Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

José Queirós

“Estão os emi­gran­tes por­tu­gue­ses a desis­tir do país? Esta­rão a crise e a perda de bene­fí­cios soci­ais a levar uma parte sig­ni­fi­ca­tiva des­ses nos­sos com­pa­tri­o­tas a optar pela resi­dên­cia per­ma­nente nos paí­ses de aco­lhi­mento, aban­do­nando a ideia de regres­sar a Por­tu­gal? É o que poderá concluir-se, à pri­meira vista, de uma pequena notí­cia publi­cada a 19 de Novem­bro na edi­ção online e reto­mada, no dia seguinte, de forma um pouco mais desen­vol­vida, no jor­nal impresso. O lei­tor José Pedro Tomás con­si­dera, con­tudo, que tal con­clu­são não resulta de modo evi­dente do que leu, e queixa-se de lacu­nas impor­tan­tes na notícia.

O texto colo­cado na Inter­net tinha por título Emi­gran­tes por­tu­gue­ses estão a 'desis­tir' do país, fór­mula que na edi­ção em papel se alar­gou para Emi­gran­tes por­tu­gue­ses estão a desis­tir do país e a pedir nova naci­o­na­li­dade, dei­xando cair pelo cami­nho as aspas antes uti­li­za­das no verbo desis­tir. Teve por ponto de par­tida uma infor­ma­ção divul­gada pelo Euros­tat (orga­nismo euro­peu res­pon­sá­vel pela infor­ma­ção esta­tís­tica) sobre a natu­ra­li­za­ção de emi­gran­tes nos paí­ses de des­tino. Segundo esses dados, refe­ren­tes a 2010, cerca de cinco mil por­tu­gue­ses pedi­ram nesse ano a naci­o­na­li­dade fran­cesa, enquanto 2200 toma­ram idên­tica ini­ci­a­tiva na Suíça, e mais de 1300 no Luxemburgo.

O PÚBLICO pediu uma inter­pre­ta­ção des­tes núme­ros a Pedro Góis, um inves­ti­ga­dor do Cen­tro de Estu­dos Soci­ais da Uni­ver­si­dade de Coim­bra, que con­si­de­rou tratar-se de 'dados novos, que tra­du­zem uma desis­tên­cia de Por­tu­gal', indi­cando que 'estes por­tu­gue­ses estão a tor­nar per­ma­nente a sua emi­gra­ção'. Res­sal­vando não conhe­cer o per­fil dos auto­res dos pedi­dos de natu­ra­li­za­ção, o inves­ti­ga­dor admi­tiu que, a tratar-se de emi­gran­tes mais anti­gos, a sua deci­são pode­ria estar asso­ci­ada a uma menor 'efi­cá­cia' dos 'sis­tema de saúde por­tu­gue­ses' e à 'deser­ti­fi­ca­ção'. Con­fron­tado com outros dados ante­ri­or­mente divul­ga­dos pelo Euros­tat, segundo os quais Por­tu­gal regis­tou no mesmo ano 21.800 pedi­dos de natu­ra­li­za­ção apre­sen­ta­dos por imi­gran­tes (com des­ta­que para os de cida­dãos bra­si­lei­ros e cabo-verdianos), con­si­de­rou que nes­ses casos se trata sobre­tudo de ten­tar obter a cida­da­nia euro­peia, com as ine­ren­tes van­ta­gens de cir­cu­la­ção legal.

Esta pequena notí­cia sus­ci­tou a José Pedro Tomás um bom número de ques­tões. Cito as prin­ci­pais: 'Por que é que estes são ‘dados novos’, se nin­guém indica os anti­gos valo­res? São mais ou menos os pedi­dos de natu­ra­li­za­ção do que os veri­fi­ca­dos nos anos ante­ri­o­res? A natu­ra­li­za­ção implica a perda de naci­o­na­li­dade por­tu­guesa na França ou na Suíça (já que no Luxem­burgo o pró­prio artigo diz que não implica)? Se não implica essa perda, por que é que a aqui­si­ção da naci­o­na­li­dade do país onde se reside implica ‘desis­tên­cia’ do país de que se é natu­ral? Por que é que os por­tu­gue­ses, quando se natu­ra­li­zam, ‘desis­tem’ de Por­tu­gal, e os estran­gei­ros que se natu­ra­li­zam por­tu­gue­ses (…) ape­nas que­rem ‘ter liber­dade de cir­cu­la­ção na Europa e EUA’?'.

