Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Vá entender essa doideira

De começo, não sei dizer se a televisão é interativa. Aparentemente não, mas para assisti-la faz-se necessário que ela desperte emoções. Essas reações seriam registradas num polígrafo e são indispensáveis para que tenha sentido desperdiçar diante dela uma parte de nossas vidas. Mas é ela que nos impõe suas ideias, unilateralmente, tão diferente da internet, onde a ação é do usuário deixando a resposta por sua conta.

Como dizem, sou do tempo da televisão a lenha. No Paraná, a vi nascer como entretenimento de massa porque naqueles tempos só existia um canal. No nosso caso, ele era gerado em Curitiba, a 100 quilômetros de minha cidade, Ponta Grossa, e exigia enormes antenas para capturar seu tênue sinal. Ai se ela não estivesse perfeitamente ajustada e direcionada para o lado da Vila Velha. Na telinha viam-se mais chuviscos e sombras do que imagens nítidas, mas nós ficávamos ali na frente extasiados e vidrados na novidade. Naqueles tempos de televizinhos, assistíamos televisão na sala de visitas e em conjunto, como se estivéssemos num cinema. Seus incipientes programas eram produzidos localmente e ao vivo, com artistas da região, e complementados por documentários institucionais geralmente fornecidos pela embaixada dos Estados Unidos.

Quer dizer, nossa alienação cultural já estava na origem da televisão. Depois veio o vídeo tape que dizimou a produção local e provocou a debandada dos artistas. Lembro-me que foi a época em que o ator Ary Fontoura – que tinha um programa humorístico exclusivo naquela emissora – mandou-se para o Rio de Janeiro. Seguiram-se novidades contundentes, como a televisão colorida e, mais recentemente, a digital. Aliás, confesso que minha ignorância ainda não digeriu esta parafernália de fullhd, usb, lsd e demais termos desta linguagem alienígena e complicada. Não é a toda hora que temos um jovem à disposição para nos esclarecer sobre estas modernidades.

Temos esperança e nem tudo está perdido

Assisti passivamente ao crescimento do número de canais. Hoje em dia – incluindo os pagos – temos dezenas deles. Mas confesso que, após as novelas que minha mulher assiste, tenho muita dificuldade de achar algo que me interesse. Cresceram na quantidade, mas não na qualidade. Estão cheios de ratinhos, márcias, programas chatos, humorísticos sem graça e por aí vai. Falta criatividade quando insiste em exibir o regime alimentar dos apresentadores do Fantástico em horário nobre, ou mesmo quando se escolhem títulos como Morde e Assopra e Tapas e Beijos, que no fundo querem dizer a mesma coisa. Na televisão fechada, desfilam documentários opostos à nossa cultura, empurrados goela abaixo, sem falar nos inúmeros programas insossos de culinária, geralmente com ingredientes fora de nossa realidade. E os filmes? São tão deprimentes que acho que puseram ali só para ninguém assisti-los.

Gosto também de analisar o conteúdo das novelas para indicar a minha mulher os sinais colocados na trama e adivinhar seu desenrolar repetitivo. Descobri que o autor coloca evidências daquilo que pretende que seus personagens vivam no futuro da trama. E quando a história deriva para os vilões, é hora de introduzir certos clichês, como os casamentos desfeitos no altar e o golpe da gravidez para complicar o mocinho, presentes na maioria das histórias. Neste aspecto, a novidade atual são a presença dos casais gays.

Mas a televisão não é de todo inútil. Até salva vidas! Fiquei perplexo quando meu neto Guilherme aplicou uma técnica apreendida num programa de televisão e salvou a vida de um colega de sala de um engasgo com uma bala. Ao seu lado, o rapaz passava mal e estava ficando roxo com a asfixia. Meu neto prontamente colocou-se por trás de sua barriga e comprimiu seu ventre forçando o ar para fora da boca e assim expelindo a bala que trancava sua garganta. Perguntei-lhe onde aprendera a técnica e disse-me que tinha visto na televisão. Fiquei perplexo também por sua atitude heroica, mais ainda pelo fato de um jovem pré-adolescente prestar atenção num programa deste tipo e ainda reter seus ensinamentos. Cara pálida, temos esperança e nem tudo está perdido!

