Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

José Queirós

“1. ‘As yields das obri­ga­ções espa­nho­las a 10 anos encos­ta­ram aos 6,5%, e o spread ou dife­ren­cial face às bunds ale­mãs, que ser­vem de refe­rên­cia para os inves­ti­do­res, atin­giu os 462 pon­tos base, acima do limiar de 450 pon­tos exi­gi­dos pela LCH Cle­ar­net’ (PÚBLICO, Des­ta­que de 17 de Novem­bro). ‘(…) Não haverá con­di­ções para incluí­rem no rácio Core Tier 1, que terá de che­gar a 9% no final do ano, os resul­ta­dos que pode­rão vir a exi­gir, ou não, neces­si­da­des adi­ci­o­nais de capi­tal’ (outro texto do mesmo Des­ta­que). São dois exem­plos recen­tes, e nem sequer dos mais agres­si­vos, que desa­fi­a­rão a boa com­pre­en­são das notí­cias por mui­tos lei­to­res menos fami­li­a­ri­za­dos com a lin­gua­gem téc­nica uti­li­zada. Em ambos os casos, o sig­ni­fi­cado exacto das fra­ses cita­das não pode ser alcan­çado pelo con­texto em que estão inseridas.

‘Infor­mar é comu­ni­car e fazer com­pre­en­der’, lê-se no Livro de Estilo deste jor­nal, para defen­der que a cla­reza é um valor essen­cial do jor­na­lismo de qua­li­dade. Notí­cias que não tor­nem inte­li­gí­vel para a gene­ra­li­dade dos lei­to­res o que rela­tam, qual­quer que seja a com­ple­xi­dade do assunto, são notí­cias falhadas.

Citei dois exem­plos da área da infor­ma­ção finan­ceira por serem dos que terão maior visi­bi­li­dade num tempo em que a tur­bu­lên­cia dos cha­ma­dos ‘mer­ca­dos’ mais inter­fere na vida de todos, levando mui­tos lei­to­res sem conhe­ci­men­tos espe­ci­a­li­za­dos neste domí­nio a pro­cu­rar com­pre­en­der todos os dados das notí­cias que lhes são for­ne­ci­das. É ver­dade, e é um mérito que deve ser reco­nhe­cido ao PÚBLICO, que se nota uma pre­o­cu­pa­ção dos jor­na­lis­tas da área da Eco­no­mia em des­co­di­fi­car com frequên­cia con­cei­tos, expres­sões ou ter­mos estran­gei­ros de uso menos cor­rente, atra­vés de expli­ca­ções colo­ca­das nos tex­tos entre parên­te­ses, ou de peças des­ti­na­das a esclarecê-los. As recla­ma­ções que me che­gam indi­cam, porém, que deve­riam fazê-lo de forma sis­te­má­tica — é errado par­tir do prin­cí­pio que o lei­tor viu e recorda uma expli­ca­ção ante­ri­or­mente publi­cada —, ou mesmo obri­ga­tó­ria, quando, como hoje acon­tece mui­tas vezes por razões óbvias, os seus tex­tos são cha­ma­dos a inte­grar a área de Des­ta­que que o jor­nal dedica aos temas de inte­resse geral mais actuais.

2. Ques­tão dife­rente, mas rela­ci­o­nada com a ante­rior, é a do recurso, que mui­tos lei­to­res con­si­de­ram exces­sivo, ao uso de vocá­bu­los estran­gei­ros nas pági­nas do jor­nal. Dois exem­plos, de entre quei­xas que me che­ga­ram: ‘Por­que insiste o PÚBLICO em usar ter­mos em inglês, até mesmo para des­cre­ver o que é per­fei­ta­mente alcan­çá­vel em por­tu­guês?’ (Car­los Coim­bra, a pro­pó­sito de um título do Des­porto em que se falava de ‘final four’ em vez de meias-finais de uma com­pe­ti­ção). ‘Não con­sigo com­pre­en­der como é tão neces­sá­rio recor­rer a estran­gei­ris­mos (…) para expor ideias e opi­niões. (…) Com­pro o jor­nal e não per­cebo o que lá vem escrito’ (Manuel Dinis, agas­tado com o uso de expres­sões como opting out ou level playing field no texto de um colunista).

