Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

José Queirós

“Despeço-me hoje de si, caro lei­tor do PÚBLICO, com a sen­sa­ção de conhe­cer melhor quem está desse lado, por trás dos milha­res de men­sa­gens que recebi, li e ana­li­sei ao longo de três anos nesta fun­ção de pro­ve­dor que agora chega ao fim, e que pro­cu­rei enten­der — bem ou mal, não me cabe jul­gar — como sendo a de defen­sor dos seus inte­res­ses e direitos.

O retrato que de si me ficou — de si que me inter­pe­lou ou atra­vés de mim inter­pe­lou a redac­ção do PÚBLICO, recla­mando, pro­tes­tando, às vezes elo­gi­ando ou apre­sen­tando suges­tões — é o de uma figura múl­ti­pla, feita das opi­niões e inte­res­ses diver­sos de gente diversa, mas com tra­ços comuns que com­põem uma ima­gem coe­rente: a de um lei­tor culto e exi­gente, que apre­cia o rigor, a isen­ção e a pro­fun­di­dade das notí­cias, que valo­riza a qua­li­dade da infor­ma­ção e da opi­nião, que é pouco tole­rante face a erros e falhas pro­fis­si­o­nais. E que está pre­o­cu­pado com o futuro do jor­nal que escolheu.

Na hora do balanço recordo, caro lei­tor par­ti­ci­pa­tivo, o essen­cial do que me disse. Disse-me, em pri­meiro lugar, que quer ser mais ouvido. Quer ver res­pon­di­das as suas dúvi­das e as suas crí­ti­cas e gos­ta­ria que as suas pró­prias opi­niões pudes­sem ser mais vezes aco­lhi­das e par­ti­lha­das com a comu­ni­dade de lei­to­res. Desagrada-lhe que as suas cha­ma­das de aten­ção, aler­tando para erros ou omis­sões nas notí­cias, pare­çam mui­tas vezes cair em saco roto. Terá notado pro­gres­sos neste domí­nio, nome­a­da­mente na edi­ção para a Inter­net, mas sente que ao apreço que lhe é devido como com­pra­dor, assi­nante ou autor do cli­que que gerou mais um alga­rismo na conta das pági­nas con­sul­ta­das na rede, nem sem­pre cor­res­ponde um ver­da­deiro diálogo.

Disse-me que valo­riza notí­cias com­ple­tas e equi­li­bra­das, que tenham por objec­tivo dar-lhe a conhe­cer os fac­tos (e o seu con­texto), e lhe per­mi­tam for­mar o seu pró­prio jul­ga­mento, sem con­tra­bando de opi­niões à mis­tura, sobre o con­teúdo das infor­ma­ções divul­ga­das. Que apre­cia, con­cor­dando ou não com o que lê, o espaço que o PÚBLICO dedica à opi­nião qua­li­fi­cada, mas não quer ver a opi­nião a inva­dir a man­cha infor­ma­tiva. Que estima o valor acres­cen­tado do jor­na­lismo inter­pre­ta­tivo e ana­lí­tico, sem o qual lhe fal­ta­riam ele­men­tos para com­pre­en­der melhor temas e rea­li­da­des que conhece menos bem, mas exige que a inter­pre­ta­ção seja clara, argu­men­tada e infor­mada por fac­tos devi­da­mente com­pro­va­dos e con­tex­tu­a­li­za­dos. Quer, em suma, que o tra­tem como o cida­dão que é, e que res­pei­tem a sua inteligência.

Disse-me que nem sem­pre vê estes valo­res assu­mi­dos de forma exem­plar nas pági­nas impres­sas ou vir­tu­ais do seu jor­nal. Que encon­tra nele notí­cias e títu­los que con­si­dera ten­den­ci­o­sos. Esse é um plano em que por vezes dis­cor­dei de si, por jul­gar que o ale­gado envi­e­sa­mento não exis­tira, e que a maté­ria publi­cada não envol­via que­bra das regras pro­fis­si­o­nais e éticas a que o jor­nal se obriga, explicando-se pro­va­vel­mente a crí­tica pelas suas pró­prias pre­fe­rên­cias e con­vic­ções (polí­ti­cas, ide­o­ló­gi­cas e outras, todos as temos), que não terá visto reflec­ti­das como dese­ja­ria numa opção edi­to­rial inde­pen­dente e jor­na­lis­ti­ca­mente jus­ti­fi­cada. Outras vezes, como recor­dará, con­cor­dei con­sigo, sobre­tudo no caso de títu­los que podiam ser vis­tos como enga­no­sos face à pró­pria notí­cia para que remetiam.