Como pode um direito se esgotar?

Outra dúvida: o que é melhor, o real ou virtual? Quero que que seja o primeiro, mas há casos que balanço. Por exemplo, para mim a televisão é boa mesmo na transmissão do futebol. Nada se compara a um bom jogo televisivo, que o digam as abobrinhas pós-ditas nos programas de mesa-redonda. Na última vez que fui ao estádio, fui arrastado por meu filho coxa branca de má vontade, sendo mais cômodo ver as partidas na televisão porque na telinha os lances ficam evidentes e o zoom põe os jogadores e jogadas na nossa cara. Aí podemos sentir suas dores nas contusões, a inevitável cusparada dos atletas e sua emoção ao fazer um gol.

No dia do arrasto, o Coritiba enfrentava o Santa Cruz, um time pernambucano, em jogo válido pelo Campeonato Brasileiro da Série B de 2007. Chegamos de carro pertinho do estádio meia hora antes. De cara, enfrentamos uma turba de torcedores que fechava a rua diante do estádio. Comentavam o jogo, seus jogadores e o desempenho do time. Cautelosamente avançando no meio da multidão, ouvimos xingamentos pela suposta barbeiragem. Mas onde estacionar? A única opção era procurar um estacionamento pago. Descobri que a taxa era única, dez paus, com direito a uma condenação de prisão do veículo por duas horas porque este tipo de estacionamento fecha no início do jogo e só reabre no seu final.

Tudo bem, fomos para a bilheteria do estádio. Lá em cima do guichê havia uma placa indicando que pela minha idade – mais de setenta anos – tinha direito a meio ingresso. Mas para minha decepção a bilheteira disse ao menino que estava na minha frente que os meios ingressos tinham se esgotado. Surpreso, perguntei a mim mesmo: “Como pode um direito se esgotar?” Mas pior foi a reação desolada do garoto que desabafou: “Agora só posso assistir o jogo e não tenho dinheiro para comer nada!”

O estádio treme

Enfim, subimos ao terceiro andar do estádio, já que não mais existiam lugares disponíveis mais embaixo. Nova surpresa porque embora um lado estivesse totalmente lotado, o outro estava vazio. Mas vazio mesmo, sem uma viva alma! Nosso lugar ficou na curva da arquibancada, num lugar com uma murada que encobria o canto direito do campo e atrás do gol. Perguntei sobre o mistério da parte vazia ao meu vizinho. Sábio, tirou o radinho do ouvido e me explicou que no lado vazio ficariam os torcedores do time rival, mesmo que estivessem a mais de 2.500 quilômetros de distância. E o melhor lugar frontal ao miolo do campo, é claro, para os torcedores sócios privilegiados. Olhei para os lados e ali mais em baixo estava uma família, um casal com filha pequena, todos paramentados com o uniforme do time. O varão gritava palavrões dirigidos aos torcedores fantasmas, soprava uma corneta irritante – hoje chamada de vuvuzela – e pulava gritando refrões ensaiados. A mulher, indiferente, sentadinha no cimento duro, baixava a cabeça e ensaiava uma tricotada legal. Depois de certo tempo, a filha não resistiu e, ignorando a barulheira, adormeceu nos braços da mãe.

Os milhares de torcedores fanáticos cantavam no segundo andar, atrás de um dos gols. Quando se vê uma foto no jornal é sempre envolvendo este ângulo. Nunca vi – se é sempre assim – imagens da parte vazia. O refrão dizia: “Não é mole não, no Couto ninguém ganha do verdão!” Num momento a turba parou de cantar para vaiar um incauto cidadão que lá em baixo circulava com uma camisa vermelha, cor do rival Atlético. Definitivamente, aquele cara também tinha sido cassado do seu direito de ir e vir. Apreensivo, lembrei-me que inocentemente tinha vindo com uma blusa de frio também vermelha, mas pelo calor reinante e muita sorte, tinha-a deixada presa no carro.

