Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Joaquim Furtado

‘Excerto de uma notícia do Público do passado dia 20, sobre um debate promovido pela associação ‘Abril em Maio’: ‘A importância dos interesses económicos na escolha das notícias foi sublinhada por Acácio Barradas, que falou da sua experiência no ‘Diário de Notícias?, em que as reclamações em relação aos cinemas Lusomundo (que pertencem ao mesmo grupo económico do jornal) nunca eram publicadas, sendo exercido um ‘veto de bolso’ por parte do director’.

Em e-mail enviado ao provedor, Acácio Barradas queixou-se da notícia, assinada por Clara Raimundo, pelo que ela diz e pelo que não diz: ‘Não deixa de ser curioso que, da minha longa intervenção de perto de uma hora, recheada de exemplos concretos, a jovem Clara Raimundo (que me informaram ser uma estagiária) tenha extraído com pinças, para publicação, precisamente aquele concreto pormenor em desabono do jornal concorrente. Porquê? Obviamente porque, apesar de jovem e em período de aprendizagem como estagiária, Clara Raimundo já está eivada dos piores vícios da profissão, nomeadamente o de conferir ao jornalismo a pior lógica de mercado, que não desperdiça a oportunidade de denegrir o principal concorrente’.

Acácio Barradas afirma que nunca disse a palavra ‘nunca’ que a jornalista lhe atribui na notícia, explicando que só conhece o que se passou na seccção DN/DECO, de cuja edição foi responsável durante um longo período: ‘Não posso garantir, todavia, que noutros espaços do jornal, nomeadamente a secção de cartas ao director, não tenham sido publicadas, ao longo dos anos, quaisquer críticas à Lusomundo’ – esclarece Acácio Barradas que, no entanto, valoriza sobretudo um outro aspecto da cobertura feita pela jornalista do Público: ‘O que me parece digno de reparo é que, tendo escolhido, da minha longa intervenção, um simples pormenor desfavorável ao jornal concorrente, a referida estagiária não tenha dado conta que, na mesma esfera dos interesses económicos dominantes na Imprensa, eu tenha referido a interferência do empresário Belmiro de Azevedo no Público, nomeadamente quando viu goradas as expectativas económicas que depositara no jornal e que o levaram a desencadear um conjunto de acções que atingiram profundamente a área editorial, com um desfecho visível na demissão do jornalista Vicente Jorge Silva do cargo de director. Será que, no momento em que referi este facto, a estagiária se terá ausentado da sala por motivos fisiológicos, não tendo ouvido o que eu disse? Ou achou mais conveniente não se meter com o patrão, mesmo por interposta pessoa?

A verdade é que também não registou outra intervenção minha sobre o jornal em que trabalha e que, a meu ver, poderia ter interesse público. A propósito do poder dos editores nas redacções, referi-me a vários episódios do meu conhecimento, um dos quais relacionado com uma investigação do jornalista José António Cerejo sobre o ‘caso’ do ex-presidente da Câmara de Oeiras, Isaltino de Morais. Após semanas de investigação, esse trabalho foi concluído, ficando um mês em ‘banho maria’ sem que ninguém o lesse. De repente, decidiu-se publicá-lo, tendo sido editado pelo próprio director do jornal que, ao ritmo de contra-relógio e em função do espaço atribuído, reduziu os textos de 22 500 para 18 500 caracteres, tudo sem consultar o respectivo autor. Este, quando teve consciência das alterações introduzidas, acusou o editor/director de censura. Gerou-se grande tensão interna, com azeda troca de ?mimos? que perturbaram o ambiente redactorial. O Conselho de Redacção, finalmente chamado a pronunciar-se, reconheceu que ‘houve um esvaziamento do sentido afirmativo dos textos’, e embora rejeitando a acusação de censura considerou que este caso deveria contribuir para ‘uma reflexão séria e aprofundada sobre os limites do trabalho de edição’. Reflexão que porventura ainda não houve tempo para fazer…

A verdade é que, a partir deste episódio, José António Cerejo – até então elemento preponderante da secção Local do Público – como que desapareceu, triturado pela engrenagem editorial que vota ao ostracismo os jornalistas incómodos que não se vergam facilmente ao império do ?posso, quero e mando?’.