Deu-me conta, em mui­tas cen­te­nas de men­sa­gens, do incó­modo e da indig­na­ção com que vê a mul­ti­pli­ca­ção de aten­ta­dos à lín­gua por­tu­guesa (erros orto­grá­fi­cos, pon­ta­pés na gra­má­tica, excesso de estran­gei­ris­mos) e a outras lín­guas (vocá­bu­los usa­dos ou gra­fa­dos de forma impró­pria, tra­du­ções defi­ci­en­tes) em tex­tos publi­ca­dos no jor­nal impresso e, mais ainda, na edi­ção elec­tró­nica. Não posso estar mais de acordo con­sigo. A qua­li­dade da escrita no PÚBLICO tem vindo a decair de forma alar­mante, e creio que a apa­rente inca­pa­ci­dade para con­tra­riar esse per­curso des­cen­dente só pode explicar-se por erro de apre­ci­a­ção dos seus res­pon­sá­veis sobre o que ele repre­senta de falta de res­peito para com os seus direi­tos de leitor.

Obrigou-me a reflec­tir sobre um rol sig­ni­fi­ca­tivo de ques­tões de natu­reza ética e deon­to­ló­gica, sus­ci­ta­das por tra­ba­lhos publi­ca­dos, e nem todas fáceis de apre­ciar, por envol­ve­rem com frequên­cia esco­lhas dile­má­ti­cas entre valo­res em con­fronto — e sei que é tam­bém do maior ou menor acerto de tais esco­lhas ao longo do tempo que depende a sua con­fi­ança como leitor.

Des­sas ques­tões nas­ceu a mai­o­ria dos tex­tos que aqui assi­nei. Alguns abor­da­ram situ­a­ções pon­tu­ais, que — mesmo nos casos em que jul­guei as quei­xas per­ti­nen­tes ou dig­nas de refle­xão — não cor­res­pon­dem a com­por­ta­men­tos carac­te­rís­ti­cos deste jor­nal, valendo sobre­tudo como cha­ma­das de aten­ção. Outros, porém, apon­ta­ram pro­ce­di­men­tos cri­ti­cá­veis e pre­o­cu­pan­tes que ten­dem a repetir-se, exi­gindo debate e cor­rec­ção. Sem me alon­gar, diria que estão nesse caso, por exem­plo, o recurso exces­sivo a fon­tes anó­ni­mas, a atri­bui­ção de opi­niões a pes­soas não iden­ti­fi­ca­das e a insu­fi­ci­ente veri­fi­ca­ção atem­pada de notí­cias de ori­gem exte­rior à redac­ção do PÚBLICO vei­cu­la­das pela edi­ção na Internet.

Invo­cando os seus inte­res­ses e expec­ta­ti­vas pes­so­ais, falou-me ainda, caro lei­tor, das áreas a que gos­ta­ria que o jor­nal desse maior aten­ção. Foram mui­tas as suges­tões, e nem sem­pre pra­ti­cá­veis ou com­pa­tí­veis entre si. Esco­lhi, por isso, tra­zer aqui ape­nas duas reco­men­da­ções, que me pare­cem essen­ci­ais para a con­so­li­da­ção da ima­gem do PÚBLICO como jor­nal de referência.

A pri­meira, jus­ti­fi­cada pela tra­di­ci­o­nal opa­ci­dade dos vários pode­res que con­di­ci­o­nam a nossa vida colec­tiva, e pela cres­cente impor­tân­cia cívica do seu escru­tí­nio: deve ser atri­buída ao jor­na­lismo de inves­ti­ga­ção uma pri­o­ri­dade edi­to­rial que hoje não se reflecte nes­tas pági­nas. Falo do tra­ba­lho de inves­ti­ga­ção ori­gi­nal, inde­pen­dente, minu­ci­oso, eti­ca­mente sus­ten­tado e deter­mi­nado pelo inte­resse público, não dos reca­dos e das sus­pei­ções ou acu­sa­ções incon­se­quen­tes e não veri­fi­ca­das que por aí detur­pam a nobreza desse género jor­na­lís­tico para gáu­dio de todos os populismos.

