clon” de Gloria Perez. Em Portugal nos associamos, em 1987, na criação da SIC, primeiro canal privado português com uma participação de 25%. A SIC em dois anos assumiu o primeiro lugar aliando os programas da Globo com a produção própria. A parceria perdura até hoje, embora tenhamos vendido as ações durante a reestruturação financeira. Em 2010, por exemplo, coproduzimos a novela “Laços de Sangue”, que venceu o Prêmio Emmy, concedido pela Academia Internacional de Artes e Ciências de Televisão, dos EUA, como melhor telenovela do ano. Temos a TV Globo Internacional, disponível via cabo, satélite ou IPTV e chega a cerca de 120 países. Tivemos uma má experiência com a compra de uma emissora na Itália, a Telemontecarlo.

Como foi a entrada na TV por assinatura, por que investiu simultaneamente em TV por cabo e satélite; em programação e distribuição; em telecomunicações e num período em que o grupo avançava no lançamento e compra de novos jornais, de revistas e na renovação do parque gráfico?

João Roberto: No fim dos anos 1980 e início dos 90, ao verificarmos o crescimento da TV fechada em diversos países do mundo, identificamos o potencial para esse investimento no Brasil. Roberto Irineu sugeriu ao governo federal a criação de um sistema de televisão educativa que chegasse a cada comunidade do país usando a banda C dos satélites, como hoje é o Canal Futura. Faríamos o projeto, que seria doado ao governo. Mas o governo não teve interesse. No início dos anos 90, o grupo decidiu investir na produção e programação de conteúdos segmentados e nos meios para distribuí-los. Em 1991, iniciamos a Globosat distribuindo seus conteúdos por satélite (inicialmente grandes antenas instaladas em condomínios; depois, com a distribuição por banda KU, adotou-se pequenas antenas). Em seguida, compramos autorizações de TV a cabo de particulares e passamos a distribuir a programação dos canais Globosat também pelo cabo. Em 1993, separamos a produção e programação do conteúdo da distribuição por tratar-se de dois negócios diferentes (um de conteúdo, outro de telecomunicações). Optamos por manter a Globosat voltada para a produção e programação de conteúdos para TVs por assinatura. Novos canais foram criados e distribuídos por todo o país por meio de diversas operadoras.

Durante a crise de 2002, a TV Globo vendeu sua participação em emissoras da rede em várias regiões do país. No mesmo período, a Globopar vendeu a maior parte das ações e o controle das operadoras de TV paga Sky, por satélite, e Net por cabo. Hoje, o segmento da TV paga é maior, em faturamento, que a televisão aberta, com a qual compete, e a diferença está aumentando. Olhando de maneira retrospectiva: essas vendas foram necessárias?

Roberto Irineu: Tomamos a decisão de vender vários ativos da família e colocar o dinheiro no caixa da empresa para viabilizar a reestruturação financeira. Vendemos participações em operações regionais, a casa do papai em Angra dos Reis, os aviões, fazendas, terrenos, um hotel, um banco de investimento, uma seguradora, empresas de celular, as ações da SIC portuguesa e vários projetos imobiliários. Ao longo do período de renegociação da dívida com os credores, entre 2002 e 2005, vendemos também o controle da Sky e participação na então Globocabo, hoje Net. Essa última venda viabilizou nosso acordo final com os credores porque tornou possível que fizéssemos uma oferta de compra à vista para aqueles debenturistas que optaram por não financiar seus créditos. Hoje acho que, apesar de termos vendido por preço baixo (a velocidade de venda era muito importante), foi uma decisão correta. Passamos a nos concentrar na produção de conteúdo e temos a cada dia aumentado nossa qualidade seja na criação, seja na realização. Posteriormente, a Lei nº 12.485 proibiu que produtores e programadores de conteúdo de TV paga controlassem ativos de distribuição e telecomunicações, e vice-versa a chamada “quebra da cadeia de valor”. Assim, manter o controle de Net e Sky hoje não seria possível.

Em que situação estava a Globopar quando entrou na moratória?