Acácio Barradas rejeita que possa ser invocado o argumento da falta de espaço ‘como explicação das omissões’, considerando que ‘quem quer que tenha a responsabilidade de fazer notícias deve gerir os recursos informativos de que dispõe por forma a demonstrar independência e rigor’. E considera, a terminar a sua queixa: ‘é preciso descaramento para se evidenciar tanta parcialidade. Mesmo sabendo que em jornalismo não há escolhas inocentes. E porque assim é, estou em crer que, por força do carácter subserviente revelado pelo seu procedimento, a referida estagiária julga ter escolhido o melhor método para conquistar, sem demora, um lugar efectivo na redacção do Público, com perspectivas de rápida ascensão a um posto de comando. O que, a verificar-se, será com óbvio prejuízo do jornalismo independente, do rigor da informação e do direito à verdade. Com estagiários (ou estagiárias) assim, o futuro do jornalismo será, a meu ver, cada vez mais sombrio’.

Na sua resposta às observações de Acácio Barradas, Clara Raimundo começa por afirmar que o artigo em causa ‘implicou, como aliás implicam todos, uma selecção da informação recolhida’ e explica depois: ‘Antes de mais, tive a preocupação de dar voz, no meu texto, aos três oradores que estiveram presentes(…). Mas como os limites de espaço existem de facto, não me foi possível relatar tudo aquilo que se disse ao longo da sessão, tendo escolhido aquelas que me pareceram as ideias-chave do discurso de cada um dos participantes. No caso de Acácio Barradas, aquilo que considerei mais importante foi a sua chamada de atenção para a importância dos interesses económicos na escolha das notícias. A propósito disto, forneceu o referido jornalista diversos exemplos concretos, entre os quais aqueles a que faz referência na carta. Incluí no artigo o exemplo relativo à não publicação das queixas contra a Lusomundo porque, para além de ser ilustrativo da ideia que o jornalista pretendia transmitir, releva da experiência directa do mesmo (…). Acrescento que não duvidei, em momento algum, de que aquilo que o jornalista reportava era verdade, e percebi claramente de que forma é que aquele exemplo demonstrava a importância dos interesses económicos na selecção das notícias. Ora, o mesmo não aconteceu no que diz respeito aos episódios relativos ao jornal Público referidos por Acácio Barradas. O primeiro caso, relativo à demissão do jornalista Vicente Jorge Silva, não foi devidamente explicado pelo orador durante a sua intervenção, e foi por esse motivo que não o seleccionei: não era suficientemente claro. No entanto, no que diz respeito ao caso do jornalista José António Cerejo, que segundo Acácio Barradas ?como que desapareceu, triturado pela engrenagem editorial que vota ao ostracismo os jornalistas incómodos?, devo esclarecer que tive a preocupação de perguntar a um colega que trabalha há já alguns anos no Público se essa situação de facto se verificara. A resposta foi negativa, e tive oportunidade de o confirmar no dia em que escrevo esta carta, já que um trabalho do referido jornalista foi a abertura da secção Local e teve chamada de primeira página. Ou será que eu e Acácio Barradas temos definições diferentes para o verbo ‘desaparecer’? Gostaria ainda de salientar que no meu texto original, antes de ser editado, existia um outro parágrafo, posteriormente cortado pelo colega que o editou, em que fazia referência a um outro ponto avançado por Acácio Barradas no seu discurso, relativo à perda de poder por parte dos conselhos de redacção dos jornais. (Portanto, eu não havia extraído ‘com pinças’, do discurso de Acácio Barradas, apenas ?aquele concreto pormenor? relativo ao DN).

