Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

José Queirós

“Uma nova cate­go­ria polí­tica irrom­peu neste país, com algum estrondo mediá­tico, no último fim-de-semana: os ‘cava­quis­tas anó­ni­mos’. Têm opi­niões for­tes e serão influ­en­tes, como atesta o facto de a reper­cus­são das suas teses e pro­pos­tas — dadas a conhe­cer com grande des­ta­que neste jor­nal — ter mar­cado a actu­a­li­dade nos dias sub­se­quen­tes. Con­de­nam a actu­a­ção do governo em fun­ções e pas­sam a men­sa­gem de que é essa, tam­bém, a posi­ção do Pre­si­dente da Repú­blica. Não se sabe é quem são, o que torna inviá­vel confrontá-los com as ideias que defen­dem. Polí­ti­cos, poli­tó­lo­gos e comen­ta­do­res anda­ram a dis­cu­tir, nos últi­mos dias, a men­sa­gem de ‘per­so­na­li­da­des’ sem rosto.

Muito se dis­cu­tiu, tam­bém — e é disso que devo ocupar-me neste espaço —, a legi­ti­mi­dade de a imprensa se ser­vir de fon­tes anó­ni­mas para lan­çar no espaço público, como facto incon­tro­verso, o que nas pági­nas do PÚBLICO foi defi­nido como uma ace­le­ra­ção da ‘rota de coli­são’ entre o Pre­si­dente da Repú­blica e o primeiro-ministro. Nume­ro­sos lei­to­res cri­ti­ca­ram com vee­mên­cia essa opção edi­to­rial. Uma men­sa­gem assi­nada por Manuel Vaz resume as ques­tões colo­ca­das: ‘Pode (…) uma notí­cia falar em ‘per­so­na­li­da­des do cava­quismo’ sem indi­car uma única per­so­na­li­dade? Pode um comen­tá­rio polí­tico fun­dar um título de pri­meira página, ainda assim forçado?’.

Recordem-se os fac­tos. No último domingo, o PÚBLICO anun­ciou em título prin­ci­pal na capa: ‘Cava­quis­tas que­rem que Vítor Gas­par saia [do Governo]’. A afir­ma­ção era sus­ten­tada numa peça em que a jor­na­lista São José Almeida garan­tia que ‘é abso­luta a dis­cor­dân­cia de algu­mas das mais pro­e­mi­nen­tes per­so­na­li­da­des do cava­quismo e do pró­prio Pre­si­dente da Repú­blica sobre a con­du­ção da polí­tica orça­men­tal (…) pelo Governo’ e acres­cen­tava saber que,’entre essas per­so­na­li­da­des que apoiam Cavaco Silva, há quem defenda já que o Governo deve subs­ti­tuir o minis­tro das Finanças’.

Na segunda-feira, a Pre­si­dên­cia da Repú­blica veio des­men­tir publi­ca­mente as ‘notí­cias’ que ‘ten­tam envol­ver o Pre­si­dente’ em ‘inter­pre­ta­ções espe­cu­la­ti­vas sobre o rela­ci­o­na­mento entre órgãos de sobe­ra­nia’, asse­gu­rando que ‘não têm fun­da­mento’ (em causa estava, para além da peça do PÚBLICO, uma notí­cia do Expresso que refe­ria uma ‘divi­são pro­funda entre São Bento e Belém’). Um dia depois, o PÚBLICOfez saber que man­ti­nha o teor da notí­cia que publi­cara, expli­cando que as suas fon­tes tinham sido ‘per­so­na­li­da­des pró­xi­mas de Cavaco Silva que fala­ram sob ano­ni­mato’. E lan­çava um inqué­rito na edi­ção on line, per­gun­tando aos lei­to­res: ‘Acha que Vítor Gas­par deve demitir-se depois das crí­ti­cas de apoi­an­tes de Cavaco Silva à polí­tica que con­si­de­ram ser ultra­li­be­ral do minis­tro das Finanças?’.

Con­fron­tei a autora da peça da edi­ção de domingo — bem como a direc­tora do jor­nal, Bár­bara Reis, e a edi­tora de Polí­tica, Leo­nete Bote­lho — com as crí­ti­cas dos lei­to­res. Per­gun­tei, nome­a­da­mente, ‘por que é que as infor­ma­ções e opi­niões rela­ta­das na notí­cia não são atri­buí­das a qual­quer fonte iden­ti­fi­cada’. As res­pos­tas não escla­re­cem pro­pri­a­mente, a meu ver, essa ques­tão con­creta. São José Almeida diz con­si­de­rar ‘sagrado’ o ‘ano­ni­mato das fon­tes’ e ‘abso­lu­ta­mente legí­timo’ o ‘jor­na­lismo com fon­tes anó­ni­mas’, podendo concluir-se que vê como ‘nor­mal’ a não iden­ti­fi­ca­ção das fon­tes refe­ri­das no texto que assi­nou. Bár­bara Reis e Leo­nete Bote­lho expli­cam que a fór­mula ‘pro­e­mi­nen­tes cava­quis­tas’ foi usada ‘para con­cre­ti­zar ao máximo a que tipo de fon­tes se refe­ria a notí­cia, sem que­brar o exi­gido ano­ni­mato’, e ‘por­que é exac­ta­mente isso que estas fon­tes são: figu­ras de topo daquilo a que em gíria jor­na­lís­tica se chama ‘cava­quismo’, pes­soas pró­xi­mas de Cavaco Silva tanto no pas­sado como no presente’.

