Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

José Queirós

“Não é da aná¬lise de notí¬cias publi¬ca¬das no jor¬nal que hoje me ocupo, mas de fac¬tos que impor¬tam à rela¬ção do jor¬nal com os seus lei¬to¬res. Para regis¬tar que os lei¬to¬res fiéis do PÚBLICO tive¬ram esta semana duas boas razões para sen¬ti¬rem que é cor¬res¬pon¬dida a con¬fi¬ança depo¬si¬tada no jor¬nal, e um motivo para se inqui¬e¬ta¬rem seri¬a¬mente sobre o seu futuro.

1. A pri¬meira boa notí¬cia — e a mais recente, já que se revela na edi¬ção de ontem — é a de que come¬çou a dar fru¬tos a pres¬são que este jor¬nal vem fazendo há anos junto do Minis¬té¬rio da Edu¬ca-ção para obter os dados neces¬sá¬rios ao aper¬fei¬ço¬a¬mento dos ran¬kings esco¬la¬res que publica anu¬al-mente. Tendo tido um papel pio¬neiro na difu¬são deste retrato do sis¬tema edu¬ca¬tivo naci¬o¬nal, o PÚBLICO não podia ficar insen¬sí¬vel ao que mui¬tos recla¬ma¬vam: que à lista das esco¬las orde¬na¬das pelos valo¬res médios dos resul¬ta¬dos alcan¬ça¬dos pelos seus alu¬nos nos exa¬mes naci¬o¬nais — uma infor¬ma¬ção objec¬tiva que con¬ti¬nu¬ará a ser indis¬pen¬sá¬vel — fosse acres¬cen¬tada a pon¬de¬ra¬ção dos dados de con¬texto que con¬di¬ci¬o¬nam o desem¬pe¬nho de cada escola, com vista a uma afe¬ri¬ção mais con¬sis¬tente da sua qualidade.

Como se lia no edi¬to¬rial de ontem, o minis¬té¬rio 'abriu enfim mão de novos dados', o que tor¬nou pos-sí¬vel — com a cola¬bo¬ra¬ção espe¬ci¬a¬li¬zada de uma equipa da Uni¬ver¬si¬dade Cató¬lica do Porto — apre-sen¬tar os ran¬kings 'numa lei¬tura cru¬zada com o con¬texto soci¬o¬e¬co¬nó¬mico das esco¬las'. Num outro texto, publi¬cado no suple¬mento dedi¬cado ao tema, o direc¬tor adjunto Nuno Pacheco refe¬ria que os novos indi¬ca¬do¬res per¬mi¬tem come¬çar a cum¬prir uma pro¬messa feita há dois anos (dar um 'novo e indis¬pen¬sá¬vel salto no conhe¬ci¬mento das nos¬sas esco¬las'), mas notava igual¬mente que os dados agora obti¬dos são ainda limi¬ta¬dos, e for¬ne¬ci¬dos num prazo pouco com¬pa¬tí¬vel com o seu estudo aprofundado.

Dei¬xando para mais tarde uma pos¬sí¬vel aná¬lise mais deta¬lhada do que ontem foi publi¬cado, e con-cor¬dando com Nuno Pacheco que ainda 'há muito mais dados a cru¬zar' e 'aná¬li¬ses a fazer' para obter um retrato mais nítido e mais útil do desem¬pe¬nho das esco¬las bási¬cas e secun¬dá¬rias, julgo que deve ser sau¬dado este passo no cami¬nho certo. E que devem con¬ti¬nuar a ser recla¬ma¬dos ao poder polí¬tico, em nome do direito à infor¬ma¬ção, todos os ele¬men¬tos que per¬mi¬tam aper¬fei¬çoar este ser¬viço público.

A intro¬du¬ção agora con¬sa¬grada e o even¬tual alar¬ga¬mento futuro de parâ¬me¬tros que vão para além dos resul¬ta¬dos dos exa¬mes poderá tor¬nar mais com¬plexa a lei¬tura dos ran¬kings. Julgo que o PÚBLICO não deverá dar por satis¬feita a sua ambi¬ção neste domí¬nio enquanto não esti¬ve¬rem reu¬ni-das as seguin¬tes con¬di¬ções: que a admi¬nis¬tra¬ção edu¬ca¬tiva for¬neça todas as infor¬ma¬ções exi¬gí¬veis e em tempo útil; que a direc¬ção do jor¬nal defina com inde¬pen¬dên¬cia os cri¬té¬rios edi¬to¬ri¬ais para a sua divul¬ga¬ção; que uma equipa espe¬ci¬a¬li¬zada, como a da Uni¬ver¬si¬dade Cató¬lica, garanta o tra¬ta¬mento e aná¬lise dos dados; e, final¬mente, que os jor¬na¬lis¬tas façam o que é pró¬prio do seu tra¬ba¬lho — trans-for¬mar um estudo tec¬ni¬ca¬mente com¬plexo em infor¬ma¬ção clara e aces¬sí¬vel a todos.

