Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Vera Guimarães Martins

Era sabido desde o ano passado que a conjunção de fatores políticos e econômicos prometia uma segunda gestão tumultuada para Dilma Rousseff. Nem o mais renhido inimigo podia, porém, sonhar com o surto de más notícias que soterrou o governo na semana.

O marco zero foi um artigo em “O Estado de S. Paulo”, em que o ex-presidente Fernando Henrique criticava a deterioração do sistema político e defendia a punição pelos desmandos na Petrobras para os “mais altos hierarcas culpados”. O texto, cujo título é “Chegou a hora”, poderia permanecer só como firme defesa dos valores republicanos, mas ganhou nova leitura com notícias engatadas na sequência.

A revista “Veja” revelou que, a pedido de uma empreiteira, o advogado Ives Gandra Martins produziu um parecer que dá sustentação “exclusivamente jurídica” para um pedido de “impeachment” de Dilma. A razão legal: improbidade administrativa, configurada por omissão, imperícia, imprudência e negligência no caso Petrobras.

Na terça (3), Gandra expôs sua tese em artigo na seção Tendências/Debates (pág. A3), ressalvando que o julgamento de um “impeachment” pelo Congresso é mais político que jurídico. Informou também que o parecer havia sido encomendado por José de Oliveira Costa. Segundo a Folha revelou no dia seguinte, Costa é do conselho curador e um dos diretores do Instituto FHC.

Publicar o artigo de Gandra foi um acerto: era notícia e saiu no lugar certo, a tradicional arena de debates do jornal. Mas o destaque dado a ele na “Primeira Página” conferiu peso jornalístico desproporcional a uma questão que não alcança idêntica dimensão institucional. O próprio FHC reconheceu isso ao dizer que o afastamento, “neste momento, não é matéria de interesse político”. Ok, a declaração provavelmente é parte do jogo de cena, mas ela revela que o tucano tem consciência de que o cavalo não está encilhado.

Não há condições políticas para detonar um processo de “impeachment”. A oposição pode estar tentando afinar os instrumentos, mas o (des)concerto continua sendo mais obra do próprio governo do que competência dos adversários. Desde o domingo passado, Dilma perdeu a eleição para a presidência da Câmara, enfrentou rebelião e renúncia coletiva na cúpula da Petrobras, viu ser criada a terceira CPI para investigar a petroleira e terminou a semana com a denúncia de que seu partido recebeu até US$ 200 milhões em propina de empreiteiras.

Com o noticiário em plena ebulição (sonho de qualquer jornalista, por sinal), desde quarta este jornal passou a adotar o selo “Petrolão”, em substituição a “Escândalo da Petrobras”, usado até então. A Secretaria de Redação diz que decidiu pela mudança porque o termo se consagrou nas menções ao escândalo e expressa a conexão política dos desmandos na empresa.

O apelido é usado pela “Veja” e, com alguma frequência, pela “Época”. Nos grandes jornais, apareceu em textos de dois colunistas e em editorial de “O Globo”. Não chega a ser uma “consagração”, e sua adoção neste momento, querendo ou não, carrega uma carga política incômoda.

É tradição jornalística procurar epítetos que dispensem explicações, carimbem um caso e caiam na boca do povo. Petrolão tem as condições para virar o selo pop, curto e definitivo do escândalo, mas, no atual contexto, não acho que lustre a imagem de isenção e imparcialidade perseguida pela Folha.

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Vera Guimarães Martinsé ombudsman daFolha de S. Paulo