Roberto Irineu: A Globopar devia em 2002 US$ 1,7 bilhão, com garantias da TV Globo. Quando o real começou a perder valor em relação ao dólar, ficou impossível pagar a dívida sem renegociá-la. Nossos negócios, principalmente a TV Globo, eram lucrativos: a crise financeira foi causada por um descasamento entre os investimentos na Globocabo e Sky, que demoravam a dar retorno, a alta do dólar e a recessão econômica de 2002. Depois de declarada a moratória, em outubro de 2002, o grupo montou um comitê de negociação para tratar com os credores. Eram dois grupos, os detentores internacionais de bonds, muito pulverizados, e os bancos nacionais e internacionais. Dado o volume da dívida, pode-se imaginar a enorme pressão por parte dos credores, que pretendiam contratar um especialista em mídia para cuidar da Globo. Preservar a gestão da emissora dependia da credibilidade do seu modelo de negócio. Isso só foi possível após a realização de duas auditorias, a primeira dos dados contábeis, fiscais e jurídicos feita pela Deloitte e uma operacional na televisão feita pela Price Waterhouse Media, as duas contratadas pelos credores. O resultado da auditoria foi extremamente positivo para a imagem da Globo, classificada como um negócio bem gerido e altamente rentável. Nós nos recusamos a entregar ações e dar assento aos credores na direção da Globo, quisemos preservar a gestão da principal empresa do grupo. A emissora registrou os melhores índices de audiência em toda a sua história justamente durante o processo de renegociação, comprometeu-se com o pagamento integral da dívida em troca do seu não acionamento legal, e isso contribuiu para consolidar o clima amigável nas negociações. Com o pagamento integral dos bonds no mercado internacional e o refinanciamento da dívida com os bancos brasileiros, em outubro de 2006, estava resolvida a situação financeira do grupo, e sem uso de recursos do BNDES ou de bancos estatais.

Como ficou a Globosat?

Roberto Irineu: A Globosat é uma empresa inteiramente voltada para a produção e programação de conteúdo para TV fechada. Seus 36 canais são distribuídos no Brasil pelas diversas operadoras do mercado e atendem a diversos segmentos, como esportes, notícias, entretenimento, filmes, conteúdos infantis e outros. Seus canais concorrem com grandes empresas internacionais, como Disney, Turner, Discovery e Fox. Somos líderes de audiência na TV paga no Brasil. Estimulamos a produção de conteúdo brasileiro através das mais de cem produtoras independentes que contratamos.

Estão agora trabalhando mais com produtores independentes. Como fica o padrão de qualidade?

Roberto Irineu: O [Fernando] Meirelles fez uma belíssima, agora. Foi a O2. Hoje [dia 9/4] estreia um outro programa espetacular. Chama-se “Os Experientes”, série de quatro episódios feitos pelo Fernando Meirelles também. Ele gravou três anos atrás para nós e estava na prateleira. São histórias de pessoas mais velhas que resolvem, de alguma maneira, alguma situação complicada.

João Roberto: A ideia é trazer olhares novos de fora, de quem tem muito talento, para interagir com as nossas equipes. Outro exemplo, aquela minissérie que foi no rio São Francisco…

Roberto Irineu: Ah! “Amores Roubados”, maravilhosa.

João Roberto: Fotografia do Walter Carvalho, fotografia linda, negócio de melhor cinema internacional. A gente emula as nossas equipes com um outro olhar.

Trabalhar com essas produtoras reduz custo para a Globo?

Roberto Irineu: Nosso custo interno está próximo. Porque o custo é em função da encomenda. A Globosat tem canais para os quais ela encomenda produções de R$ 30 mil a hora. E são maravilhosas. Tem outros que encomenda com valor mais alto, R$ 100 mil. A Rede Globo tem outro tamanho, quando investe numa produção, investe muito mais e faz com muito mais cuidado e paga muito mais do que a Globosat pode pagar.

Como é a concorrência entre TV aberta e TV paga?

Roberto Irineu: São ferozes concorrentes disputando a atenção dos telespectadores. Os canais de TV aberta já perderam mais de 15% de participação na audiência total para os mais de 200 canais da TV paga.

A que atribui o declínio da audiência da TV aberta?

