Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A insuficiência dos obituários

Tranqüilo, firme, compreensivo, criativo, corajoso, nobre. Elegante em todos os sentidos – um príncipe. Príncipe do jornalismo, para utilizar a expressão cunhada por Alceu de Amoroso Lima há algumas décadas.

Rodolfo Fernandes foi homenageado com emoção e carinho como convém a “um homem sem inimigos” como o pai, Hélio Fernandes, o retratou em breve e tocante necrológio.

Aqui, neste Observatório, além das pinceladas sobre a sua cativante personalidade e a surda tragédia que se desenrolou cotidianamente ao longo de dois anos na Redação do Globo, Rodolfo merece avaliações estritamente profissionais. Que o valorizam mais ainda.

Dever cumprido

Herdeiro do desafio que Roberto Marinho deixou para Evandro Carlos de Andrade (depois repassado a Merval Pereira e Ali Kamel), Rodolfo desincumbia-se com brilho da “missão impossível”: manter a trepidação de um antigo vespertino ligado à vida da cidade e competir no plano nacional em pé de igualdade com os dois jornalões editados em São Paulo (Folha e Estadão).

Rodolfo imprimiu agilidade e vibração ao jornal, não se deixou impregnar pela pseudo-isenção que domina a imprensa brasileira – o espírito carioca a repeliria –, buscou e reencontrou a perdida entonação do jornalismo de opinião.

Ao mesmo tempo criou um sofisticado núcleo de repórteres investigativos que não aceitam “dossiês secretos”, nem vídeos clandestinos, sem antes checá-los exaustivamente. Atento às novas tecnologias e plataformas noticiosas estava, no entanto, rigorosamente afinado com a melhor tradição jornalística. Por osmose ou genética – seu pai, Hélio Fernandes e o tio, Millôr Fernandes, são expoentes da nossa imprensa e da nossa cultura.

Este observador conheceu Rodolfo Fernandes ainda criança, encontrou-o ao longo da última década em diferentes ambientes e circunstâncias. Nunca o ouviu discorrer sobre “modelo de negócios”, estava preocupado em fazer bom jornalismo, incrementar a qualidade dos textos, dar densidade à informação. Fazer o jornal “falar”. Este paradigma hoje parece esquecido.

O último encontro (em fins de 2007), e a seu convite, ocorreu numa tarde na Redação do jornal: aproximava-se a temporada de comemorações do bicentenário de fundação da imprensa brasileira, Rodolfo queria um briefing informal para alguns editores a partir do qual seria montada uma pauta. A cobertura não se materializou, mas Rodolfo cumpriu o seu dever de preparar o jornal para o evento.

Com as pupilas

Não menos marcante foi o seu desempenho diante das críticas veiculadas por este Observatório. Não respondia a todos os reparos aqui veiculados, mas em alguns casos não se importava em replicar, treplicar e pacientemente esclarecer as cobranças. Inabalável, mas respeitoso e irônico. Um esgrimista – com florete sem ponta nem gume (ver “O Globo e a cobertura do megagrampo”).

Participou de algumas edições televisivas deste Observatório”, em depoimentos gravados e ao vivo. Desculpava-se por não atender a todas as solicitações, o horário do programa coincidia com o fechamento, justificava-se (ver “Mídia e sequestros / A decisão crucial”).

Estimulava, porém, os editores a participar do programa convencido de que o jornalista precisa mostrar-se ao leitor. Desentocar-se.

Foi à Redação na quinta-feira (25/8), morreu no dia seguinte. Entocado. “Falando” apenas com a pupila dos olhos.

Obituários serão sempre insuficientes, precários. Nos dias seguintes haverá outros.

 

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