Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Wilson Silveira

‘O presidente da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), d. Geraldo Majella Agnello, afirmou que o filme ‘A Paixão de Cristo’, sobre as últimas 12 horas de Jesus, não é anti-semita nem justifica a revolta de judeus, embora seja ‘terrivelmente cruel’ e ‘chocante’.

Já o rabino Henry Sobel, presidente do Rabinato da Congregação Israelita Paulista, teve opinião contrária: ‘O filme é nitidamente anti-semita. Minha preocupação é que anti-semitas possam tentar usá-lo para recriar a ficção que justifique o preconceito contra judeus’, afirmou.

Majella e Sobel assistiram ao filme na noite de anteontem, em Brasília, em sessão especial promovida pela Fox Filmes do Brasil, à qual a imprensa não teve acesso. Produzido e dirigido por Mel Gibson, o filme entra em cartaz no Brasil no próximo dia 19.

Principais representantes das religiões católica e judaica no Brasil, os dois concordam em um aspecto: o filme é violento do início ao fim. Falado em aramaico e latim, línguas da Palestina naquela época, o filme começa com a prisão de Jesus, no jardim Getsêmani, no monte das Oliveiras, e mostra seu julgamento, martírio e crucificação de forma crua.

Majella evitou posicionar-se claramente sobre o filme, respondendo com evasivas quando questionado se havia gostado de ‘A Paixão de Cristo’, se ele era fiel à história ou ainda se era apelativo. Por exemplo: questionado se havia gostado do filme, respondeu com uma pergunta: ‘Gostar em que sentido?’.

O bispo repetiu diversas vezes que estava chocado e que o filme é cruel. Quanto a ser anti-semita, discorda: ‘Não se pode tirar essa conclusão, de modo nenhum’. Segundo ele, o filme não responsabiliza diretamente os judeus pela morte de Jesus, como vêm argumentando representantes da religião judaica nos EUA.

Majella afirmou também que padres e bispos não vão fazer propaganda do filme aos fiéis da Igreja Católica. Não vão recomendar que o vejam nem deixar de recomendar, disse. Ele assistiu ao filme acompanhado de toda a direção da CNBB, formada por 41 bispos, que está em Brasília para a reunião anual do conselho.

‘Fiquei repugnado com a falta de fundamentação histórica do filme, a subjetividade e a violência do início ao fim’, disse o rabino Sobel. Segundo ele, os últimos papas, especialmente o atual, João Paulo 2º, isentaram os judeus pela morte de Cristo, e não é um filme de duas horas que vai prejudicar o relacionamento harmonioso entre cristãos e judeus.

Sobel culpa os romanos pela morte de Cristo. Quanto ao relato dos evangelhos que compõem o Novo Testamento (Mateus, Marcos, Lucas e João), que acusam tanto as autoridades judaicas quanto o povo judeu, o rabino afirmou que não são confiáveis.

‘Os evangelhos não são documentos históricos. Os evangelistas não testemunharam pessoalmente os acontecimentos descritos. São narrativas que podem ter sido facilmente distorcidas.’

O filme foi liberado pelo Ministério da Justiça para maiores de 14 anos. O ministério informou que qualquer alteração nessa decisão só será feita se houver decisão judicial nesse sentido. Nenhum cidadão, segundo o ministério, tem a prerrogativa de pedir a proibição de um filme ou sua reclassificação, como fez o advogado e psicólogo Jacob Goldberg.

Ingressos

Até a manhã de ontem, a rede UCI havia vendido cerca de 5.000 ingressos antecipados para o filme. A compra pode ser feita nas bilheterias dos cinemas ou pelo site www.ucicinemas.com.br.’



Luis Fernando Verissimo

‘Os joelhos de Cristo’, O Estado de S. Paulo, 14/03/04

‘Fui católico praticante até os 14 ou 15 anos, por influência da minha mãe, depois virei agnóstico como o meu pai. Lembro que o que mais me impressionava no grande crucifixo da igreja do bairro que freqüentávamos eram os joelhos esfolados de Cristo. Mais do que as mãos e os pés pregados na cruz e a coroa de espinhos, talvez porque joelhos lanhados fizessem parte da minha experiência de guri e aquela fosse uma dor que eu também conhecia. O Cristo crucificado tinha a sentida solidariedade de um jogador de futebol de calçada.

