Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Guálter George

‘Primeiro veio a matéria, na edição do dia 19 último, ocupando página inteira, a 6, do caderno Vida & Arte. Em dois textos, um sob a manchete ‘com quantos versos se faz uma sacanagem’ e outro abaixo do título ‘românticos, modernos e imorais’, se noticiava, em forma de resenha, o lançamento da ‘Antologia pornográfica: de Gregório de Mattos a Glauco Mattoso’, organizada por Alexei Bueno. Uma obra plena de palavrões nos textos originalmente selecionados, termos pesados, em grande parte, que ao jornal caberia optar por reproduzir ou não. Optou-se pela reprodução parcial de alguns poemas, no meio dos quais detectou-se a existência do que alguns leitores definiram como ‘vários exemplos de baixarias’. Evitarei repetir alguns dos termos que causaram a indignação, para que mais lenha não seja levada à fogueira, que já arde suficientemente.

Nas baixarias dos outros é refresco

Depois, na edição do dia 21, veio o editorial no qual O Povo fazia um ataque duro àquilo que o texto definiu como ‘baixarias’ veiculadas no rádio e televisão brasileiros, com livre acesso às crianças e apresentação em horários inadequados, algumas das quais, disse o jornal, inadmissíveis até em ‘países europeus de reconhecida tradição liberal’. Leitores como Emílio Cordeiro e Miguel Maciel consideraram-se praticamente obrigados a procurar o ombudsman depois da manifestação dura do jornal contra o que observa vir acontecendo nos meios radiofônico e televisivo do País. Para eles, uma verdade. O problema, também para eles, é que matérias como a do Vida & Arte do dia 19 indicam que O Povo pode estar enfrentando um problema do mesmo quilate. ‘Escondi o exemplar daquele dia dos meus netos’, diz Miguel Maciel, assinante há 20 anos do jornal.

Aos filhos e netos dos leitores

Emílio Cordeiro lembra que O Povo tem, há anos, uma campanha de incentivo ao hábito da leitura, a partir da criança. ‘Como posso mostrar algo do tipo a um filho, por exemplo?’ É a mesma indagação que faz Miguel Maciel, só que referindo-se aos netos. ‘Um jornal da categoria e tradição do O Povo, que há anos prega aos pais que ensinem seus filhos a ler jornal, não tem o direito de publicar, a qualquer pretexto, tanta baixaria quanto a contida naquelas matérias’, diz Miguel. Por seu lado, Emílio ainda indaga se prejudicaria a execução da pauta optar por não reproduzir qualquer das poesias, mesmo parcialmente, limitando-se a falar do livro, do seu conteúdo…, a partir de então deixando ao juízo do leitor saber se lhe era conveniente adquiri-lo, inclusive para ter acesso ao que existir nele de pornográfico.

Os outros exemplos são todos nossos

A editora-executiva do Núcleo de Comportamento, que edita o caderno Vida & Arte, jornalista Ana Cláudia Peres, provocada pelo ombudsman, disse que, após reler o material, reforçou sua convicção de que em nenhum momento se resvalou ‘para a indecência ou o mau gosto. Não se disse ali nada que ainda não tenha sido dito em outros espaços do jornal – como, por exemplo, as colunas de José Simão e Aos Vivos, para ficar apenas nas seções do próprio Vida & Arte. Com a diferença de que, na matéria em questão, toda a libidinagem vem aspeada: são citações do livro, trechos de poemas. A própria Eleuda (Eleuda de Carvalho, repórter que assina a matéria), avisa, na primeira linha do seu texto, que o livro resenhado não remete à ´lânguidas damas perfumadas de alfazema, entretidas com gentis cavalheiros em salas senhoriais´ etc etc etc´.

O texto saboroso e a consciência

Mais adiante, no texto que me fez chegar, Ana Cláudia diz até admitir que ‘há frases impublicáveis, desde que a pauta não tratasse exatamente da leitura crítica – logo, detalhada – de um livro que se propõe a escancarar os segredos da alcova e a falar de sacanagem sem muita frescura (com o perdão da palavra!). Os leitores de O Povo podem ficar tranqüilos que não sairemos por aí a usar em nossos textos, indiscriminadamente, expressões de fazer corar até os menos pudicos. Temos consciência de nossa responsabilidade’. A jornalista ainda ressalta o fato de a abordagem ‘nos trechos pesados e em várias passagens, denotar uma fina ironia e um estilo bastante peculiar da repórter – salve!’. Salve, digo também eu, um admirador confesso do estilo de Eleuda de Carvalho, um dos mais saborosos textos que a nossa Redação abriga.

Os argumentos nos aproximam

Entre as queixas dos leitores e a argumentação, indiscutivelmente consistente, da editora do caderno, abre-se brecha para algumas considerações. A verdade é que o assunto dá margem a um bom debate. Vê-se, por exemplo, o jornal dar um puxão de orelhas em tevês e rádios, ao mesmo tempo em que é cobrado na coerência ao agir na linha faço que digo, não o que faço. Por mais que devam ser considerados os elementos que traz à discussão a jornalista, as queixas dos leitores, exemplos pinçados de alguns outros que procuraram o ombudsman desde a segunda-feira, igualmente merecem uma reflexão. Há de se lembrar, por exemplo, que a emissora que busca audiência na tragédia humana argumenta, em seu favor, que apenas está mostrando a vida da forma como ela é, sem maquiagem. Nós, ao publicar algo do gênero, também dissemos que só reproduzimos parte do que está no livro, mostrando-o como ele é. Há semelhanças.

Outro aspecto a considerar é que as queixas chegadas direcionam-se ao jornal, a partir daquela matéria. Portanto, recorrer a exemplos de outras seções e espaços do próprio O Povo, como instrumento de defesa, pode agravar o problema, sob o ponto de vista do leitor, ao invés de episodicamente justificá-lo. Naturalmente, não é o fato das colunas José Simão e Aos Vivos utilizaram-se de palavrões freqüentemente que vai tornar aceitável uma matéria eivada deles, na pauta que seja. É útil, imagino, que a Redação se disponha a uma boa reflexão interna, a partir do caso, para tirar uma decisão que seja a mais correta e que consiga satisfazer aos leitores nos mais diversos perfis. Este é o desafio que está proposto.’