Segundo a autora da peça, Natá­lia Faria, 'o que o PÚBLICO pro­cu­rou fazer foi ‘ofe­re­cer’ uma inter­pre­ta­ção' dos núme­ros divul­ga­dos pelo Euros­tat, para 'for­ne­cer ao lei­tor pis­tas de com­pre­en­são sobre o res­pec­tivo sig­ni­fi­cado'. Por isso ques­ti­o­nou um espe­ci­a­lista, que, 'esse sim, os leu como sinal de que estes emi­gran­tes estão a ‘desis­tir’ do país'. Con­si­de­rando ser essa 'uma inter­pre­ta­ção válida', a jor­na­lista reco­nhece que se pode­riam 'ter pro­cu­rado outras inter­pre­ta­ções', mas explica que 'tal nem sem­pre é com­pa­gi­ná­vel com a lógica e os rit­mos do jor­na­lismo online'. Razão pela qual, acres­centa, 'tam­bém não se pro­cu­rou ir mais além na con­tra­po­si­ção des­tes núme­ros com os rela­ti­vos a anos ante­ri­o­res', o que exi­gi­ria 'outro inves­ti­mento em ter­mos de tempo e recursos'.

Por mim, creio que as ques­tões colo­ca­das pelo lei­tor fazem todo o sen­tido. Ante­ci­par per­gun­tas como essas — e pro­cu­rar responder-lhes — na ela­bo­ra­ção de uma peça infor­ma­tiva base­ada num ele­mento de actu­a­li­dade (neste caso o número de natu­ra­li­za­ções no espaço euro­peu, que aca­bara de ser divul­gado) é o que é pró­prio do jor­na­lismo exi­gente. A rele­vân­cia da infor­ma­ção esta­tís­tica sobre as natu­ra­li­za­ções em 2010 depende natu­ral­mente da com­pa­ra­ção com núme­ros ante­ri­o­res. De igual modo, saber se as natu­ra­li­za­ções no país de des­tino repre­sen­tam ou não, no seu con­junto, ope­ra­ções de aqui­si­ção de dupla naci­o­na­li­dade, tem impor­tân­cia para a ava­li­a­ção do sig­ni­fi­cado da infor­ma­ção. Em ambos os casos, trata-se do valor acres­cen­tado que deve carac­te­ri­zar as notí­cias 'com­ple­tas' que o PÚBLICO pro­mete aos seus leitores.

O lei­tor ques­ti­ona igual­mente a inter­pre­ta­ção dos dados patente nos títu­los, ou melhor, a sua insu­fi­ci­ente fun­da­men­ta­ção no texto. Pode­riam, de facto, ter sido con­si­de­ra­das outras hipó­te­ses expli­ca­ti­vas. Uma delas é óbvia e surge num comen­tá­rio à notí­cia online: 'A ideia de que pedir dupla naci­o­na­li­dade é desis­tir de Por­tu­gal é ridí­cula. Ser cida­dão do país de resi­dên­cia tem bene­fí­cios que não estão dis­po­ní­veis para emi­gran­tes não natu­ra­li­za­dos'. Con­vém notar que, se a inter­pre­ta­ção con­tes­tada está devi­da­mente atri­buída a um espe­ci­a­lista, o texto e o título transformam-na em expli­ca­ção única, asso­ci­ando o jor­nal a uma opi­nião legí­tima, mas que não resulta de pes­quisa sufi­ci­ente e docu­men­tada na peça. O que é ainda refor­çado, na ver­são impressa, pela queda das aspas na pala­vra 'desis­tir', dando ao título esco­lhido a natu­reza de uma infor­ma­ção vei­cu­lada pelo PÚBLICO.

Não se trata, aqui, de um pro­blema espe­cí­fico do noti­ciá­rio online — na ver­dade, o texto publi­cado no dia seguinte no jor­nal impresso tam­bém não res­pon­dia às ques­tões (per­ti­nen­tes) colo­ca­das pelo lei­tor. O motivo invo­cado para se ter pres­cin­dido de dili­gên­cias que teriam per­mi­tido aper­fei­çoar a peça levanta, no entanto, uma ques­tão de fundo: deve ser aceite a ideia de que fazer notí­cias com­ple­tas 'nem sem­pre é com­pa­gi­ná­vel com a lógica e os rit­mos do jor­na­lismo online'?