A gritaria ajudada por uma charanga é ensurdecedora e na hora da entrada dos jogadores, o adversário é vaiado estrondosamente e o time da casa ovacionado com tanta força que o estádio treme. Com medo, olhei para meu vizinho e arrisquei perguntar o óbvio. Mas ele, que já estava familiarizado com o meu despreparo, me tranquilizou dizendo que me acalmasse porque os engenheiros tinham deixado uma fresta entre as estruturas para que as vigas “pudessem trabalhar”.

Nunca mais voltei

Enfim, a partida começou. Do alto, só se podiam ver os pontinhos coloridos correrem. Quando o jogo se desenvolvia para o canto da murada que encobria o canto direito do campo, todos se levantavam – menos eu, solitário – para acompanhar o lance. Lá pelas tantas, o Coritiba fez um gol, mas foi tão rápido para meus padrões televisivos que não acompanhei nada, a não ser aqueles pontinhos incógnitos comemorando o gol e, claro, o barulho infernal da torcida.

No intervalo, reparei que os assistentes ao meu lado não saíam do lugar, provavelmente porque não queriam perdê-lo. Mas a maioria estava com um copo descartável de cerveja na mão. De onde brotara a bebida? Olhei curioso para o sábio que abandonara seu radinho e sorvia um sedento gole, mas não tive coragem de perguntar mais nada.

Pensei que no segundo tempo o jogo ficaria melhor. Pois o Santa Cruz até agora jogara acuado pelos gritos da torcida e diziam que tinha um bom time. Afinal, na rodada anterior tinha ganho do líder do campeonato. Mas a única boa jogada do time do nordeste foi uma levantada pela ponta direita – que fico devendo por causa da murada – mas o bom goleiro do Coritiba cortou impedindo um gol certo. Noutro momento – que não sei precisar porque não tinha levado relógio –, o juiz apitou um pênalti a favor do Coritiba. Em casa, este lance sempre vem acompanhado de opiniões, se foi ou não, mas ali não tinha nada disso porque nem tinha replay! Mas desgraçadamente para nós, o encarregado de batê-lo não teve a necessária competência de transformá-lo em gol. Mais xingamento da minha turma para aquele mau cobrador. A seguir houve mais um gol do Coritiba e depois senti que a partida caminhava para o final por causa das tradicionais substituições dos jogadores. Também começou a lenta debandada dos torcedores satisfeitos com o que viram até ali.

Aí, sim, pude resgatar meu carro, seguir célere para casa para, enfim, ver pela televisão o que tinha acontecido naquela tarde, principalmente os gols da partida por diversos ângulos – além do pênalti, “que foi”, repetido em câmara lenta e de quebra a análise dos comentaristas e a explicação detalhada da partida. O primeiro gol tinha sido de Caico e o segundo do Pedro Ken. O pênalti fora perdido pelo próprio Caíco, que naquela tarde transitou entre o céu e o inferno. A renda tinha sido recorde, o juiz teve bom desempenho e o time “tinha feito seu melhor jogo no campeonato”.

Depois daquele jogo, o autor nunca mais voltou aos estádios. Naquele ano, o Coritiba foi campeão da série B do Campeonato Brasileiro jogando sua última partida justamente contra o Santa Cruz em Recife e ganhando por 3X2, com o último gol feito no finzinho da partida. Dois anos depois, o time caiu novamente para a segunda divisão num final de jogo conturbado, quando a torcida invadiu o campo e brigou com a guarda num espetáculo lamentável – como dizem os profissionais do ramo – e o time acabou recebendo a maior penalização do futebol brasileiro. Mas esta é outra história que deve ser contada por quem nesse dia estava no estádio, já que o autor – assim como você – viu a confusão pela televisão com todas as suas limitações.