Roberto Irineu: Não acho que a TV aberta esteja em declínio. Enquanto estivermos gerando conteúdo de qualidade, com relevância para as pessoas, elas vão continuar se ligando em nós. O que vemos são transformações na sociedade que impactaram o mercado como um todo e ampliaram as ofertas de entretenimento, criaram oportunidades para o desenvolvimento de novos concorrentes e possibilitaram o maior acesso da população a outros meios de comunicação. No início dos anos 90, havia a Globo e quatro redes nacionais no mercado. Agora, temos outros 200 canais por assinatura, TVs conectadas, internet etc. Ainda assim, a Globo se mantém na preferência do seu público e do mercado publicitário, com participação que gira em torno de 50% do mercado de TV, considerando a TV aberta e fechada. O conteúdo da cultura nacional, os atores nacionais, os temas nacionais hoje talvez tenham, se eu somar o conteúdo nacional em todas as redes abertas, uns 70% da audiência. Com o desenvolvimento do país e o aumento do poder aquisitivo, a população brasileira cresceu, assim como o número de lares com aparelhos de TV, as horas assistidas e a nossa cobertura. Hoje temos uma audiência muito maior do que tínhamos há 20 anos, atingimos um número bem maior de pessoas com potencial de consumo, principal medida de eficiência do investimento em mídia, ainda que os índices [percentuais] de audiência sejam ligeiramente menores em números absolutos. Numa conta rápida, 30 pontos de audiência da Globo em 1997 [ano do início da medição PNT] equivaliam a 10.106.038 de domicílios com TV. Em 2014, os mesmos 30 pontos correspondiam a 18.146.208 domicílios com TV, um aumento de 79,6%. Mesmo com a grande e variada oferta de canais, a maior audiência na TV paga é da Globo. Em 2014, no universo dos domicílios com TV paga, quatro em cada dez lares com a TV ligada estavam sintonizados na Globo. O que há é uma mudança de hábitos. As pessoas querem mais flexibilidade para consumir mídia, em horários e equipamentos diferentes. O que não podemos é nos desconectarmos das pessoas e das mudanças pelas quais elas passam continuamente.

Como vê a ameaça da TV pela internet, a web TV? Como a TV Globo se prepara para enfrentar a Netflix, Amazon TV, YouTube?

João Roberto: Não vemos como ameaça, vemos como oportunidade. Acreditamos que é a relevância do conteúdo que gera audiência. Tudo o que você cita na sua pergunta são plataformas de distribuição que necessitam de conteúdo para distribuir. Temos uma receita vencedora que alia conteúdo de qualidade com capacidade de distribuição. Em qualquer tela, nosso conteúdo sempre irá procurar levar emoção e relevância para a vida das pessoas. O que está mudando são os canais de distribuição, não a essência do que produzimos. E o público valoriza o conteúdo. É o que engaja, emociona, informa, entretém. É o que fideliza o relacionamento. Ou seja, a proliferação de plataformas de distribuição só valoriza quem produz conteúdo de qualidade.

A TV Globo pretende distribuir conteúdo pago pela internet como estão fazendo as emissoras americanas?

Roberto Irineu: Já distribuímos nossos conteúdos pela internet no portal Globo.com há mais de cinco anos. Estamos evoluindo e criando novas versões dos aplicativos para as nossas plataformas para computadores, celulares e tablets. E temos as plataformas de VOD vídeo on demand Globo TV+, Globosat Play e Telecine Play. Há muitas novidades sendo preparadas para tornar ainda mais atrativa essa oferta.

Qual é a receita que a TV Globo obtém dessas novas mídias?

João Roberto: Costumamos olhar essas receitas como parte do mesmo negócio e não como elementos estanques. Por exemplo, os serviços da Globosat Play e Telecine Play representam uma maior comodidade para os assinantes de TV paga, que enriquecem a assinatura que pagam. Os conteúdos que disponibilizamos em novas plataformas, apesar de gerar uma receita publicitária adicional, ou mesmo de venda de conteúdo, são principalmente uma forma de estimular a fidelidade do nosso espectador.

As empresas estão anunciando mais na internet, mas com muito cuidado porque não conseguem mensurar a eficiência.

Roberto Irineu: Você sabe quanto é que, no Brasil, a internet, Google e Facebook recolhem de publicidade por ano?

Uns 3% a 4%, segundo o Inter­Meios.

Roberto Irineu: Não. De R$ 6 bilhões a R$ 7 bilhões por ano. É a segunda no Brasil, logo depois da Rede Globo. Inter­Meios não mede internet, mede Globo.com, UOL, Terra. Não mede Facebook, não mede Google porque os dois não dão os números, não informam. E esse valor é remetido para o exterior, não paga imposto no Brasil, uma festa. Mas, de qualquer maneira, é um volume monumental. Não é tão pequeno assim.

A participação da receita de conteúdo na receita em relação à publicidade está aumentando?

Roberto Irineu: Está aumentando por causa da TV por assinatura. No ano 2000 tínhamos 2,8 milhões de assinantes. Hoje são 19 e tanto, multiplicou por 9.

Está chegando agora à projeção que a Anatel e os analistas de bancos tinham feito para o ano 2000.

