Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

José Queirós

“1. Queixa-se o ex-leitor Manuel Som­mer de que a capa do PÚBLICO, na pas­sada quinta-feira, o desi­lu­diu de modo 'pro­fundo'. É por isso que se apre­senta como 'ex-leitor', pois 'dei­xou de se iden­ti­fi­car com o jor­nal'. Des­creve assim a pri­meira página que o levou a tão drás­tica deci­são: 'Pro­tes­tan­tes à frente do Par­la­mento, notí­cia do PS a ‘recu­sar’ a refun­da­ção do memo­rando e ainda infor­ma­ção de Louçã…'. E dis­para: 'Quer dizer, o PÚBLICO virou total­mente à esquerda?'.

Dese­nha, depois, a sua capa alter­na­tiva: 'Por­que não tra­zem na pri­meira página o que o Telmo Cor­reia falou (…) acerca da neces­si­dade de ter um Estado social inse­rido numa eco­no­mia de mer­cado a fun­ci­o­nar, por­que sem eco­no­mia de mer­cado não pode haver Estado social? O que o Paulo Por­tas disse e que depois vem retra­tado no inte­rior do jor­nal?'. E ter­mina com nova inter­ro­ga­ção: 'Por­que não dei­xam de ali­nhar com os pre­con­cei­tos típi­cos de uma esquerda e de uma filo­so­fia e ide­o­lo­gia total­mente ultra­pas­sada, esgo­tada e que levou Por­tu­gal à falência?'.

São per­gun­tas que não encon­tram jus­ti­fi­ca­ção nos fac­tos invo­ca­dos para as for­mu­lar, e por isso não fazem sen­tido. Custa ter que lem­brar coi­sas bási­cas como esta: o que os lei­to­res que se iden­ti­fi­cam com o jor­nal, e o conhe­cem, espe­ram da pri­meira página é que esta reflicta com rigor e cri­a­ti­vi­dade (e quando pos­sí­vel com infor­ma­ção pró­pria e nova) os prin­ci­pais acon­te­ci­men­tos da vés­pera, e não as pre­fe­rên­cias polí­ti­cas de quem escreve ou de quem lê, e menos ainda bana­li­da­des ide­o­ló­gi­cas como as suge­ri­das. Para isso não fal­tam, em demo­cra­cia, outros meios de comunicar.

As opções edi­to­ri­ais que mar­ca­ram a capa da edi­ção de 1 de Novem­bro são jor­na­lis­ti­ca­mente lógi­cas e acer­ta­das. Escolheu-se para título prin­ci­pal a posi­ção do Par­tido Soci­a­lista em rela­ção à pro­posta da mai­o­ria de 'refun­dar' (o que quer que isso seja) o 'pro­grama de ajus­ta­mento' assu­mido com a troika ?como dias antes se fizera man­chete com as inten­ções nesse sen­tido anun­ci­a­das pelo primeiro-ministro ?, e era de facto nesse tema que se cen­tra­vam as expec­ta­ti­vas sobre o debate par­la­men­tar da véspera.

A ilus­tra­ção prin­ci­pal da capa ? uma foto­gra­fia impres­siva dos pro­tes­tos frente à Assem­bleia da Repú­blica, assi­nada por Miguel Manso ?não era menos per­ti­nente. Recorde-se que, como foi noti­ci­ado, as mani­fes­ta­ções foram sufi­ci­en­te­mente rele­van­tes (ou per­ce­bi­das como tal) para terem levado, por deci­são da mai­o­ria par­la­men­tar, a uma insó­lita ace­le­ra­ção do debate e vota­ção na gene­ra­li­dade do Orça­mento de Estado.

Quanto ao que chama 'infor­ma­ção de Louçã', tratava-se da cha­mada para uma peça per­fei­ta­mente opor­tuna sobre o líder ces­sante do Bloco de Esquerda e as suas posi­ções, no momento em que aban­dona um Par­la­mento em que dei­xou marcas.