Afastando-me do caso atrás refe­rido, e reco­nhe­cendo que não se trata de um pro­blema sim­ples, julgo que a expe­ri­ên­cia mos­tra que é urgente debatê-lo e que as solu­ções a encon­trar se reve­la­rão deci­si­vas para a qua­li­dade do jor­na­lismo nas novas pla­ta­for­mas tec­no­ló­gi­cas. Por mim, creio que a res­posta deve ser, pelo menos, ten­den­ci­al­mente nega­tiva. Penso que é neces­sá­rio des­fa­zer um equí­voco, que tem vindo a acentuar-se, em torno das pos­si­bi­li­da­des de actu­a­li­za­ção noti­ci­osa con­tí­nua aber­tas pelos sitesinformativos.

Uma coisa são os acon­te­ci­men­tos — por vezes ainda em curso — que, uma vez con­fir­ma­dos, devem, por razões de forte inte­resse público, come­çar a ser noti­ci­a­dos de ime­di­ato, apro­vei­tando as van­ta­gens da ins­tan­ta­nei­dade do meio, mesmo quando não está ainda reu­nida toda a infor­ma­ção que per­mita res­pon­der de forma satis­fa­tó­ria às per­gun­tas per­ti­nen­tes que a qual­quer lei­tor — e, por mai­o­ria de razão, a qual­quer jor­na­lista — sejam sus­ci­ta­das pela infor­ma­ção ini­cial. Essas serão as típi­cas notí­cias em actu­a­li­za­ção, e essa carac­te­rís­tica — a de uma notí­cia ainda incom­pleta à luz dos padrões pro­fis­si­o­nais pra­ti­ca­dos no jor­nal — deve ser sem­pre cla­ra­mente sinalizada.

Outra coisa são as inú­me­ras peças noti­ci­o­sas, igual­mente selec­ci­o­na­das por cri­té­rios de actu­a­li­dade, em rela­ção às quais o peso da urgên­cia medida ao minuto não deve sobrepor-se aos pro­ce­di­men­tos a que o jor­nal se obriga — e são todas aque­las que não se jus­ti­fica que sejam apre­sen­ta­das de forma frag­men­tá­ria (ou, pior, mar­ca­das por erros infor­ma­ti­vos), quando um adi­a­mento razoá­vel do seu apa­re­ci­mento nos ecrãs per­mite pro­por­ci­o­nar infor­ma­ção mais com­pleta e devi­da­mente veri­fi­cada e editada.

As recla­ma­ções que me che­gam sobre notí­cias da edi­ção online indi­cam que os lei­to­res, sen­sa­ta­mente, valo­ri­zam mais a qua­li­dade do que a velo­ci­dade. A pos­si­bi­li­dade de actu­a­li­zar em con­tí­nuo um tema noti­ci­oso é uma exce­lente opor­tu­ni­dade ofe­re­cida pela Inter­net, mas importa evi­tar o risco de se asso­ciar ao tra­ba­lho jor­na­lís­tico cor­rente um sen­tido des­pro­por­ci­o­nado de extrema urgên­cia — por­que é para oonline…— que se tra­duza num abai­xa­mento dos padrões pro­fis­si­o­nais. A ideia de que não se apli­ca­ria às edi­ções para a rede o objec­tivo de apre­sen­tar notí­cias com­ple­tas e res­pei­ta­do­ras das melho­res prá­ti­cas só pode, a prazo, minar a con­fi­ança dos lei­to­res na marca jor­na­lís­tica que têm como refe­rên­cia, quer a pro­cu­rem em papel ou em dis­po­si­ti­vos electrónicos.

Não há solu­ções mági­cas para con­ci­liar em abso­luto, e em cada caso con­creto, as poten­ci­a­li­da­des da infor­ma­ção quase ins­tan­tâ­nea com a essên­cia do bom jor­na­lismo. As esti­mu­lan­tes dife­ren­ças fun­ci­o­nais entre novos e velhos meios obri­gam, isso sim, a afi­nar cri­té­rios de deci­são no plano das esco­lhas em que se tra­duz dia­ri­a­mente a res­pon­sa­bi­li­dade edi­to­rial sobre a publi­ca­ção de qual­quer notí­cia. Creio que essas esco­lhas serão tanto mais ade­qua­das e coe­ren­tes quanto mais alar­gado e pro­fundo for o debate interno sobre a expe­ri­ên­cia já acumulada.”