Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Suzana Singer

“Jornais não foram feitos para prever o futuro, nem em final de ano. Duas manchetes recentes da Folha que tentaram adivinhar o que vai acontecer estão sendo, com razão, duramente contestadas.

A primeira delas, do domingo passado, dizia que ‘Eleição faz Alckmin dobrar gasto mensal com propaganda’. A outra, de terça-feira, era ‘Delator de esquema de espionagem vai pedir asilo ao Brasil’. À primeira vista, os dois títulos parecem até óbvios. Ninguém duvida que o governo estadual –assim como o federal– vá concentrar os gastos com publicidade no primeiro semestre, até porque a legislação proíbe anunciar nos meses que antecedem a eleição.

No caso do ex-espião Edward Snowden, é fácil deduzir que ele gostaria de viver aqui, já que ele escreveu uma carta ao povo brasileiro e há um abaixo-assinado pedindo ao governo para dar-lhe asilo. Uma análise detalhada das duas reportagens mostra, no entanto, que conclusões lógicas não são suficientes para sustentar uma manchete que não se desmanche no ar.

No caso de Alckmin, a Folha cravou que ele vai dobrar o gasto mensal com propaganda em 2014, quando tentará reeleger-se. O dispêndio com publicidade saltaria de R$ 16,1 milhões por mês (2013) para R$ 31,5 milhões (2014). Para chegar a esse resultado, o jornal:

1) dividiu o que foi gasto até 12 de dezembro deste ano por 12 meses;

2) dividiu o que foi orçado em 2014 por seis meses, levando em consideração que é proibido anunciar de julho a outubro.

As duas contas estão equivocadas. No cálculo do montante de 2013, não entraram as despesas a serem pagas até o fim deste mês –entre as quais uma campanha do governo que está sendo veiculada no intervalo do ‘Jornal Nacional’.

No segundo passo, o jornal assumiu que Alckmin vai torrar tudo no primeiro semestre de 2014, sem deixar verba para os meses pós-eleição, o que o governo nega que pretenda fazer.

‘Sabemos, por apuração nossa, que o governo estadual planeja concentrar no primeiro semestre o investimento em propaganda. Uma das fontes disse que o plano é gastar o máximo possível até abril’, afirma a editoria de ‘Poder’. Essa apuração em ‘off’ não está na reportagem e é difícil de ser provada, porque se refere a algo que o governo pretenderia fazer.

A reportagem sobre Edward Snowden partia da ‘Carta Aberta ao Povo do Brasil’, obtida com exclusividade pela Folha, em que ele diz que gostaria de ajudar as investigações brasileiras sobre a espionagem dos EUA, mas não consegue porque não tem um lugar permanente para viver.

Na carta, Snowden não faz um pedido de asilo –segundo a reportagem, para não criar um constrangimento com o governo russo, que lhe dá abrigo até 2014. O jornalista Glenn Greenwald, que deu o furo sobre as ações da Agência de Segurança Nacional dos EUA, tuitou: ‘A grande imprensa é incapaz de ler uma carta curta antes de fazer uma manchete falsa a respeito? Não é tão difícil…’.

A editoria de ‘Mundo” diz que baseou a manchete em uma apuração em ‘off’, não na carta, mas isso não estava claro no texto. O jornal poderia ter evitado esse desgaste se destacasse no título o fato de Snowden ter oferecido ajuda para apurar crimes de espionagem cometidos contra o Brasil. Era um ponto importantíssimo, polêmico e… estava na carta.

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Os casos acima se somam a outras manchetes questionadas ao longo do ano –a de maior repercussão foi ‘Prefeito sabia de tudo, diz fiscal preso, em gravação’ (8/11). Fica a impressão de que, para fazer barulho, a Folha está subindo o tom das manchetes. Não vale a pena. Nenhum jornal de qualidade deve trocar exatidão por repercussão.”