O Livro de Estilo do PÚBLICO reco­menda ‘bom gosto’ e ‘bom senso’ no uso de estran­gei­ris­mos. Segue a lição do filó­logo Rodri­gues Lapa, para quem o estran­gei­rismo era ‘um fenó­meno natu­ral’ — atra­vés do qual os povos adop­tam, ‘com os pro­du­tos e ideias vin­das de fora, cer­tas for­mas de lin­gua­gem que lhes não são pró­prias’ —, e até van­ta­joso para a comu­ni­ca­ção, desde que ‘não exceda os limi­tes do razoá­vel e não afecte a pró­pria essên­cia do idi­oma naci­o­nal’. O autor da Esti­lís­tica da Lín­gua Por­tu­guesa defen­dia tam­bém que, ‘quando o estran­gei­rismo assen­tou já raí­zes na lín­gua naci­o­nal’, se deve­ria ‘vesti-lo à por­tu­guesa’ (a este res­peito, remeto os inte­res­sa­dos para uma men­sa­gem de José Mário Costa, dis­po­ní­vel emblogues.publico.pt/provedordoleitor, em que este res­pon­sá­vel pelo site Ciber­dú­vi­das da Lín­gua Por­tu­guesa explica, à luz des­tes prin­cí­pios e a pro­pó­sito do tema tra­tado na minha cró­nica ante­rior — o uso do verbo’tuitar’ —, as regras reco­men­da­das para o apor­tu­gue­sa­mento ou não de estran­gei­ris­mos que já entra­ram no nosso voca­bu­lá­rio comum).

O jor­nal deve guiar-se por cri­té­rios cla­ros e coe­ren­tes que asse­gu­rem na medida do pos­sí­vel a uni­for­mi­za­ção da gra­fia dos ter­mos de ori­gem estran­geira. O Livro de Estilo aceita nume­ro­sos estran­gei­ris­mos já aco­lhi­dos na nossa lín­gua (numa lista alfa­bé­tica que vai de apartheid a zap­ping), esta­be­le­cendo que devem ser sem­pre gra­fa­dos em itá­lico (abre excep­ção para alguns ter­mos ‘recor­ren­tes’ sem ‘cor­res­pon­dente em por­tu­guês’, como design ou jazz).

Julgo que os pri­mei­ros cri­té­rios a obser­var são o da com­pre­en­são (um termo estran­geiro gra­fado na lín­gua ori­gi­nal deve ser de uso cor­rente, sendo pre­fe­rí­vel em caso con­trá­rio recorrer-se à tra­du­ção ou, quando neces­sá­rio, à expli­ca­ção do seu sig­ni­fi­cado) e o da neces­si­dade ou uti­li­dade (‘não faz sen­tido’ escre­vertsu­nami em vez de mare­moto, defende por exem­plo o lei­tor Manuel Pinheiro, que estende a sua crí­tica ao uso de outros ter­mos que vai encon­trando regu­lar­mente nes­tas pági­nas, como por exem­plo upgrade). Con­ven­cido de que têm razão os lei­to­res que cri­ti­cam o excesso de estran­gei­ris­mos, Auré­lio Moreira, da equipa de revi­so­res do PÚBLICO, cri­tica por seu lado que se escreva check­point em vez de posto de con­trolo, ou sni­per em vez de ati­ra­dor furtivo.

3. A rapi­dez com que pala­vras estran­gei­ras entram hoje no nosso voca­bu­lá­rio cor­rente desac­tu­a­liza em pouco tempo qual­quer lista nor­ma­tiva exis­tente numa redac­ção, obri­gando mui­tas vezes a deci­dir caso a caso a uti­li­za­ção do vocá­bulo ori­gi­nal, o seu apor­tu­gue­sa­mento ou uma pos­sí­vel tra­du­ção. A direc­tora doPÚBLICO, Bár­bara Reis, explica que essas situ­a­ções são ‘muito deba­ti­das na redac­ção’, mas ‘não há, depois, um pro­cesso de fixa­ção’. Penso, no entanto, que seria útil à coe­rên­cia da escrita no jor­nal que esse pro­cesso fosse levado a cabo peri­o­di­ca­mente, actualizando-se a lista de estran­gei­ris­mos e neo­lo­gis­mos con­tem­pla­dos no Livro de Estilo.

Esse esforço seria espe­ci­al­mente útil no que res­peita à tor­ren­cial entrada no voca­bu­lá­rio comum de ter­mos liga­dos ao uni­verso dos com­pu­ta­do­res e da Inter­net. Em rela­ção a cada um deles, deve­ria ser esta­be­le­cido quais terão de ser tra­du­zi­dos (como ser­ver para ser­vi­dor, para não falar de aber­ra­ções como ‘dele­tar’ em vez de apa­gar), quais deve­rão man­ter a gra­fia inglesa (cer­ta­mente nomes pró­prios como Twit­ter e Face­book, mas tam­bém expres­sões como online?), quais os que devem ser con­si­de­ra­dos neo­lo­gis­mos já per­fei­ta­mente apor­tu­gue­sa­dos (como blo­gue e tal­vez cli­car), e quais os casos em que deva ou não aceitar-se a con­vi­vên­cia do estran­gei­rismo com a forma por­tu­guesa (brow­ser e nave­ga­dor, link e hiper­li­ga­ção, site e sítio?). Devendo ter-se em conta que a adap­ta­ção grá­fica à foné­tica por­tu­guesa de neo­lo­gis­mos impor­ta­dos de outras lín­guas tende a ser mais lenta e con­ser­va­dora no por­tu­guês euro­peu do que na sua vari­ante ame­ri­cana (‘saite’, ‘tui­tar’, etc.).