A Igreja Católica tem uma plasticidade que as outras não têm, e boa parte da sua iconografia é de imagens sangrentas que realçam o martírio dos sentidos ao mesmo tempo que espiritualizam a sensualidade, ou erotizam a espiritualidade. Quando Salvador Dalí pintou o seu Cristo crucificado sem chagas e quase feminino, que escandalizou tanta gente, estava resgatando a espiritualidade de Cristo do seu dilaceramento sangrento e a carnalidade do seu martírio. O que está escandalizando parte da crítica nesse filme do Mel Gibson sobre a Paixão de Cristo é a sua extrema violência, a sua redução da mensagem cristã ao dilaceramento, com sangue esguichando. O jornalista Cristopher Hitchens chegou a chamá-lo de um filme sadomasoquista feito para quem gosta de ver homens seminus apanhando.

A idéia de Gibson parece ser que o martírio é a mensagem, que o mundo cristão precisa não de outra fantasia sobre o Jesus histórico e político, como fez o Scorcese, ou outra pieguice inspiradora como os antigos superespetáculos bíblicos de Hollywood, mas um pseudodocumentário que lembre o terror que foi o sacrifício real do Cristo até o último prego. E – segundo outros protestos contra o filme – faça questão de lembrar quem foram os responsáveis por isto. Gibson se defende da acusação de anti-semitismo mas, pelo que se lê, o filme recorre a estereótipos raciais para caracterizar os judeus que exigiam a morte de Cristo e inocenta os romanos, que, afinal, só estariam lá como os americanos no Iraque, sem participação em acertos de contas locais. O pai de Gibson é um anti-semita declarado e o próprio Gibson é de uma corrente ultraconservadora da Igreja, e o filme vem recebendo elogios de líderes religiosos da direita e atraindo multidões nos Estados Unidos, presumivelmente não só de sadomasoquistas.

O crítico do ‘New York Times’ Frank Rich, comentando o filme e o seu sucesso, escreveu que, pela primeira vez na vida, se sente ameaçado como um judeu americano na sua terra. Diz-se que o fundamentalismo cristão americano apóia a extrema direita israelense porque, assim como os judeus são os responsáveis pela crucificação de Cristo e portanto pelo cristianismo, um Armagedão no Oriente Médio trará o fim dos tempos, com a conversão dos judeus e o triunfo definitivo de Cristo. Frank Rich deve se sentir ameaçado também como um homem racional num mundo cada vez mais maluco

Enfim, já abandonei o monoteísmo e também não posso dar palpite sobre os acertos de contas dos outros mas acho que o que se precisa, mesmo, não é nenhuma nova catarse pela violência e pelo ódio mas de solidariedade universal ao nível mais baixo e humano possível: ao nível do joelho esfolado de todo o mundo.’



Jaime Biaggio

‘Sangue de Jesus tem poder’, O Globo, 14/03/04

‘Com os diálogos em hebraico, latim e aramaico, a violência extrema e a antipatia dos judeus, ‘A Paixão de Cristo’, de Mel Gibson, que estreou dia 25 de fevereiro nos EUA e chega aos cinemas brasileiros na próxima sexta-feira, é, no fim das contas, um megassucesso. Sim, mega: ultrapassou a marca de US$ 200 milhões arrecadados na bilheteria americana (US$ 214 milhões até o fim de semana passado), o que o coloca na esfera dos blockbusters -pipoca de verão. A Newmarket Films, a pequena companhia independente que topou o desafio de lançar o filme – que parecia dos mais difíceis – quando todos os tradicionais estúdios de Hollywood o recusaram, já faz cálculos otimistas de que o filme poderá chegar à casa do bilhão de dólares na bilheteria mundial, um território até aqui exclusivo de ‘Titanic’ e do terceiro capítulo da saga ‘O Senhor dos Anéis’, ‘O retorno do rei’.

A polêmica que fez do filme notícia constante durante os meses entre o fim das filmagens e o lançamento fez seu papel até aqui – além das acusações de anti-semitismo que já começam a achar vozes dispostas a ecoá-las no Brasil, há a repulsa dos que consideram o grau de violência das cenas do martírio de Cristo de um sadismo doentio. Agora, entram o marketing e o merchandising, ultra-sofisticado nos EUA, com direito a uma linha de jóias inspiradas no filme, manufaturadas por uma joalheria especializada em peças de inspiração religiosa, a Bob Siemon Designs. Para não falar nas canecas, nos chaveiros etcs e tais.

