Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Joaquim Furtado

‘Ainda há pouco não era previsível que um tão grande número de casos subitamente se instalasse na área da comunicação social e da sua relação com a política.

Antes, tinha sido a relação com a justiça e poderá voltar a ser proximamente, considerando o mediatismo do ‘caso Casa Pia’ cujo julgamento começará em breve. Entretanto, encaminha-se para o seu desfecho, um processo de contornos inéditos entre nós, que poderá estabelecer precedentes ou criar jurisprudência nesta área do relacionamento entre os ‘media’ e o poder judicial: um jornalista – José Luis Manso Preto – no banco dos réus, por recusar identificar as suas fontes de informação.

O caso passa-se entre nós, num momento em que tribunais dos Estados Unidos da América julgam jornalistas que, invocando, igualmente, os valores éticos da profissão, tomam idêntica atitude (em sentido contrário deliberou o Supremo Tribunal da Noruega, ao reconhecer o princípio da protecção das fontes, num caso que julgou recentemente).

Nos últimos meses, foram condenados oito repórteres e alguns deles correm o risco de vir a ser presos. São profissionais da ‘NBC’, do ‘New York Times’ ou da ‘Time’ e têm em comum o facto de não aceitarem revelar quem lhes confiou as notícias que levaram à opinião pública através dos órgãos onde trabalham.

O inusitado volume de casos tem levado organizações de jornalistas, americanas e internacionais, a criticar os tribunais e a defender o direito dos jornalistas (que dizem garantido pela Primeira Emenda da Constituição), circulando uma declaração de apoio na internet ( www.rcfp.org/standup).

Como já nesta coluna se tem referido, o problema das fontes está no centro do jornalismo e da sua credibilidade. Por um lado, os profissionais devem tomar como princípio a citação das suas fontes (para pressionar a observância desta regra, jornais como o ‘New York Times’ e o ‘Washington Post’ adoptaram, recentemente, medidas restritivas para o uso de fontes não identificadas). Por outro, têm a obrigação e, simultaneamente, o direito de proteger as fontes confidenciais a que recorram (a relevância da informação e as eventuais consequências para a fonte, são factores que justificam a confidencialidade), nos termos que com elas se comprometeram a fazê-lo. Estes são princípios consagrados na generalidade dos códigos éticos e deontológicos em vigor na Europa e nos Estados Unidos. E estão reconhecidos por documentos de alcance internacional como as ‘Declarações’ de Bordéus (1954), de Munique (1971) e da UNESCO (1983), todas consagrando o direito dos jornalistas a proteger as suas fontes. Por seu lado, o ‘Código Europeu de Deontologia do Jornalismo’, aprovado pelo Conselho da Europa em 1993, estabelece que ‘é necessário reforçar as garantias de liberdade de expressão dos jornalistas’ e que, nesse sentido, é preciso ‘desenvolver juridicamente e clarificar as figuras da cláusula de consciência e o segredo profissional das fontes confidenciais, harmonizando as disposições nacionais sobre estas matérias (…)’.

Por este ponto do documento europeu, passa o centro do problema: os códigos de conduta estabelecem, no plano da ética o que, muitas vezes, os Estados não reconhecem no plano da lei. Neste domínio, a que chama do segredo redactorial – que prefere à expressão segredo profissional – Daniel Cornu (1) considera que é muito clara ‘a separação entre os níveis da deontologia e do direito’, sendo que em muitos países constitui ‘um obstáculo’ colocado entre ambos.

Cornu refere que o segredo redactorial começou por ser protegido na Alemanha, na Áustria e na Escandinávia e valoriza a introdução, em 1993, no código de processo penal francês, de uma norma segundo a qual ‘ todo o jornalista, ouvido como testemunha sobre informações recolhidas no exercício da sua actividade, é livre de não revelar a sua origem’. Na sua reflexão, conclui que ‘sem ser absoluto, uma vez que há avaliação dos interesses, o segredo redactorial (…) é um elemento fundamental da credibilidade dos jornalistas’. E concorda com a proposta de uma entidade designada comissão Riklin: ‘que se reconheça o direito dos jornalistas, salvo quando um testemunho é necessário `para prevenir um atentado iminente à vida ou à integridade corporal de uma pessoa´; ou quando, sem esse testemunho, `um crime grave não pode ser esclarecido ou que a pessoa acusada de um tal crime não pode ser detida’.

No caso português, também o enquadramento desta matéria envolve diversas disposições. Sendo reconhecido pela Constituição, o segredo profissional não é um direito absoluto, já que o Estatuto do Jornalista estabelece que o jornalista não só não é obrigado a revelar as suas fontes, como o seu silêncio não pode ser sancionado. Mas isto, ‘sem prejuízo do disposto na lei processual penal’, o que significa que em determinados casos e circunstâncias os tribunais poderão exigir a quebra do sigilo. Pelo lado do dever ético, isso é, contudo, contrariado pelo ponto 6 do ‘Código Deontológico dos Jornalistas’, aprovado em 1993: ‘o jornalista não deve revelar, mesmo em juízo, as suas fontes confidenciais de informação, nem desrespeitar os compromissos assumidos, excepto se o tentarem usar para canalizar informações falsas’.

Se este princípio é discutido, é apenas pela excepção que admite (2) e que se afigura injustificada (em última análise, significa transferir para uma entidade que não tem nenhum compromisso com o leitor, uma responsabilidade que apenas compete ao jornalista). Ele reflecte a preocupação em defender não um privilégio corporativo, mas um direito que é de todos, em que assenta um jornalismo verdadeiramente livre. O qual não existe sem o compromisso que garanta às fontes a segurança do anonimato.

É também neste sentido que estabelece o Livro de Estilo do PÚBLICO, ao afirmar que ‘em nenhumas circunstâncias o PÚBLICO e os seus jornalistas se desobrigam do respeito pelo sigilo profissional e pela protecção das fontes, quaisquer que sejam as consequências legais daí resultantes’.

De resto a ideia de que deve ser assim parece estar interiorizada até no meio judicial, se recordarmos as palavras do juiz Rui Teixeira, em Maio do ano passado, ao microfone da RTP, numa entrevista (recolhida em andamento por ruas de Lisboa).

Questionado pela jornalista sobre o processo Casa Pia, Rui Teixeira respondeu algo como o que aqui se cita de memória: ‘sobre essa matéria não lhe digo nada, da mesma maneira que a senhora com certeza também não me iria dizer quais são as suas fontes’.

(1) – ‘Jornalismo e Verdade’, pp. 86-91, Instituto Piaget;

(2) – Ver o sítio do Sindicato dos Jornalistas, em http://www.jornalistas.online.pt.’