Os lei­to­res ficam assim a saber que o ano­ni­mato foi ‘exi­gido’ pelas fon­tes. Mas não ficam a saber por que motivo o PÚBLICO acei­tou a exi­gên­cia. A direc­tora e a edi­tora invo­cam uma norma do Livro de Estilo do jor­nal, segundo a qual, ‘quando o jor­na­lista está em con­di­ções de assu­mir a infor­ma­ção – isto é, quando a con­fir­mou junto de várias fon­tes inde­pen­den­tes entre si, embora todas tenham exi­gido ano­ni­mato – deverá noticiá-la (…) sem neces­si­dade de recor­rer às (…) desa­cre­di­ta­das fór­mu­las do género ‘fonte digna de cré­dito’, ‘fonte segura’ ou ‘fonte pró­xima de’.’

Esta norma, con­tudo, não deve ser lida como um incen­tivo à acei­ta­ção do ano­ni­mato. O que ela diz, em refe­rên­cia às situ­a­ções excep­ci­o­nais em que será lícito recor­rer a fon­tes não iden­ti­fi­ca­das, é que o jor­nal deve assu­mir a sua pró­pria res­pon­sa­bi­li­dade pela vera­ci­dade do que publica, sem recurso a mule­tas des­ti­tuí­das de valor infor­ma­tivo. Trata-se, por outro lado, de uma norma que não deve ser con­si­de­rada iso­la­da­mente. O mesmo Livro de Estilo pres­creve que ‘a recusa de iden­ti­fi­ca­ção de uma fonte sem jus­ti­fi­ca­ção plau­sí­vel não é acei­tá­vel’, desa­con­se­lhando cla­ra­mente a acei­ta­ção do ano­ni­mato em maté­rias ‘em que a fonte nada tem a temer’.

É pre­ciso fri­sar que a pro­tec­ção das fon­tes — que deve ser ‘sagrada’, sim, para qual­quer jor­na­lista hon­rado — não foi cri­ada para ser­vir o jor­na­lismo que noti­cia a evo­lu­ção do jogo polí­tico numa demo­cra­cia. Ela existe para pro­te­ger a inte­gri­dade e a liber­dade das fon­tes que tor­nam pos­sí­vel à imprensa dar a conhe­cer à opi­nião pública casos de abuso de poder e outras situ­a­ções mere­ce­do­ras de repro­va­ção social ou alarme público, que de outra forma per­ma­ne­ce­riam ocul­tas por inte­resse de um qual­quer poder — polí­tico ou não, grande ou pequeno, público ou pri­vado, mas capaz de exer­cer repre­sá­lias sig­ni­fi­ca­ti­vas sobre quem divulga a informação.

É esse o seu sen­tido, e não o de escon­der a cara de quem quer par­ti­ci­par ou influir no com­bate polí­tico demo­crá­tico. Que ter­rí­veis repre­sá­lias têm afi­nal a temer os ‘cava­quis­tas anó­ni­mos’, para mais ‘pro­e­mi­nen­tes’, e dota­dos de ‘conhe­ci­men­tos e refle­xão pre­ci­sa­mente na área eco­nó­mica, quando não mesmo em finan­ças públi­cas’, que os impe­çam de assu­mir as suas opi­niões, aliás par­ti­lha­das por mui­tos outros por­tu­gue­ses, con­tra uma polí­tica que con­si­de­ram que ‘vai con­du­zir (…) à des­trui­ção da classe média’? Todos pode­re­mos ima­gi­nar o que os leva a acobertarem-se no ano­ni­mato, des­res­pei­tando a ética do debate demo­crá­tico e a sua pró­pria liber­dade cívica. Não serão moti­vos que o PÚBLICO deva aco­lher nem com­por­ta­men­tos que deva esti­mu­lar. Espe­ci­al­mente o PÚBLICO, que a pro­pó­sito da recusa de iden­ti­fi­ca­ção das fon­tes ‘sem jus­ti­fi­ca­ção plau­sí­vel’, assu­miu o com­pro­misso, no con­trato com os seus lei­to­res, de con­tri­buir para mudar ‘hábi­tos ins­ta­la­dos’ neste domínio.

