Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Carlos Eduardo Lins da Silva

‘A reportagem e principalmente a chamada de capa sobre a gripe A (H1N1) no domingo passado constituem um dos mais graves erros jornalísticos cometidos por este jornal desde que assumi o cargo, em abril de 2008.

O título da chamada, na parte superior da página, dizia: ‘Gripe suína deve atingir ao menos 35 milhões no país em 2 meses’. A afirmação é taxativa e o número, impressionante.

Nas vésperas, os hospitais estavam sobrecarregados, com esperas de oito horas para atendimento.

Mesmo os menos paranoicos devem ter achado que suas chances de contrair a enfermidade são enormes. Quem estivesse febril e com tosse ao abrir o jornal pode ter procurado assistência médica.

O texto da chamada dizia que um modelo matemático do Ministério da Saúde ‘estima que de 35 milhões a 67 milhões de brasileiros podem [em vez de devem, como no título] ser afetados pela gripe suína em oito semanas (…). O número de hospitalizações iria de 205 mil a 4,4 milhões’.

É quase impossível ler isso e não se alarmar. Está mais do que implícito que o modelo matemático citado decorre de estudos feitos a partir dos casos já constatados de gripe A (H1N1) no Brasil.

Mas não. Quem foi à página C5 (e não C4 para onde erradamente a chamada remetia) descobriu que o tal modelo matemático, publicado em abril de 2006, foi baseado em dados de pandemias anteriores e visavam formular cenários para a gripe aviária (H5N1).

Ali, o texto dizia que ‘por ser um esquema genérico e não um estudo específico para o atual vírus, são necessários alguns cuidados ao extrapolá-lo para o presente surto’.

Ora, se era preciso cautela, por que o jornal foi tão imprudente? Ou, como pergunta o leitor Martim Silveira: ‘já que não tem base em nada nas circunstâncias atuais, qual a relevância de publicar algo que evidentemente só pode causar pânico numa população que já está abarrotando os postos de saúde por causa da gripe, quando os casos mal passam do milhar?’

Muitos leitores se manifestaram ao ombudsman. José Rubens Elias classificou a chamada de ‘leviana e irresponsável’. José Roberto Teixeira Leite disse que ‘se o objetivo do jornal era espalhar pânico, conseguiu o intento’. Para José Clauver de Aguiar Júnior, ‘trata-se claramente de sensacionalismo’.

O pior é que a Redação não admite o erro. Em resposta à carta do Ministério da Saúde, que tentava restabelecer os fatos, respondeu com firulas formalistas como se o missivista e os leitores não soubessem ver o óbvio. Em resposta ao ombudsman, disse que considera a chamada e a reportagem ‘adequadas’ e que ‘informar a genealogia do estudo na chamada teria sido interessante, mas não era absolutamente essencial’.

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É assim que as coisas são

A Folha tratou mal da morte de Walter Cronkite. O âncora do telejornal da rede americana de TVB CBS entre 1962 e 1981 foi mais do que o principal jornalista dos EUA daquele período. Ele representou um tipo de prática que influenciou a profissão no mundo inteiro.

Cronkite integrava uma escola de profissionais que se formou na cobertura da Segunda Guerra Mundial sob o comando de Ed Murrow, de quem se pode saber um pouco assistindo ao filme recomendado abaixo.

Em vários de seus necrológios na imprensa americana esta semana enfatizou-se que ele foi o símbolo máximo de uma era que já acabou faz tempo e não voltará mais. É verdade. Mas a leitura de sua autobiografia, indicada a seguir, ainda pode ensinar muito a quem se dedica a esta atividade.

Uma delas é que a autoridade moral de que ele desfrutava junto ao público não advinha de opiniões que expressasse. Cronkite tinha orgulho de ser repórter, não de dar opiniões. Mas nas poucas vezes em que ele as deu exatamente por terem sido raras e estarem embasadas em fatos elas tiveram impacto enorme. Muito maior do que mil opiniões de outros.

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PARA LER

‘Walter Cronkite Repórter’, de Walter Cronkite, tradução de Mário Vilela. DBA, 1998 (à venda no site da editora por R$ 19)

PARA VER

‘Boa Noite e Boa Sorte’, de e com George Clooney, 2005 (disponível em locadoras)

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ONDE A FOLHA FOI BEM…

HONDURAS

Ao manter enviado especial junto ao presidente deposto, jornal dá ao leitor relatos a quente de onde a ação está

CAETANO VELOSO

Boa entrevista com o compositor na quarta esquenta debate sobre lei cultural

…E ONDE FOI MAL

ARTHUR VIRGÍLIO

Acusações contra o líder do PSDB no Senado não constam da arte que resume os escândalos no Congresso no domingo

LIXO INGLÊS

Depois de ter dado bem no mês passado a notícia, jornal tem acompanhado mal desdobramentos do caso do lixo inglês exportado para o Brasil

TEXTOS EDITORIALIZADOS

Na quinta (reportagem sobre código de ética do PT) e na sexta (sobre entrevista de Lula), textos escritos com tom de editorial minam credibilidade das informações’