Roberto Irineu: Em 1995 dei uma entrevista dizendo que no ano 2000, ao contrário do que todo mundo dizia, seriam no máximo 3 milhões de assinantes. Infelizmente acertei. Preferia ter errado.

A TV aberta está preparada para o “apagão analógico”?

João Roberto: A Globo vem se preparando desde 2007 para o fim da transmissão analógica. No ano passado levamos a cobertura do sinal digital a 70% do território brasileiro. Continuaremos investindo, considerando que a previsão é que o sinal analógico seja desligado em todo o Brasil entre 2016 e 2018. Mas há uma questão que é a disponibilidade de cobertura do sinal digital e a capacidade de recepção desse sinal. Uma grande parcela da população ainda depende do sinal analógico. De acordo com pesquisa do Ibope, em 2014, cerca de 61% da população da Região Metropolitana de São Paulo ainda tinha pelo menos uma TV de tubo em casa, e 35% tinha apenas a TV de tubo; ou seja, depende do sinal analógico da TV aberta. Para a população continuar recebendo gratuitamente o sinal da TV aberta, é preciso que estejamos todos empenhados em oferecer condições necessárias para garantir a migração para o sinal digital.

Que investimentos em tecnologia está fazendo a TV?

Roberto Irineu: A Globo é pioneira em inovações em tecnologia. No ano passado fizemos a primeira transmissão ao vivo de jogos da Copa do Mundo em 4K. Também fizemos a primeira obra integralmente produzida em 4K desde a captação até a pós­produção na televisão brasileira, a minissérie “Dupla Identidade”. Já realizamos testes com o 8K, que tem resolução 16 vezes superior ao HD e só deverá chegar ao mercado japonês em 2020. É um momento muito especial para a TV aberta. Estamos atentos às inovações e às tendências, como temos sido também com outras evoluções tecnológicas que enriquecem a experiência de assistir à TV, como a TV conectada, a interatividade, o consumo móvel via 1-­seg, o vídeo on demand.

Quais foram o faturamento e o lucro líquido da TV Globo e do grupo no ano passado?

Roberto Irineu: Em 2014, o Grupo Globo teve R$ 17 bilhões de receita líquida, 10% a mais que em 2013, e R$ 4,7 bilhões de resultado antes de impostos, juros e depreciação (16% superior a 2013). Nosso lucro líquido foi de R$ 2,3 bilhões e pagamos R$ 2,3 bilhões só de imposto de renda e contribuição social (sem considerar demais impostos). Nossa dívida é de aproximadamente US$ 1 bilhão, a quase totalidade vencendo a partir de 2022, e temos caixa suficiente para pagá-la hoje se assim desejarmos. Aliás, é bom dizer que não temos dívida com o BNDES, como muitos propagam.

E a expectativa para este ano? Como o Grupo Globo enfrenta a situação atual, em que a economia parece estar em recessão e os negócios estão diminuindo?

João Roberto: Temos que separar as mudanças conjunturais deste ano e do próximo das mudanças estruturais na nossa indústria de mídia. Este ano está muito difícil e certamente perderemos um pouco de faturamento e rentabilidade. Mas nosso planejamento, há três anos, já mostrava que este ano seria muito difícil pela análise da situação fiscal e econômica do Brasil e preparamos as empresas. Só não planejamos os efeitos da crise que a corrupção nas empresas estatais trouxe ao Brasil. Do ponto de vista estrutural, os negócios não estão diminuindo, mas se reconfigurando. As receitas de venda de conteúdo, na TV paga e na TV aberta, passam a ser tão importantes quanto as receitas publicitárias. Verificamos nos últimos anos um enorme crescimento da TV paga nos lares brasileiros, o que se reflete num aumento de demanda pela TV Globo e de nossos canais segmentados nos serviços pagos de TV por assinatura.

Como veem o futuro da TV Globo?

Roberto Irineu: Com muito trabalho, muitos desafios e muito sucesso. Estamos fazendo uma grande revolução neste momento na gestão e no processo criativo. Fizemos e faremos grandes investimentos. Só para dar um exemplo, se considerarmos os anos de 2013 a 2017, o Grupo Globo vai investir mais de R$ 3 bilhões, sendo que a maior parte disso é em televisão.

Os jornais vêm sendo muito afetados. O grupo começou com o jornal em 1925, há 90 anos. Também em tempos difíceis, não?