Sig­ni­fica isto que não pode haver lugar, no jor­na­lismo polí­tico, ao recurso a fon­tes anó­ni­mas? Não neces­sa­ri­a­mente. São as regras que podem ser defi­ni­das, não as excep­ções. A regra em que se funda a con­fi­ança dos lei­to­res obriga a evi­tar a bana­li­za­ção do recurso ao ano­ni­mato. De cada vez que o faça, o jor­nal estará a pôr em jogo a sua cre­di­bi­li­dade. Por isso, as deci­sões a tomar face a um con­flito de valo­res, em que de um lado pese a defesa desse patri­mó­nio fun­da­men­tal de um jor­nal que é a sua cre­di­bi­li­dade, e do outro a rele­vân­cia de uma infor­ma­ção de inques­ti­o­ná­vel inte­resse público, são das obri­ga­ções mais exi­gen­tes que qual­quer res­pon­sá­vel edi­to­rial tem de enfren­tar. É pela qua­li­dade des­ses juí­zos que se pode ava­liar — não num único caso, mas de forma con­ti­nu­ada — a con­fi­ança que deve ser depo­si­tada num órgão de informação.

O PÚBLICO é para muita gente, lei­to­res habi­tu­ais ou não, um jor­nal de refe­rên­cia. São José Almeida é uma jor­na­lista expe­ri­ente e res­pei­tada. Mere­ciam as ‘reve­la­ções’ dos ‘cava­quis­tas anó­ni­mos’ que jor­nal e jor­na­lista cor­res­sem o risco de ver afec­tada a sua cre­di­bi­li­dade, como ine­vi­ta­vel­mente acon­tece em casos como este? Com os dados que tenho, julgo que não. Mas esse é um jul­ga­mento que deverá ser feito por cada lei­tor, e que o tempo geral­mente ajuda a clarificar.

Não está em causa a rele­vân­cia noti­ci­osa do ale­gado dis­tan­ci­a­mento de per­so­na­li­da­des liga­das a Cavaco Silva face à agenda ide­o­ló­gica ou às polí­ti­cas pro­mo­vi­das pelo governo de Pas­sos Coe­lho. No que res­peita ao pró­prio Pre­si­dente, são aliás conhe­ci­das, atra­vés de decla­ra­ções públi­cas, as suas reser­vas. Um jor­na­lista bem infor­mado tem à sua dis­po­si­ção, no PÚBLICO, espa­ços de aná­lise onde pode arti­cu­lar e dar a conhe­cer aos lei­to­res, com uti­li­dade, a sua inter­pre­ta­ção dos fac­tos e indí­cios de que dis­põe para qua­li­fi­car a ampli­tude desse distanciamento.

A subs­tân­cia da man­chete de domingo pas­sado acon­se­lha­ria a opção por um texto desse tipo. O que foi apre­sen­tado como notí­cia (e notí­cia prin­ci­pal do dia), é afi­nal o relato dos esta­dos de alma de uns quan­tos anó­ni­mos — cujas opi­niões o lei­tor comum não poderá, por isso mesmo, saber que peso têm — e uma sín­tese de infor­ma­ções de con­texto. O que sobra como novi­dade infor­ma­tiva é a afir­ma­ção (‘O PÚBLICOsabe…’) de que gente pró­xima de Cavaco quer ver afas­tado o minis­tro das Finan­ças. Estando todo o texto cons­truído de modo a suge­rir uma iden­ti­dade entre as posi­ções do Pre­si­dente e as dos seus igno­tos apoi­an­tes, esperar-se-ia que um dado dessa impor­tân­cia fosse sus­ten­tado em fac­tos comprováveis.

O futuro dirá tal­vez se o que se leu na man­chete não passa, como é legí­timo supor, de uma mera opi­nião (ou recado com vista a obter efei­tos polí­ti­cos), entre outras reco­lhi­das no bizarro mundo dos ‘cava­quis­tas anó­ni­mos’. Se assim for, nunca o título esco­lhido deve­ria ter sur­gido a enca­be­çar a man­cha infor­ma­tiva do jor­nal. Para o bom jor­na­lismo, ‘uma fonte anó­nima não tem opi­nião’. Dizem as nor­mas deon­to­ló­gi­cas do PÚBLICO (e aqui não há lugar a excep­ções) que o jor­nal ‘só repro­duz opi­niões que forem atri­buí­veis a fon­tes cla­ra­mente iden­ti­fi­ca­das’. O cami­nho con­trá­rio seria o da perda de cre­di­bi­li­dade — que demora a cons­truir mas pode perder-se num instante.”