2. A segunda boa notí¬cia, sujeita a con¬fir¬ma¬ção futura, é a de que o jor¬na¬lismo de inves¬ti¬ga¬ção regres¬sou às pági¬nas do PÚBLICO. Refiro-me à publi¬ca¬ção — sau¬dada por vários lei¬to¬res — dos tra¬ba¬lhos assi¬na¬dos por José Antó¬nio Cerejo nas edi¬ções de 8 e 11 de Outubro.

O bom jor¬na¬lismo de inves¬ti¬ga¬ção, sério e inde¬pen¬dente, nada tem a ver com a pro¬fu¬são de notí¬cias super¬fi¬ci¬ais e incom¬ple¬tas, por vezes sen¬sa¬ci¬o¬na¬lis¬tas, publi¬ca¬das sem con¬tra¬di¬tó¬rio nem veri¬fi¬ca¬ção dos fac¬tos, ali¬men¬ta¬das por fon¬tes inqui¬na¬das e fugas de infor¬ma¬ção não sin¬di¬cá¬veis, sujei¬tas a todos os des¬men¬ti¬dos, que se mul¬ti¬pli¬cam na imprensa menos escru¬pu¬losa e con¬tri¬buem para poluir o espaço público.

O jor¬na¬lismo de inves¬ti¬ga¬ção digno desse nome não dá reca¬dos; inves¬tiga. É rigo¬roso, pro¬cura ser exaus¬tivo, guia-se pela busca esfor¬çada da ver¬dade e pela noção de inte¬resse público. É um ins¬tru-mento essen¬cial para a saúde de uma soci¬e¬dade democrática.

Tal como foi nar¬rado nes¬tas pági¬nas, o caso Tec¬no¬forma — que envolve fac¬tos rele¬van¬tes, e até agora des¬co¬nhe¬ci¬dos da opi¬nião pública, dos cur¬rí¬cu¬los do actual primeiro-ministro e do seu minis¬tro Rel¬vas — apre¬senta todos os sinais de um caso exem¬plar de pro¬mis¬cui¬dade entre a polí¬tica e os negó¬cios, entre inte¬res¬ses pri¬va¬dos e o exer¬cí¬cio de car¬gos públi¬cos. No seu cen¬tro está a uti¬li¬za¬ção polé¬mica, para dizer o mínimo, de dinhei¬ros públi¬cos. O inte¬resse público dos tex¬tos de José Antó-nio Cerejo é indiscutível.

Cada lei¬tor fará agora o seu juízo infor¬mado sobre os fac¬tos reve¬la¬dos, de acordo com os seus pró-prios valo¬res. O PÚBLICO cum¬priu a sua mis¬são de escru¬ti¬nar os actos e o carác¬ter de res¬pon¬sá¬veis de car¬gos públi¬cos que tomam deci¬sões que afec¬tam todos os cida¬dãos. A aposta numa agenda pró-pria de inves¬ti¬ga¬ção jor¬na¬lís¬tica inde¬pen¬dente tem de ser vista como uma obri¬ga¬ção de ser¬viço público. Sacrificá-la em nome dos seus cus¬tos é inver¬ter as pri¬o¬ri¬da¬des edi¬to¬ri¬ais de um jor¬nal de referência.

3. Os cus¬tos do jor¬na¬lismo de qua¬li¬dade foram invo¬ca¬dos na última quarta-feira pela admi¬nis¬tra¬ção e pela direc¬ção edi¬to¬rial do PÚBLICO para darem aos lei¬to¬res uma pés¬sima notí¬cia. Em nome da sus-ten¬ta¬bi¬li¬dade finan¬ceira de um pro¬jecto ame¬a¬çado pela crise eco¬nó¬mica e pela crise espe¬cí¬fica da imprensa (perda de recei¬tas de publi¬ci¬dade e cir¬cu¬la¬ção), foi anun¬ci¬ado um plano de rees¬tru¬tu¬ra¬ção assente em dois vec¬to¬res: maior aposta nas pla¬ta¬for¬mas digi¬tais e uma 'redu¬ção da estru¬tura de cus-tos', que é em boa parte um eufe¬mismo para o des¬pe¬di¬mento colec¬tivo de 48 'cola¬bo¬ra¬do¬res', entre os quais cerca de três deze¬nas de jornalistas.

Diver¬sos lei¬to¬res rea¬gi¬ram com apre¬en¬são a esta notí¬cia. Cito, por todos, José Oli¬veira, da Cruz Que-brada: 'Resta-me (não) espe¬rar o pior, ou seja, a total des¬ca¬rac¬te¬ri¬za¬ção do pro¬jecto ini¬cial do PÚBLICO e do seu posi¬ci¬o¬na¬mento como jor¬nal de refe¬rên¬cia no pano¬rama da imprensa escrita por-tu¬guesa'. A apre¬en¬são é legí¬tima. Não há bom jor¬na¬lismo sem bons jor¬na¬lis¬tas. No papel como na Internet.