Roberto Irineu: Irineu Marinho lançou “O Globo” num momento de adversidade, poucos meses depois de haver perdido o controle acionário do “A Noite”, vespertino que havia fundado em 1911. Com recursos financeiros limitados e maquinário de segunda mão, “O Globo” chegou às bancas ancorado, sobretudo, na experiência de Irineu Marinho e dos companheiros que o seguiram nessa empreitada. A redação e as oficinas foram instaladas num antigo prédio no largo da Carioca nas salas emprestadas pelo Liceu de Artes e Ofícios e com máquinas usadas. Menos de um mês depois de ter fundado “O Globo”, Irineu Marinho morreu, vítima de um infarto. O jornal passou a ser conduzido pelo jornalista Eurycles de Mattos, que morreu seis anos depois, em 1931. Roberto Marinho, que ocupava o cargo de secretário e havia adquirido experiência em todas as áreas do jornal, assumiu a direção, aos 26 anos. Junto com essas dificuldades, o cenário de meados da década de 1920 era de grande instabilidade econômica e política. Havia também uma concorrência muito acirrada na imprensa carioca, com diversos títulos de vespertinos. A insatisfação com as velhas oligarquias acabou resultando na Revolução de 1930. Aos poucos “O Globo” foi conquistando espaço entre os leitores, incorporando inovações editoriais e gráficas e vencendo dificuldades. Só em 1954 ganhou sede própria, na rua Irineu Marinho, especialmente construída para abrigar todos os seus serviços.

Foi fundado como jornal vespertino e posteriormente se transformou em matutino. Não foi uma mudança apenas de horário, mas também de perfil e de atitude editorial. Por que a mudança?

João Roberto: No fim da década de 1940, “O Globo” já havia consolidado sua liderança entre os vespertinos do Rio de Janeiro, mas começou a antecipar o seu fechamento. Papai anteviu que os vespertinos perderiam a razão de existir com a chegada da televisão. Dizia que queria antecipar minutos a cada dia para que o público não percebesse a mudança, mas fosse beneficiado por ela. E só em 1972 “O Globo” passou definitivamente de vespertino a matutino. Esse foi um momento marcado por grandes transformações no jornal. Em dezembro de 1971, Evandro Carlos de Andrade havia assumido o cargo de diretor de redação. Sob o seu comando, “O Globo” passou por uma ampla reforma e modernização. Um dos primeiros passos foi a reformulação da redação, com a reorganização das editorias e a expansão do corpo de repórteres e redatores. As faixas salariais foram reformuladas e o noticiário foi agilizado. O jornal se preparava para a competição com o “Jornal do Brasil”. Esse cenário incluiu também a criação da edição de domingo, a renovação da gráfica, o uso da cor no jornal, a conquista de anunciantes e leitores nos subúrbios e a criação de novos suplementos.

Por que, depois de décadas de rumores, “O Globo” decidiu avançar em São Paulo com a compra do “Diário Popular” e por que desistiu?

João Roberto: A Infoglobo – responsável pela produção dos jornais “O Globo” e “Extra” – decidiu comprar o “Diário Popular”, em 2001, para atuar em São Paulo, o maior mercado brasileiro. No ano anterior, o grupo já tinha se associado à “Folha de S. Paulo” para lançar o jornal Valor Econômico. A compra do “Diário Popular”, portanto, fazia parte de uma estratégia de ampliar os investimentos do grupo na área de impressos. A experiência com o “Diário Popular” [que passou a se chamar “Diário de S. Paulo”] não deu o retorno esperado. Naquele momento, o Grupo Globo já se encontrava em dificuldades financeiras, com endividamentos que levariam ao pedido de moratória em 2002. Além disso, a imprensa já começava seu processo de crise devido à nova configuração do mercado com a emergência das mídias digitais e com a popularização da TV por assinatura.

Ao contrário dos outros dois jornais de referência, “Folha de S.Paulo” e “O Estado de S. Paulo”, que têm uma distribuição geográfica mais ampla, “O Globo” se concentra na Grande Rio e, excepcionalmente, dá atenção a Brasília. Não está abdicando de ampliar sua influência fora dessa área?

Roberto Irineu: Acreditamos que o jornal é muito ligado à comunidade onde circula. Ele deve refletir o pensamento de sua comunidade. Claro que pode ser lido fora de sua comunidade, mas a grande venda será sempre local. O “New York Times” é lido no mundo, mas a concentração de sua venda em Nova York é enorme. As tentativas de fazer um jornal nacional ou ainda internacional não obtiveram grande sucesso no exterior.