Não pode­ria o PÚBLICO dotar-se de um ‘glos­sá­rio da Inter­net’ que garan­tisse a nor­ma­li­za­ção lin­guís­tica e grá­fica desta terminologia?

…ou antes pelo contrário

Lei­tor do PÚBLICO ‘desde a sua apa­ri­ção’, Ale­xan­dre Sol­leiro ‘não espe­rava, aos 84 anos, ler num jor­nal de refe­rên­cia’ — na última edi­ção da Pública (20.11) — ‘a res­posta que a Senhora Raquel Freire, cine­asta de 39 anos’, deu a uma per­gunta cons­tante do inqué­rito cri­ado para a revista domi­ni­cal por Miguel Este­ves Car­doso, Pedro Mexia e José Diogo Quin­tela. Expli­cou tratar-se da res­posta à per­gunta ‘Sem ser essa mari­quice de mor­rer a dor­mir, como é que pre­fe­ria morrer?’.

Fui ler. A cine­asta inqui­rida satis­fi­zera nes­tes ter­mos a curi­o­si­dade dos inqui­ri­do­res: ‘Os mari­cas que conheço gos­ta­riam de mor­rer como eu: a foder’. Inco­mo­dado pela pre­fe­rên­cia mani­fes­tada ou pela pala­vra uti­li­zada, pos­si­vel­mente por ambas, o lei­tor ques­ti­o­nou a trans­cri­ção da res­posta de Raquel Freire num ‘jor­nal como o PÚBLICO’.

Joana Ama­ral Car­doso, sube­di­tora da Pública, explica que a publi­ca­ção da frase ‘foi devi­da­mente pon­de­rada’ e ‘dis­cu­tida (…) com mem­bros da direc­ção edi­to­rial’, por se admi­tir — como com­prova a recla­ma­ção que recebi — que os ‘ter­mos uti­li­za­dos (…) pudes­sem ferir a sus­cep­ti­bi­li­dade de alguns lei­to­res’. Sendo o inqué­rito em causa com­posto por ‘ques­tões em tom pro­vo­ca­dor ou mesmo des­con­cer­tante’, mar­ca­das por ‘alguma irreverência’,’entendeu-se que [a cine­asta] estava a rea­gir, de forma pes­soal, à pro­vo­ca­ção que a pró­pria per­gunta encerra em si, pela ter­mi­no­lo­gia que uti­liza’. Por isso, e por ‘res­peito edi­to­rial’ pelas res­pos­tas rece­bi­das, se deci­diu publi­car a frase questionada.

Con­cordo com a deci­são e nem me parece admis­sí­vel que pudesse ter sido outra. Reco­nhe­cendo que a publi­ca­ção de pala­vras ou expres­sões que os espe­ci­a­lis­tas da lín­gua desig­nam por vul­ga­ris­mos cho­cará sem­pre alguns lei­to­res, gos­ta­ria de enqua­drar o caso nos valo­res que devem reger o bom jor­na­lismo e que incluem, natu­ral­mente, a civilidade.

As regras em vigor no PÚBLICO (que por vezes são inde­vi­da­mente con­tor­na­das) indi­cam, e bem, que o calão (‘lin­gua­gem gros­seira ou ordi­ná­ria’, segundo o Livro de Estilo) ‘só é admis­sí­vel se for essen­cial à fide­li­dade da infor­ma­ção — e após con­sulta ao edi­tor’. Ou seja, o seu uso deve ser repro­vado quando é gra­tuito, e con­sen­tido nos raros casos em que é exi­gido para a boa com­pre­en­são do que se relata ou moti­vado por cri­té­rios exi­gen­tes de rele­vân­cia e res­peito pela ver­dade. As mes­mas regras esta­be­le­cem, mais uma vez bem, que nes­ses casos deve ser evi­tado o recurso hipó­crita às reti­cên­cias (se se jus­ti­fica publi­car a pala­vra ‘foder’, não se escreve ‘f…’).

Isto no que se refere aos tex­tos de jor­na­lis­tas e cola­bo­ra­do­res. Neste caso, a ques­tão era outra: tratava-se de res­pei­tar ou cen­su­rar a opi­nião e expres­são livres de alguém que acei­tara res­pon­der a um inqué­rito que par­tira da ini­ci­a­tiva do pró­prio jor­nal. A civi­li­dade acon­se­lhava que se fizesse o que se fez. Inde­pen­den­te­mente do que se pense sobre o inqué­rito da Pública, quem faz per­gun­tas pro­vo­ca­do­ras tem de acei­tar res­pos­tas provocantes.