Ainda que no Brasil não haja previsão de lançamento de quaisquer produtos inspirados no filme, nem por isso ‘A Paixão de Cristo’ deixa de ser um produto de forte expectativa comercial para a filial brasileira da 20th Century Fox, que distribui aqui o filme. Será um lançamento de mais de 300 cópias, segundo declarações do diretor-geral da companhia, Marcos Oliveira, ao boletim de mercado ‘Filme B’. Também os exibidores apostam no filme: tanto a Cinemark quanto o Grupo Severiano Ribeiro e a UCI estão vendendo ingressos para as sessões antecipadamente. A rede Cinemark, líder do mercado no país, já vendeu cerca de dois mil ingressos antecipados (nas bilheterias de alguns de seus multiplex, entre eles os de Botafogo e do shopping Downtown, e pela internet) e tem até o momento 20 pedidos de reservas de sala para sessões exclusivas. A UCI teve cinco mil pedidos de reserva de ingressos só nos primeiros cinco dias (o método é o mesmo adotado pela Cinemark). Nos cinemas e no site do Grupo Severiano Ribeiro, a venda antecipada começou sexta-feira.’



Cora Rónai

‘Tortura explícita e muita fé… no marketing’, O Globo, 14/03/04

‘Antes de assistir à ‘Paixão de Cristo’, eu já estava impressionada com a facilidade com que Mel Gibson montou a sua máquina de marketing; como foi criando as armadilhas mais transparentes; e como os alvos para os quais essas armadilhas foram montadas (mídia inclusive) nelas caíram obedientemente, sem pensar duas vezes. Aparentemente, aliás, sem sequer pensar. Agora, tendo assistido ao magnum opus de Gibson, minha admiração pelo marqueteiro não tem limites. Não é qualquer um que consegue transformar em assunto de primeira página um filme de quinta, sem vestígios de roteiro ou qualquer carga dramática; não é qualquer um que consegue criar uma polêmica religiosa a partir de um filme-pancadaria bizarro em que, contrariando todas as normas do gênero, apenas um dos lados apanha.

‘A Paixão de Cristo’ começa com a última noite de Jesus no Monte das Oliveiras. O clima é soturno e, sobretudo, muito, muito canastra. ‘Interpretação’, na cartilha de Mel Gibson, não é propriamente uma atividade sutil. Logo Judas vai receber os seus 30 dinheiros e, na seqüência, a guarda aparece para levar Cristo ao seu destino. É uma abertura tensa, que pressupõe que todos os espectadores conhecem, de cor e salteado, a sucessão de eventos que levou a este ponto. Isso provavelmente é verdade – mas, ainda assim, falta ao filme uma raiz histórica ou um mínimo de dialética que justifiquem o que acontece depois dos seus dez primeiros minutos: uma longa sessão de tortura explícita e contínua, de um mau gosto inenarrável. Para dizer pouco.

Resultado: duas horas macabras de violência gratuita, com sangue aos borbotões, carne estraçalhada, pedaços de pele arrancados ou pendentes, costelas à vista. Enfim, como prova a bilheteria estratosférica, um programão para o público que cresceu apreciando Jason e Freddy Krueger.

Mais um vendilhãono templo

Diante de violência tão repulsiva, é impossível entender o porquê da celeuma religiosa – até para a judia que vos tecla. Nada neste filme é relevante, a não ser essa violência em estado bruto, ampliada nos closes, esmiuçada nos detalhes, nojenta em todos os sentidos. Que ninguém se iluda: ela, e apenas ela, é o grande ponto de venda do filme.

O que incomoda além de qualquer medida não é como os judeus ou os romanos ou mesmo os discípulos são apresentados, mas sim a hipocrisia que transveste de fé a exploração do que a Humanidade tem de pior, para não falar no descarado comercialismo que mal se disfarça por trás da iniciativa supostamente ‘nobre’.

Se a motivação de Mel Gibson fosse de fato religiosa, a primeira coisa a fazer seria expulsar os vendilhões do templo, e não se juntar a eles, colhendo os frutos do merchandising duvidoso de cravos e canecas, coroas de espinhos e camisetas (pequena amostra na capa deste caderno); ou, então, aceitar a palavra de Jesus, que falava em amor, e não em violência. Já se a idéia básica fosse mostrar à Humanidade o verdadeiro sofrimento do Cristo, o filme seria exibido gratuitamente, como são gratuitamente distribuídos tantos milhões de bíblias pelo mundo afora; ou, no mínimo, passaria a ser gratuito, ou quase isso, assim que Gibson, o Evangelista, tivesse recuperado o seu investimento inicial de US$ 30 milhões. No momento, porém, ele já está num lucro de US$ 70 milhões – e, aí, não há como não concordar com Millôr Fernandes, que desconfia de todo idealista que lucra com o seu ideal. Ainda mais na primeira semana de lançamento.

Ao sair do cinema, o Bonequinho cantava: ‘Ó, Virgem Santa, rogai por nós, rogai por nós, ó Virgem Santa, pois precisamos de Paz, ó Virgem…’ Louco por uma dose de Zeffirelli.’