Os cortes recentes no “Globo” foram uma tentativa de adequar as despesas à receita?

Roberto Irineu: Todos os jornais do mundo estão tendo que reduzir seus custos e se tornar mais eficientes. Nossos cortes estão concentrados mais nas áreas de suporte e menos na redação, onde se produz o conteúdo. Todas as nossas empresas trabalham intensamente para estar preparadas para o futuro. No jornal estamos investindo R$ 200 milhões em um novo prédio com instalações que vão trazer grandes economias operacionais e maior eficiência na produção integrada com o digital.

No futuro “O Globo” será um jornal unicamente digital? O que será o jornal no conjunto de conteúdo distribuído para as plataformas?

João Roberto: No futuro todos os jornais serão digitais. A gente tem a estratégia de dividir um pouco os públicos. O G1 é muito mais de massa e “O Globo” se posiciona um pouco acima na pirâmide da sociedade. O G1 é um produto mais horizontal e o jornal, mais voltado para quem procura um pouco mais de reflexão. Vemos uma diferenciação assim para o futuro. Se vai dar certo ou não, a ver. Também achamos que haverá menos sustentação pela publicidade e mais sustentação pelo pagamento. Roberto Irineu: Não sei dizer qual vai ser o formato, mas a informação benfeita e importante será sempre valorizada dentro da internet. Acho que você vai ter aquela confusão que é Facebooks da vida dando informação que são todas misturadas e sem muita credibilidade e vai ter alguns lugares, um bloco com arrumações de informações mais ligeiras – corretas, mas mais ligeiras – e outro com mais profundidade. Se isso vamos chamar de jornal ou vamos chamar de “flor” eu não sei, mas a informação de qualidade terá sempre o seu…

O jornal tem um formato. A redação trabalha o dia inteiro, prepara no começo da noite e no dia seguinte ele circula…

Roberto Irineu: Era assim.

Era. Agora está virando informação contínua, quase como uma agência de notícias. Aí muda muito a natureza do jornal. Como se mantém a personalidade, a identidade do jornal?

Roberto Irineu: Acho que basicamente com o estilo de cada jornal, porque os jornais são diferentes entre si. Com o estilo de cada jornal e com a qualidade que esse jornal pretende para a informação.

Mas uma questão importante no jornal impresso é a edição, o peso que o jornal está dando ao assunto que está na manchete, para o que é editado na primeira página. Em meio digital, os leitores chegam diretamente a matérias de seu interesse por meio de buscas na web. Parece que a edição perdeu a relevância e o jornal, sua influência.

Roberto Irineu: Como vocês leem o jornal? No papel? Começam pela primeira página? Eu começo pela primeira página e vou para a última e volto ao contrário, exatamente igual a você. Cada um de nós tem uma maneira de gostar do jornal. Tem gente que vai direto na página de editorial e tem gente que vai direto num outro lugar. Então, pode ser que no futuro mais pessoas passarão a ir direto a determinadas coisas, mas, para mim, a primeira página do jornal é fundamental, porque me dá a importância de cada uma das matérias.

Sim, mas na internet quem vai, por exemplo, no Esporte, depois do Esporte vai para a primeira página do jornal ou não. O impresso, além de dar a informação que você está procurando, dá satisfação de encontrar coisas que você não estava procurando. Isso a internet dificilmente vai dar, porque o formato é diferente.

João Roberto: A garotada lê jornal pelo Facebook, entra no nosso site a partir do Facebook, mas entra, lê aquela notícia e sai. A gente está desenvolvendo, o mais possível, técnicas para que entre e encontre aí ramificações para ir a outras partes do nosso site. Na internet, o jornal agora está tendo que colocar imagem, filmes, som. Isto é, está sendo mais que um jornal. Está sendo quase multimídia, gráficos interativos… O jornal ficou muito mais complexo.

Roberto Irineu: No início dos anos 2000, a grande discussão era “a internet é uma nova mídia ou é simplesmente uma plataforma de distribuição das outras mídias?” Eu gastei um mês em uma tese sobre esse tema e nem me lembro se concluí uma coisa ou outra… Mas, definitivamente, não é uma mídia própria. A mídia é o que está ali dentro. A internet é uma belíssima plataforma.

Mas muda o conteúdo. O caráter…

Roberto Irineu: Pode mudar. Como ela oferece muito mais possibilidade de exposição do conteúdo, ela muda o conteúdo, porque ela permite que você enriqueça o conteúdo.

A natureza do meio muda o conteúdo.