A segunda, igual­mente deter­mi­nada pelo tempo que vive­mos: o PÚBLICO deve­ria inves­tir muito mais na infor­ma­ção sobre a Europa, a polí­tica euro­peia, as ten­dên­cias e con­fli­tos que per­cor­rem a União e os seus Esta­dos mem­bros. Sem esque­cer que já há muito a qua­li­dade do acom­pa­nha­mento infor­ma­tivo das ins­ti­tui­ções euro­peias é uma sin­gu­la­ri­dade deste jor­nal na nossa imprensa diá­ria, creio que a incon­tor­ná­vel ‘euro­pei­za­ção da polí­tica’ a que Teresa de Sousa se refe­ria há dias nes­tas pági­nas reclama uma aten­ção edi­to­rial mais forte e mais pró­xima. Não tere­mos vida demo­crá­tica digna desse nome sem uma infor­ma­ção mais deta­lhada e con­ti­nu­ada sobre os deba­tes euro­peus que hoje ver­da­dei­ra­mente nos con­di­ci­o­nam, e sem escru­tí­nio per­ma­nente da acti­vi­dade de quem repre­senta os cida­dãos da Europa na União, por demo­cra­ti­ca­mente defi­ci­ente que seja ainda, como é, a natu­reza dessa representação.

Nem todas as ideias para um PÚBLICO melhor serão con­cre­ti­zá­veis, embora algu­mas pos­sam depen­der ape­nas de um debate con­se­quente sobre pri­o­ri­da­des edi­to­ri­ais. Como bem sabe, caro lei­tor, o pri­meiro pro­blema que este jor­nal enfrenta é o da sua sus­ten­ta­bi­li­dade finan­ceira. Medi­das recen­tes, como o afas­ta­mento de tan­tos pro­fis­si­o­nais com­pe­ten­tes, não pode­riam dei­xar de afec­tar a qua­li­dade da sua redac­ção, e indi­cam que o esforço de sobre­vi­vên­cia con­di­ci­o­nará qual­quer estra­té­gia editorial.

Recordo-lhe por isso o que tan­tas vezes me con­fi­den­ciou entre crí­ti­cas a algo que lhe desa­gra­dara: que o PÚBLICO — na expres­são a que tan­tas vezes recor­reu — ‘é ape­sar de tudo’ o diá­rio da sua pre­fe­rên­cia, aquele com que mais se iden­ti­fica, e cuja falta mais afec­ta­ria o seu quo­ti­di­ano de cida­dão infor­mado. Eu, que a par­tir de hoje sou tam­bém o lei­tor a que aqui sim­bo­li­ca­mente me dirijo, subs­crevo e acres­cento: tal perda dimi­nui­ria de modo sig­ni­fi­ca­tivo — sim, ‘ape­sar de tudo’ — a qua­li­dade do espaço público por­tu­guês. Se lhe falo disto, é por­que poderá che­gar o tempo de nos per­gun­tar­mos o que pode­re­mos tam­bém nós, lei­to­res, fazer pela con­ti­nui­dade deste pro­jecto informativo.

A con­fi­ança dos lei­to­res num jor­nal obriga à con­tra­par­tida da maior trans­pa­rên­cia nas expli­ca­ções que lhes são devi­das. A fun­ção medi­a­dora dos jor­na­lis­tas como escru­ti­na­do­res dos pode­res (de todos os pode­res) implica que estes sejam os pri­mei­ros a acei­tar ver escru­ti­nado o seu tra­ba­lho. Como seu pro­ve­dor, caro lei­tor, con­si­de­rei pri­o­ri­tá­rio comunicar-lhe tudo o que pude apu­rar, em cada caso, sobre o pro­cesso de pro­du­ção de uma notí­cia que lhe tenha sus­ci­tado dúvi­das ou crí­ti­cas. Devo hoje dizer-lhe que só o pude fazer com a coo­pe­ra­ção activa da redac­ção do jornal.

Con­tra­ri­a­mente a ideias fei­tas sobre os pro­fis­si­o­nais deste ofí­cio, encon­trei nos jor­na­lis­tas do PÚBLICO (as muito raras excep­ções só con­fir­mam a regra) uma grande dis­po­ni­bi­li­dade para esta forma de auto-regulação ética e pro­fis­si­o­nal, uma com­pre­en­são genuína da impor­tân­cia da refle­xão e do escla­re­ci­mento sobre as quei­xas apre­sen­ta­das pelos lei­to­res. É um facto que jus­ti­fica um olhar opti­mista sobre o futuro do jor­nal e que irá cer­ta­mente aju­dar — como me aju­dou a mim — quem, com outras pers­pec­ti­vas e expe­ri­ên­cias, me suceda neste cargo.

Fei­tas as des­pe­di­das e agra­de­cendo toda a sua aten­ção par­ti­ci­pante e crí­tica, per­mita, caro lei­tor, que apro­veite as linhas que me res­tam para agra­de­cer tam­bém, à admi­nis­tra­ção e à direc­ção do PÚBLICO, a con­fi­ança que em mim depo­si­ta­ram e o modo como res­pei­ta­ram a abso­luta inde­pen­dên­cia do meu trabalho.”