Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Bernardo Ajzenberg

‘O caso Waldomiro, detonado a partir de reportagem da revista ‘Época’ do dia 13, tomou conta da mídia, e nada indica que dela sairá tão cedo. É possível, porém, refletir sobre como a Folha atuou nessa primeira semana.

Dentre os principais jornais de circulação nacional, ela foi o único a estampar na manchete do dia seguinte (sábado) o nome do ministro-chefe da Casa Civil: ‘Vídeo mostra corrupção e derruba assessor de Dirceu’. Os demais evitaram a menção direta.

A Folha, realista, colocou de imediato o dedo na ferida, pois todo o caso do agora ex-assessor do Planalto, que aparece em vídeo negociando propina e arrecadação de dinheiro para campanhas eleitorais, só adquiriu tamanho peso, com ampla repercussão internacional, justamente por tocar no centro do poder, no chamado ‘núcleo duro’ do governo, no ‘capitão’ de Lula.

Ponto para o jornal, que teve igualmente em seus colunistas e articulistas, ao longo dos dias seguintes,um amplo leque crítico de reflexão sobre o assunto.

Registre-se, também, o mérito de, antes da concorrência, trazer detalhes sobre como a bomba abalou Lula e seus auxiliares mais diretos, revelando, por exemplo, ‘bastidores’ sobre de que modo José Dirceu colocou o cargo à disposição do presidente.

Coadjuvante

Se teve sensibilidade política para detectar e expor a profundidade do tema desde o primeiro momento, a Folha, no entanto, manteve-se apenas como coadjuvante na investigação jornalística do caso propriamente dito.

Quais revelações acrescentou ao já publicado pela ‘Época’?

O único ‘furo’ importante, acredito, foi dado na edição de segunda-feira, quando o jornal revelou que o empresário de bingo Carlinhos Cachoeira (que aparece no vídeo negociando com Waldomiro Diniz) foi também, em 2001, o vencedor de uma licitação para operar serviços de loteria no governo de Olívio Dutra (PT) no Rio Grande do Sul -concorrência, aliás, depois anulada pelo governo e só efetivada por decisão judicial.

A grande questão, porém, era saber até que ponto Diniz continuou a operar ilicitamente em 2003, quando já era o subchefe de Assuntos Parlamentares da Casa Civil. Pois o argumento central do governo contra uma CPI sobre o assunto não era que se tratava de um caso ‘requentado’, anterior à atual gestão?

Revelações factuais sobre isso apareceram inicialmente no ‘Globo’ e no ‘Estado de S. Paulo’, terça e quarta-feira. A Folha só as trouxe na edição de quinta.

Na quarta, aliás, expressando falha de avaliação da notícia, o jornal ‘escondeu’ numa nota do Painel FC (em Esporte) a informação de que, ironicamente, a mensagem presidencial encaminhada com pompa por Dirceu ao Congresso na segunda-feira continha uma defesa da regulamentação dos bingos (os mesmos que, nesta sexta-feira, o presidente Lula decidiu fechar).

Na quinta, relegou ao pé de um texto um pequeno trecho de uma carta que Diniz enviara a Dirceu alegando absoluta inocência a partir de uma reportagem da ‘IstoÉ’, em julho de 2003, sobre sua atuação à frente da Loterj no ano anterior; além disso, não registrou, como fez, por exemplo, o ‘Globo’, que o pedido de investigação feito na ocasião pelo Ministério Público emperrou na Polícia Federal.

Acredito, ainda, que a foto exclusiva mais interessante dos últimos dias, por seu valor simbólico, foi a da capa do ‘Estado de S. Paulo’ de quinta, em que a primeira-dama, Marisa, observa com ar de preocupada um Lula aparentando grande desconsolo.

Em matéria de apuração jornalística, o fecho da semana ficou mais uma vez com a ‘Época’, que apresenta, além de uma segunda parte da entrevista com Waldomiro, detalhes a respeito do encontro que ele manteve, já em 2003, com Cachoeira e com representantes de uma empresa multinacional de loterias que negociava com o governo um contrato avaliado em R$ 300 milhões anuais.

Dinheiro de campanha

Três observações:

1) Nem Folha nem nenhum outro veículo conseguiram, ao menos até sexta, mostrar algo sobre como Diniz atuou na base do Congresso como negociador do governo na aprovação de projetos de seu interesse, a começar pelas reformas da Previdência e tributária;

2) Em meio ao cipoal de notícias negativas para o Planalto, o jornal evidenciou uma dificuldade para exibir em suas páginas opiniões, textos ou reflexões que fizessem a defesa de Dirceu (e do governo), um contraponto, digamos, ao bombardeio desencadeado na semana. Um artigo da filósofa Marilena Chauí em Tendências/Debates, na quarta, cumpriu em parte essa obrigação jornalística -a de expor, sempre, o contraditório-, mas foi/é pouco;

3) O pano de fundo do ‘caso Waldomiro’ diz respeito a uma questão que a sociedade ainda não resolveu e que a mídia, como um todo, cobre bastante mal: a arrecadação de dinheiro para as campanhas eleitorais. Neste ano, o tema retorna, com as eleições municipais. Será que desta vez a imprensa, embalada pelo últimos acontecimentos, saberá se preparar para o desafio? A conferir.

Transparência

A Folha deu um passo histórico ao publicar, domingo, reportagem de duas páginas, baseada em investigação jornalística, sobre a situação da dívida, de R$ 10 bilhões, das principais empresas de comunicação do país.

O fato rompe com uma tradição nefasta que apontei aqui, na coluna de 2/11/03: diferentemente do que faz com outros setores, a imprensa, quando ela é o assunto, fica na superficialidade, no genérico ou na omissão total.

A importante ruptura, porém, não encerra o assunto, ao contrário: deve ser um ponto de partida para um tratamento jornalístico permanente, transparente e aprofundado, sobre a situação da mídia, inclusive quanto a outros aspectos não abordados com ênfase na reportagem, como, por exemplo, o preocupante declínio da circulação dos principais jornais do país, que continuou, gravemente, no ano passado.

Essa última tendência, complexa, não se reflete de modo automático na saúde financeira das empresas jornalísticas. Mas lança dúvidas sobre como deve se dar, hoje, a presença da mídia impressa num mercado de informação cada vez mais amplo.

A cobertura sobre as negociações em curso com o BNDES em torno de um pacote de socorro à mídia será um teste para a continuidade ou não da transparência exposta pela Folha.

A porta foi aberta. Trata-se, agora, de não deixar que ela se feche novamente.’