Roberto Irineu: A natureza do meio permite interatividade, permite uma série de coisas que muda o conteúdo. É essa tarefa que a gente tem que arrumar o jeito e o talento… E está aí, o pessoal está trabalhando como poucas vezes vi na Globo, em todos os setores – gestão, inclusive.

Porque enfrenta um futuro totalmente desconhecido, ninguém sabe para onde vai isso.

Roberto Irineu: Olha, os meios tecnológicos não têm limite. Enquanto era analógico tinha. Depois que virou digital, não tem. Atualmente estão vendendo por US$ 15 ou US$ 30 um computadorzinho que é mais possante do que era qualquer computador dos anos 90 e é menor que um maço de cigarro, do tamanho do seu gravador. O que vai ser determinante é o hábito das pessoas. Fazemos, de dois em dois anos, um seminário para discutir o futuro. Há algum tempo a gente proíbe projeção de PowerPoint. O primeiro foi em 2006, quando acabou a reestruturação financeira. Fui para Roma falar com um amigo, Domenico de Masi. Queria saber como seria a sociedade em 20 anos, em 2025. Ele fez uma apresentação com grandes tendências. Ele tem um livro chamado “O Futuro Chegou”, que surgiu durante esse seminário. Queríamos saber como seria o comportamento da família, se vai ficar junta durante mais tempo, ou se os filhos vão sair de casa aos 20 anos, ou 18 anos. Porque o comportamento das pessoas e a maneira como vão interagir com a realidade em volta é que passam a ser determinantes de como vão se divertir, como é que vão se entreter, como é que vão se informar… Ele disse coisas interessantes que ficaram na minha cabeça. A primeira é que os filhos vão sair de casa muito mais tarde, por volta de 28, 30 anos. Ou seja: só vão sair quando o pai resolver coloca-los para fora de casa. A segunda coisa é que as famílias vão se voltar muito para dentro de casa. A terceira é que filhos só vão ter empregos quando os pais se aposentarem, porque o número de emprego não será suficiente para toda a população. Ah! Disse que o mundo será mais gay. Os anúncios de roupa para homem são muito mais gays do que as roupas que a gente usava, é tudo apertadinho e agora as pessoas se raspam todas… [Risos] Mas é assim! Os homens querem parecer femininos e as meninas querem parecer… Vai tudo ficando muito igual. E por aí ele foi dando várias tendências. Esse estudo que a gente repete a cada dois anos, cada vez com um formato diferente, é muito mais determinante para nós do que a tecnologia em si. A alta qualidade da HD e o preço da televisão caindo estão fazendo com que a televisão volte para a sala de visitas. Em um futuro muito próximo, estamos falando aí de cinco anos no máximo, a televisão vai ser uma tela que você vai colar na parede, você desenrola, cola, corta do tamanho que você quiser e pluga…

Todos foram cada um para seu quarto. Voltam a se reunir na sala?

Roberto Irineu: Na minha casa, cada um tem no seu quarto sua televisão, seu computador, cada um vai para o seu quarto. Tem certa hora em que começam a voltar, para ver o filme junto, a novela, um programa. Se isso é uma tendência real, é muito mais determinante do que o iPad, iPod. O desafio é: me descreva o mundo daqui a 20 anos.

Hoje, com a internet, não há mais barreiras para atuação de empresas estrangeiras. As leis ficaram obsoletas.

Roberto Irineu: Por isso que estava dizendo: os desafios da televisão, que eram imensos há 20 anos, eram mínimos se comparados aos desafios de hoje, que são exatamente essa invasão. Não tem fronteiras mais, você tem 200 canais fechados, dos 200 acho que 50 são produzidos no Brasil, se tanto… O resto é invasão, canais mundiais, empresas muito maiores, que faturam US$ 80 bilhões/ano.

Dá para competir com essas empresas?

Roberto Irineu: Eu acho. Os americanos têm uma sabedoria – e ganham muito dinheiro -­, sabem produzir um produto internacional. É praticamente impossível competir com americano para fazer um produto blockbuster. Eles sabem produzir esse filme internacional de grande sucesso, seriados também. A competência da Globo é saber produzir um produto muito brasileiro. Nunca seremos um blockbuster no exterior porque produzimos para o Brasil. Se queremos ser um blockbuster no exterior, temos que aprender a fazer produto internacional. Aí perdemos um pouco do público brasileiro.

Pretende abrir o capital do grupo ou de alguma das empresas?