Os nomes de diver¬sos pro¬fis¬si¬o¬nais cuja 'dis¬pensa' foi anun¬ci¬ada foram dados a conhe¬cer em outros meios de comu¬ni¬ca¬ção. Mui¬tos lei¬to¬res reco¬nhe¬ce¬rão, em alguns des¬ses nomes, pro¬fis¬si¬o¬nais que são, eles pró¬prios, jor¬na¬lis¬tas de refe¬rên¬cia nas res¬pec¬ti¬vas áreas. Quero acre¬di¬tar que olha¬rão com a com-pre¬en¬são pos¬sí¬vel o anun¬ci¬ado recurso a um dia de greve por parte de uma redac¬ção que todos os dias lhes ofe¬rece o jor¬nal em que se habi¬tu¬a¬ram a confiar.

Difi¬cil¬mente uma con¬trac¬ção como esta na dimen¬são da equipa redac¬to¬rial dei¬xará de afec¬tar a qua-li¬dade do jor¬nal. É como pro¬ve¬dor do lei¬tor, e não dos jor¬na¬lis¬tas (que não sou), que quero tam¬bém acre¬di¬tar que a deci¬são anun¬ci¬ada possa ainda ser ree¬qua¬ci¬o¬nada. Não sendo este o momento nem o lugar para dis¬cu¬tir os méri¬tos da 'aposta estra¬té¬gica no digi¬tal' anun¬ci¬ada pelos res¬pon¬sá¬veis do PÚBLICO, valerá a pena lem¬brar que os lei¬to¬res que fize¬ram deste o seu jor¬nal estão ainda longe de encon¬trar na edi¬ção on line , ape¬sar de todos os seus méri¬tos, o cum¬pri¬mento cabal da pro¬messa inau¬gu¬ral deste diá¬rio: notí¬cias com¬ple¬tas, ori¬gi¬nais, rigo¬ro¬sas, bem escri¬tas e bem edi¬ta¬das por pro-fis¬si¬o¬nais qua¬li¬fi¬ca¬dos e experientes.

Nada do que fica dito per¬mite igno¬rar que a saúde finan¬ceira de um jor¬nal é uma con¬di¬ção neces¬sá-ria à sua inde¬pen¬dên¬cia. Ou que, no caso do PÚBLICO, a sua sobre¬vi¬vên¬cia a anos suces¬si¬vos de dese¬qui¬lí¬brio finan¬ceiro ficou a dever-se exclu¬si¬va¬mente à deter¬mi¬na¬ção de um empre¬sá¬rio que deci-diu con¬tri¬buir para a qua¬li¬fi¬ca¬ção da imprensa diá¬ria no seu país. Como é geral¬mente reco¬nhe¬cido, e ape¬sar de ine¬vi¬tá¬veis sobres¬sal¬tos pelo cami¬nho, o pro¬jecto edi¬to¬rial mostrou-se no essen¬cial bem-sucedido, e o seu hipo¬té¬tico desa¬pa¬re¬ci¬mento seria cer¬ta¬mente sen¬tido como um ver¬da¬deiro empo-bre¬ci¬mento cul¬tu¬ral por aque¬les que afi¬nal o jus¬ti¬fi¬cam: os seus leitores.

A pés¬sima notí¬cia desta semana, somada a outras más notí¬cias do pas¬sado e a pos¬sí¬veis más notí¬cias futu¬ras, deve de facto ser vista como uma ame¬aça à qua¬li¬dade do jor¬nal. Abaixo da fas¬quia de exi-gên¬cia a que se com¬pro¬me¬teu — e sei, pelas men¬sa¬gens que recebo, que alguns lei¬to¬res vêem esse pata¬mar a aproximar-se, e outros o deram já por ultra¬pas¬sado —, o PÚBLICO dei¬xa¬ria de fazer sentido.

Por isso, a ques¬tão que vale a pena deba¬ter, em toda a sua cru¬eza, é a de saber se é hoje pos¬sí¬vel fazer em Por¬tu¬gal, para o mer¬cado por¬tu¬guês, sem pre¬juízo finan¬ceiro, um diá¬rio sin¬to¬ni¬zado com os padrões inter¬na¬ci¬o¬nais de qua¬li¬dade. Ou se é pos¬sí¬vel encon¬trar for¬mas de o tor¬nar viá¬vel mesmo que as recei¬tas de publi¬ci¬dade e cir¬cu¬la¬ção não cubram todas as des¬pe¬sas que são o preço dessa qua-li¬dade. É tal¬vez che¬gada a hora de os lei¬to¬res fiéis do PÚBLICO serem cha¬ma¬dos a ter uma voz neste debate.”