Quer isto dizer que a capa da última quinta-feira é isenta de crí­ti­cas? Por mim, julgo que não. Deve­ria ter sido refe­rido, e não foi, que se falava do debate do Orça­mento e do seu resul­tado (nem todos os lei­to­res teriam já essa infor­ma­ção, nem deve partir-se desse pres­su­posto). Deve­ria ter-se evi­tado, na man­chete, a expres­são 'PS recusa ‘refun­dar’ memo­rando': é uma for­mu­la­ção no mínimo equí­voca, e as edi­ções ante­ri­o­res do jor­nal já tinham tor­nado claro que aquilo que o governo estará a pro­por ao PS é, muito con­cre­ta­mente, a cola­bo­ra­ção numa reforma que visará a redu­ção das fun­ções soci­ais do Estado. Cabe ao jor­na­lismo des­co­di­fi­car, e não repe­tir à exaus­tão, fór­mu­las opa­cas ou enga­no­sas lan­ça­das pelos agen­tes polí­ti­cos. Final­mente, a lei­tura da peça sobre o debate par­la­men­tar não auto­ri­za­ria tal­vez, à data, uma con­clu­são tão asser­tiva como 'PS recusa'.

Estes repa­ros nada têm a ver, porém, com as esco­lhas que inco­mo­da­ram o ex-leitor. Os moti­vos que o leva­ram a ver na capa de 1 de Novem­bro o exem­plo defi­ni­tivo de uma 'vira­gem à esquerda' (que só com bas­tante ima­gi­na­ção se poderá encon­trar nas suces­si­vas man­che­tes deste jor­nal sobre a crise que vive­mos) são fruto de um equí­voco. Terão tudo a ver com as suas expec­ta­ti­vas pes­so­ais, mas nada com os valo­res de isen­ção e rigor que carac­te­ri­zam o pro­jecto edi­to­rial do PÚBLICO. É no res­peito por esses valo­res, e melho­rando a qua­li­dade do jor­na­lismo pra­ti­cado, que se atrai­rão ? e que valerá a pena atrair ? novos leitores.

2. O lei­tor João Dinis cri­ti­cou, por outras razões, a notí­cia sobre os pro­tes­tos em frente ao Par­la­mento no pas­sado dia 31. Escre­vendo em nome da direc­ção da Con­fe­de­ra­ção Naci­o­nal da Agri­cul­tura, queixa-se de que, no relato publi­cado, 'não se refere a con­cen­tra­ção de agri­cul­to­res' que a CNA ali pro­mo­veu. 'Lá esti­ve­mos', diz, 'com 200 agri­cul­to­res devi­da­mente assi­na­la­dos com fai­xas, car­ta­zes, pro­du­tos agrí­co­las, etc. (…) Fomos daque­les que esti­ve­mos, frente às esca­da­rias da AR, com a maior e mais visí­vel par­ti­ci­pa­ção, quando a vota­ção [do Orça­mento] decor­ria ? ante­ci­pada ? no ple­ná­rio. Mas o PÚBLICO não viu isso…'.

Acres­centa o diri­gente da CNA 'que se refere na notí­cia, a (des)propósito dos pro­tes­tos ‘com­pli­ca­dos’ que peque­nos gru­pos con­ti­nuam a fazer nes­tas oca­siões, sabendo de ante­mão que a gene­ra­li­dade da comu­ni­ca­ção social parece gos­tar muito deles, que ‘deze­nas’ de petar­dos reben­ta­ram no meio da mul­ti­dão'. Diz que não foi assim: 'Onde ouviu o PÚBLICO (ou alguém por ele) o ‘reben­ta­mento de deze­nas de petar­dos no meio da mul­ti­dão’ ? Houve dois ou três reben­ta­men­tos, não mais que isso. Ou esta coisa de ampliar e/ou aci­ca­tar pro­tes­tos ‘vio­len­tos’ é algum desíg­nio incon­fes­sá­vel (enquanto se omi­tem outros pro­tes­tos, como o da CNA)?'.

A autora da peça, Fabíola Maciel, asse­gura que 'o PÚBLICO viu o pro­testo [dos agri­cul­to­res], que ocor­reu a par­tir das 14 horas, e alega que, por limi­ta­ção de espaço no jor­nal, essa parte teve de ser omi­tida da notí­cia'. Não é uma expli­ca­ção con­vin­cente, tendo em conta que o texto enu­mera sete outras enti­da­des ou movi­men­tos que par­ti­ci­pa­ram no pro­testo, alguns even­tu­al­mente menos representativos.