Roberto Irineu: No futuro poderemos pensar em abrir parte de nosso capital no Grupo Globo com a família mantendo o controle, mas isso não faz parte dos planos a curto prazo. Entendemos que um grupo de mídia, ao ser fechado, preserva grande vantagem competitiva. Podemos planejar o futuro e fazer apostas a longo prazo sem ter que mostrar bons resultados a cada trimestre.

Desde sua origem, a empresa sempre teve forte ligação com a comunidade. Como é, na atualidade, a relação da Fundação Roberto Marinho com a cidade do Rio de Janeiro?

José Roberto Marinho: A fundação participa, neste momento, de dois projetos no Rio: o Museu do Amanhã, na região portuária, e a nova sede do Museu da Imagem e do Som, o novo MIS, na praia de Copacabana. Um é um museu de ciências, o outro é dedicado à cultura. E os dois se unem ao MAR, Museu de Arte do Rio, que teve também criação e implantação da fundação e completou dois anos neste mês. Este se dedica às artes visuais, como um conjunto de museus que são âncoras em suas áreas geográficas e de atuação. A fundação trabalha no país inteiro para preservar a memória e o patrimônio material e imaterial. Mas o Rio é a nossa origem, onde a fundação foi criada, há quase 40 anos. Participamos da recuperação e acessibilidade do Cristo Redentor, da revitalização do Jardim Botânico, da restauração de igrejas populares, como o Convento de Santo Antônio e a Antiga Sé um projeto que marcou as comemorações dos 200 anos da chegada da Família Real ao Brasil ­, entre tantas outras iniciativas.

Como colabora nas áreas de educação e cultura?

José Roberto: A educação é a razão de ser de todos os nossos projetos. A fundação nasceu da convicção, do meu pai, de que a comunicação tinha uma colaboração maior a dar, ao promover a educação. Dessa convicção nasceu o Telecurso e esta é também a diretriz para nossa atuação em cultura e preservação do patrimônio histórico, porque conhecer a história e a cultura do Brasil é uma forma de educação. Além da educação básica, a empregabilidade de jovens e adultos é uma preocupação da fundação. Os programas Aprendiz Legal e Qualifica são iniciativas que oferecem a chance do primeiro emprego e a qualificação profissional –inclusive para jovens que cumprem medidas socioeducativas –­, valorizando o empreendedorismo e a autonomia. Na educação ambiental, levamos o projeto Florestabilidade a seis Estados da Amazônia para estimular o uso sustentável da floresta. Temos ainda o Canal Futura, que nasceu da nossa experiência em articular parcerias com instituições públicas e privadas e utilizar as melhores técnicas audiovisuais a serviço da educação. O Futura combina uma programação que aborda temas relevantes, como infância, juventude, saúde e cidadania, a ações de mobilização social em todo o país.

Depois de iniciativas de grande impacto, como o Museu da Língua Portuguesa, a Casa França Brasil, o Centro da Cultura de Paraty, o Museu de Arte do Rio, o Paço do Frevo e outros, em que empreendimentos está trabalhando a fundação?

José Roberto: Estamos preparando o Museu do Amanhã e o MIS, dois projetos que chegam num momento muito especial para a cidade e para o carioca, com os 450 anos e a Olimpíada. O Museu do Amanhã aborda, na minha opinião, um dos grandes temas atuais: o chamado antropoceno, uma época em que o homem se tornou uma força capaz de gerar impacto no planeta, alterando o clima, degradando biomas e interferindo nos ecossistemas. O museu está sendo construído no Píer Mauá, uma das portas de entrada da cidade, junto aos Morros da Conceição e de São Bento. O Museu da Imagem e do Som é a cara do que a fundação faz: um museu em que o audiovisual é o próprio acervo e o Rio de Janeiro é o tema. Esses dois museus são herdeiros das gratificantes experiências que tivemos em São Paulo, onde participamos da revitalização de dois prédios históricos que hoje abrigam dois dos museus mais visitados do país: o Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, e o do Futebol, no estádio do Pacaembu.

Quais são os resultados da experiência do Telecurso?

José Roberto: Mais de sete milhões de estudantes já conseguiram terminar seus estudos pelo Telecurso, e 40 mil professores se formaram pela metodologia do programa, que valoriza a construção coletiva do conhecimento e a autonomia e utiliza os melhores recursos da comunicação para promover a educação. O Telecurso é hoje política pública reconhecida pelo MEC.

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Vera Brandimarte e Matías M. Molina, do Valor Econômico