Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Carlos Eduardo Lins da Silva

‘Apesar da indiscutível gravidade da situação econômica mundial – que só encontra precedente na hecatombe de 1929 e a conseqüente Grande Depressão –, a correspondência do ombudsman e do ‘Painel do Leitor’ não reflete grande preocupação com o tema por parte do público deste jornal.

As emoções das eleições municipais e do Campeonato Brasileiro de Futebol motivam muito mais gente a se manifestar do que os percalços provocados pelos ‘senhores do Universo’ de Wall Street.

Pode ser que os apreensivos não escrevam para redações. Talvez a ausência, até agora, de efeitos graves no cotidiano dos brasileiros esteja adiando os sobressaltos. Mas também é possível que o jornal esteja falhando na sua missão de aproximar o noticiário do cidadão comum.

Alfred Marshall, o mais influente economista da passagem do século 19 para o 20, definia sua ciência como ‘o estudo da humanidade nos negócios comuns da vida’. O conceito aproxima a economia do jornalismo, que em princípio também cuida dos ‘negócios comuns da vida’.

A Folha tem dedicado apreciável esforço à cobertura da crise global nestas semanas. Os fatos têm sido registrados de maneira correta e abrangente. Artigos e entrevistas de especialistas têm proporcionado ao leitor análises aprofundadas, comparações históricas relevantes e abordagens originais.

Mas acho que tem faltado tratar dos problemas a partir da perspectiva de quem não é versado em economia nem pela teoria nem pela prática de empresário ou executivo.

Pode ser que o jornalismo impresso um dia venha a ser produto consumido só pelos mais ricos e estudados. Mas por enquanto não é – e ele precisa atender bem a todos os tipos de leitores atuais.

Tem faltado dar concretude às questões, desde o significado real das cifras astronômicas que diariamente inundam as páginas até explicar como essa confusão vai afetar o dia-a-dia de cada um de nós. Sem abandonar o comentário mais sofisticado, terreno em que se está indo bem.

Isso poderia ser feito por meio de histórias de personagens que já estejam sofrendo na pele os efeitos desse ‘crash em câmera lenta’, como definiu um jornalista inglês. Ou da antecipação mais detalhada do que nós todos aqui no Brasil poderemos passar nas próximas semanas ou meses.

Diariamente o jornal parece indicar que o mundo vai se acabar, mas ele continua mais ou menos igual no dia seguinte.

Antever como vai ser o mundo depois desta crise ou mostrar como ele ficou depois da de 1929 pode ajudar a atrair o leitor. Se o jornalista conseguir se colocar no lugar da pessoa comum – um esforço de empatia nem tão grande assim –, talvez consiga fazer isso.’

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‘Se o Sineiro diz três vezes, é verdade’, copyright Folha de S. Paulo, 12/10/08.

‘Lewis Carroll, o autor de ‘Alice no País das Maravilhas’, escreveu outra obra-prima, infelizmente menos conhecida no Brasil. É o poema ‘Caça ao Snark’, destinado a crianças, como ‘Alice’, mas com muitos ensinamentos a adultos dispostos a pensar.

Um grupo de caçadores sob o comando do errático Sineiro atravessa o oceano em busca do misterioso Snark, que pode ser – e no final se revela ser – de fato o Boojum. O poema parece absurdo, mas é cheio de significados.

O Sineiro impõe aos caçadores algumas leis. Uma é a seguinte: ‘O que eu disser três vezes é verdade’. Simples e arbitrário assim: qualquer afirmação repetida três vezes pelo Sineiro é verdadeira.

Veículos de comunicação que se julgam pregoeiros de alguma missão – política, religiosa, cultural – tendem a se comportar como o Sineiro: proferem convicções e julgam que, pela repetição contínua, elas se tornam verdades.

Jornais, programas de rádio e TV, revistas, blogs, filmes, anúncios seguem essa receita. Às vezes com relativo sucesso, se a medida do êxito for o número de pessoas que acreditam nessas verdades.

Veja-se islamismo de Barack Obama. Pesquisa do Pew Research Center de setembro revela que 13% dos eleitores americanos crêem que o candidato do Partido Democrata é muçulmano.

Mensagens pela internet, blogs e outros meios controlados por ultraconservadores têm disseminado a alegação, sem base na realidade objetiva. E milhões de pessoas acreditam nela.

Como milhões acreditam na teoria de hiper-esquerdistas de que foi Bush quem ordenou os ataques de 11 de Setembro.

No bom jornalismo, não há lugar para o Sineiro. O jornalismo registra fatos, não firma dogmas; inspira a dúvida, não repete slogans; promove o debate, não proclama certezas. Afinal, o Snark pode ser o Boojum. E quem o descobre pode desaparecer.’

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‘Para ler’, copyright Folha de S. Paulo, 12/10/08.

‘‘A História de Mildred Pierce’, de James M. Cain, Companhia das Letras, 2008, Trad. de Celso Nogueira (a partir de R$ 32,56) – Romance que relata, pela história de uma mulher bonita que consegue superar as adversidades econômicas de seu tempo, o ambiente social dos EUA na Grande Depressão

Para ver

‘Vinhas da Ira’, de John Ford com Peter Fonda, 1940 (a partir de R$ 19, 90) – Clássico do cinema, baseado no também clássico livro de John Steinbeck, sobre a migração, forçada pela paupérie, de uma família de Oklahoma até a Califórnia

‘Ratos e Homens’, de Gary Sinise com John Malkovitch, 1992 (em sites que negociam filmes novos e usados, sem preço fixado) – Outro belo filme a partir da literatura de Steinbeck conta a comovente de dois amigos, um deles com problemas mentais, que perambulam pelo oeste americano tentando sobreviver nos anos 1930

‘Um Lugar no Coração’, de Robert Benton com Sally Field, 1984 (em sites que negociam filmes novos e usados, sem preço fixado) – A viúva de um xerife no Texas em 1935 luta contra a miséria e o racismo para manter sua família com a ajuda de um migrante negro que a ajuda a plantar algodão em sua fazenda

Onde a Folha foi bem…

Intervalo de trabalho – Boa reportagem na terça sobre decisão do governo paulista de contar os intervalos entre as aulas como atividade extra-aula dos professores de sua rede de ensino

Telemarketing – De grande interesse público a matéria de quarta-feira sobre a criação de cadastro para bloquear ligações de telemarketing

Cyber-bullying – Importante alerta para os pais a reportagem da Revista da Folha sobre os perigos das agressões cibernéticas contra jovens

…e onde foi mal

Rafael Correa – Erro em transcrição da entrevista do presidente do Equador provoca incidente diplomático entre aquele país e a Colômbia; pelo menos o jornal se corrigiu inequivocamente um dia depois

Assuntos esquecidos – Apesar da natural concentração nos grandes temas da crise global e das eleições, jornal não pode simplesmente abandonar assuntos importantes que foram prioritários há pouco tempo e ainda não estão resolvidos, como Satiagraha, Alstom, grampos, morte de advogado que denunciou policiais militares em grupos de extermínio e outros.’