Quanto à con­ta­bi­li­dade dos petar­dos, é pro­vá­vel que a dis­cre­pân­cia se deva a uma pre­sença mais longa da jor­na­lista no local dos acon­te­ci­men­tos, e não há razão para duvi­dar do seu relato. 'Entre as 14 e as 22 horas', explica a repór­ter, 'foram reben­ta­dos inú­me­ros petar­dos, sendo que houve até uma altura, por volta das 19 horas, em que se ouvi­ram reben­ta­men­tos con­se­cu­ti­vos durante 10 minu­tos. (…). O PÚBLICO asse­gura ter estado pre­sente durante as 8 horas de pro­testo e con­firma ter ouvido deze­nas de reben­ta­men­tos de petardos'.

Compreende-se a pre­o­cu­pa­ção do res­pon­sá­vel da CNA em que­rer demarcar-se de mani­fes­tan­tes menos pací­fi­cos, mas con­virá não con­fun­dir o relato de acções de tipo mais vio­lento com qual­quer intuito de as 'aci­ca­tar', que está mani­fes­ta­mente ausente da curta, mas infor­ma­ti­va­mente rele­vante, pas­sa­gem do texto que narra esses episódios.

3. Um equí­voco seme­lhante estará por trás de uma men­sa­gem do lei­tor Mário Aze­vedo, que cen­su­rou a notí­cia inti­tu­lada 'Espe­ci­a­lista teme vio­lên­cia durante a visita de Angela Mer­kel', publi­cada no pas­sado dia 30 na edi­ção on line, classificando-a de 'incen­diá­ria' e afir­mando que 'parece que­rer indu­zir à agi­ta­ção social, à uti­li­za­ção de méto­dos que, por mais for­tes e duras que sejam as cir­cuns­tân­cias em que todos vive­mos, nunca pode­rão ser utilizados'.

O lei­tor, que apre­senta várias suges­tões per­ti­nen­tes de temas que o jor­nal pode­ria desen­vol­ver a pro­pó­sito da visita da chan­ce­ler alemã ao nosso país no pró­ximo dia 12, con­si­dera que 'títu­los bom­bás­ti­cos como este pare­cem que­rer (…) agi­tar uma soci­e­dade que está cla­ra­mente angus­ti­ada, depri­mida e a ver reduzir-se a sua segu­rança e bem-estar'.

É um pro­cesso de inten­ções que, mais uma vez, parece igno­rar o papel pró­prio do jor­na­lismo. Neste caso, tratava-se da repro­du­ção de um des­pa­cho da agên­cia Lusa, que dava a conhe­cer as pre­o­cu­pa­ções que o res­pon­sá­vel por um orga­nismo da área da segu­rança deci­diu tor­nar públi­cas, refe­rindo a pre­pa­ra­ção de acções de pro­testo e de cor­res­pon­den­tes pla­nos de actu­a­ção poli­cial. O tema é de inte­resse público e a deci­são de o noti­ciar não pode ser vista como inci­ta­ção à violência.

Dito isto, julgo tam­bém que um des­pa­cho deste tipo deve sem­pre ser enca­rado como parte de uma notí­cia mais com­pleta a ela­bo­rar pelo jor­nal, e que a sua publi­ca­ção iso­lada abre espaço a des­ne­ces­sá­rias acu­sa­ções de alar­mismo. Isso mesmo foi tido em conta na peça dedi­cada a este tema na edi­ção impressa do dia seguinte, que enri­quece, con­tex­tu­a­liza e titula com sobri­e­dade as infor­ma­ções dis­po­ní­veis sobre a pre­pa­ra­ção da visita de Merkel.

O que valerá a pena dis­cu­tir é por que motivo não se fez o mesmo para a edi­ção on line. A linha edi­to­rial deve ser a mesma nas duas edi­ções do jor­nal, e a velo­ci­dade de publi­ca­ção não deve pre­va­le­cer sobre a qua­li­dade infor­ma­tiva. De outro modo, haverá moti­vos para temer que a anun­ci­ada aposta cres­cente na edi­ção para a Inter­net possa redun­dar em descaracterização.”