Clara Raimundo reconhece que Acácio Barradas não usou a palavra ‘nunca’, pelo que agradece a correcção e pede desculpa e, a terminar a sua resposta, rejeita intenções que lhe são atribuídas, nomeadamente, a de agir com o fito de garantir um lugar no jornal: ‘Pelos vistos, não sabe, mas fica a saber, até porque é do conhecimento geral aqui na redacção: os quadros do Público estão fechados há alguns anos, e, quando terminar o meu estágio, há já vários colegas recém-licenciados (sim, aqueles em cujo mérito não crê) na lista de espera para me substituir. Além disso, na linha da teoria da conspiração defendida por Acácio Barradas, então também não me interessaria incluir no meu artigo ‘aquele concreto pormenor’ sobre o DN, já que depreendo que tal facto signifique, para o jornalista, que se fecharam para mim as portas do grupo Lusomundo, tão aliciante no mercado de trabalho em que pretendo entrar. Por fim, lamento que o jornalista Acácio Barradas não se tenha limitado a fazer as suas queixas relativas ao artigo em questão, mas antes tenha sentido necessidade de expressar conclusões que retirou acerca de mim e do meu trabalho, a partir da leitura de apenas dois textos, e sem sequer me conhecer. Lamento ainda o tom e os termos indelicados, brutos até, que escolheu para se lhes referir’.

Sobre esta troca de razões que, intencionalmente, se reproduziu praticamente na íntegra, sublinhe-se antes de mais, uma ironia: a controvérsia gera-se a partir da notícia sobre um debate com o título ‘como se escolhem as notícias’ e ela própria é, no fundo, sobre essa mesma questão ….

O caso encerra uma singularidade que o distingue de outros similares: o facto de a notícia tocar em aspectos directamente relacionados com o jornal que a vai divulgar. De facto, embora tendo discursado ‘perto de uma hora’, Acácio Barradas não se queixa de o Público ter omitido uma parte do que ele disse, mas sim de ter omitido uma determinada parte: aquela em que se referiu ao Público. Ou seja: a uma omissão, que noutras circunstâncias se aceitaria como critério jornalístico, atribui-se uma intenção deliberada na qual se envolve a própria noção de honestidade profissional.

Seja pelo valor que atribui às afirmações que fez, seja pela relevância dos dois diários citados, ou pelo facto de serem ‘concorrentes’ entre si – como invoca na sua interpretação – seja porque citar ambos era um ‘equilíbrio’ que pretendia transmitir na sua intervenção, Acácio Barradas produziu uma ‘denúncia simétrica’ que acabou por não ter expressão na notícia. No entanto, enquanto parte daquilo que a jornalista observou no debate, seria um elemento a considerar.

Clara Raimundo tem razão quando diz que as afirmações do orador sobre o ‘Diário de Notícias’ e sobre o Público se apresentam de forma diferente. É verdade, mas isso justificaria apenas que fosse diferente a forma da sua inclusão na notícia. Não a sua exclusão. Se as afirmações viessem a revelar-se menos rigorosas, o jornal poderia fazer os esclarecimentos que achasse necessários, à margem da notícia. (O facto de o episódio não ter ficado ‘suficientemente claro’ também poderia ter levado a jornalista a procurar um esclarecimento junto do orador).

Clara Raimundo explica os critérios que usou e as diligências que posteriormente fez para apurar aquilo que viria a constar da notícia. Provavelmente correctos. No entanto, neste caso, o facto de o jornal ter sido envolvido – e nos termos em que o foi – deveria constar entre os diversos factores que levam os jornalistas a transformar em notícias determinados factos e não outros. Ou a incluir numa notícia determinados elementos e não outros. Isto é: a possibilidade de uma omissão – como a que se verificou – permitir outras leituras, deveria ter sido um dos factores de ‘noticiabilidade’ a ter em conta pela jornalista do Público.

Entretanto, convém observar que quanto maior for a transparência conferida pelo jornal a certos aspectos do dia a dia da sua vida interna, maior será a sua credibilidade. Se observarmos bem, isso está na origem deste episódio.’