Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Joaquim Vieira

‘Quando um fait-divers narrado num blogue, como a ocupação alegadamente abusiva de uma cadeira por um ministro de José Sócrates para se sentar num restaurante ao lado do primeiro-ministro, durante a recente deslocação de ambos a Cabo Verde, recebe honras de notícia desenvolvida no PÚBLICO, com chamada na última página (edição da passada terça-feira, dia 17 de Março, com o título ‘Lugar à mesa de Sócrates cria confusão em Cabo Verde’), temos matéria de reflexão sobre até que ponto se assiste à ‘bloguização’ dos media convencionais, objecto aliás de uma recente crónica de José Pacheco Pereira neste jornal.

O facto é que os órgãos de informação tradicionais já não podem ignorar essa nova e fenomenal forma de comunicação, que reage mais depressa à actualidade, é mais viva e irreverente, dirige críticas acutilantes e originais, não está constrangida pelas regras editoriais do jornalismo e apresenta conteúdos mais apimentados, logo capazes de atrair a atenção pública e roubar audiências aos restantes meios. Prova disso é a tentativa de o PÚBLICO a incorporar na sua edição impressa, na secção diária ‘Blogues em papel’ (pág. 2 do P2).

Mas, tal como se dizia que nem todas as conversas de café merecem impressão em letra de forma, também nem tudo o que os blogues publicam tem dignidade para figurar num jornal. Sobretudo porque nem todos os autores de blogues, que exercem por essa forma o seu direito à liberdade de expressão e informação, conhecem as regras de responsabilidade a que essa mesma liberdade deve obedecer (coisa que os jornalistas já não ignoram). Em particular, aquelas que têm a ver com a preservação de dois princípios de cidadania que estão sempre em risco na comunicação em espaço público: os direitos ao bom nome e à reserva da intimidade da vida privada.

Quando os bloguistas violam esses direitos, o problema é seu, mas quando é um jornal a fazê-lo, ao citar certas passagens de blogues, o problema passa a ser do próprio jornal.

No anterior domingo, dia 15, sob o título ‘Ministro arrogante’, publicava-se na ‘Blogues em papel’ uma série de considerações ofensivas e gratuitas sobre um membro do actual Executivo – as quais, por razões óbvias, o provedor se abstém de aqui reproduzir.

Alguns leitores não deixaram de reclamar. Interrogou António Vieira: ‘Porquê divulgar, ampliando, esta série de insultos? Aprova o PÚBLICO este estilo de linguagem? Considera o jornalista que é legítimo discordar insultando? Acha o Provedor que o jornal cumpre um papel pedagógico divulgando práticas destas? Qual o valor de opinião assim expressa que justifique a sua divulgação? (…) O PÚBLICO não prestou um bom serviço aos seus leitores e ao País com esta citação’. E António Vaz Carneiro acrescentou, sobre ‘um texto que, pela sua agressividade insultuosa, boçalidade e ódio, não pode nem deve caber nas páginas de um jornal de referência’: ‘Já não basta transcrever textos anónimos, como são os da blogosfera, com todos os problemas que isso traz – nomeadamente a sua natural amplificação mediática. Deseja-se apenas que uma discussão política tenha o mínimo de decência para não estarmos sujeitos a este tipo de insultos soezes e odiosos. Quanto mais não seja, por uma questão pedagógica. Afinal, qual é o critério de selecção dos textos dos blogues?’

O critério é simples: ‘No P2 temos por regra não publicar blogues claramente insultuosos’, explica a jornalista Joana Amado, uma das responsáveis pela selecção de posts para a secção. Que aconteceu, então? ‘No caso em concreto – esclarece a jornalista –, o blogue não deveria ter sido citado. Foi um erro (infelizmente não o primeiro, mas tentaremos que seja o último), pelo qual pedimos desculpa aos nossos leitores’.

O provedor também já tinha reparado não ser a primeira vez que o problema se manifesta, pelo que se interroga sobre se a redacção do PÚBLICO possui consciência da gravidade de um erro destes: entre quem faz a selecção de posts para publicação, nem toda a gente parece conhecer exactamente as fronteiras que devem ser respeitadas. E uma falta deste teor não deveria ser relevada de ânimo leve, pedindo-se desculpas aos leitores mas não à pessoa visada pela difamação.

De sentido contrário, isto é, como peça laudatória de uma personagem, foi, segundo a opinião do provedor, a notícia ‘Elisa Ferreira, a conciliadora que é capaz das grandes rupturas, avança para o Porto’, publicada na pág. 6 da edição de 19 de Fevereiro, sobre a apresentação da candidatura da visada à Câmara Municipal daquela cidade.

Deve dizer-se que logo o título (por sinal também já criticado por Pacheco Pereira no seu blogue ‘Abrupto’) chamava a atenção: ou bem que aqueles qualificativos eram da responsabilidade da redacção, e não deveriam existir por serem considerações de natureza opinativa, ou bem que eram ditos por algum entrevistado, e nesse caso deviam figurar entre aspas. O texto informa que é a própria Elisa Ferreira a autoclassificar-se daquele modo, existindo pois logo aqui um problema com a construção do título.

Mas a verdade é que o artigo alinha no mesmo tom encomiástico, assumindo até que a candidata ‘já deu disso prova’ (isto é, da qualidade de ‘conciliadora’ e de pessoa de ‘grandes rupturas’) e rodeando de um tom épico a sua tentativa de desalojar Rui Rio do município portuense, garantindo que este ‘terá uma das suas mais difíceis provas de fogo na próximo combate autárquico’ (possuirá o PÚBLICO capacidades divinatórias?) e classificando o dia da apresentação de Elisa Ferreira como ‘o primeiro dia de uma campanha sem tréguas até ao dia dos votos’.

Julgaria o provedor que, para corresponder ao perfil de independência editorial do PÚBLICO, deveria uma notícia deste teor procurar abordar, do ponto de vista político, os prós e contras da candidatura em causa, em vez de apenas elencar aspectos positivos.

Presumindo que o título era da responsabilidade de um editor, o provedor começou por pedir esclarecimentos à direcção, que porém os remeteu para a jornalista autora da notícia, Filomena Fontes. A questão do título acabaria por ficar sem resposta, mas o provedor discutiu com Filomena Fontes. diversos aspectos da construção do texto, tendo os argumentos específicos, pela sua extensão, sido colocados no seu blogue.

Quanto ao tom genérico da notícia, justificou a jornalista ao provedor: ‘Foi-me pedido um perfil/análise, sobre o percurso profissional e político de Elisa Ferreira, que funcionasse como antecipação do lançamento oficial da candidatura. Não se tratava, assim, de apresentar uma candidatura num contexto de outras que já se perfilaram para a Câmara do Porto. O tom geral de entusiasmo que refere é uma interpretação, que respeito mas veementemente rejeito, assim como me parece igualmente que não faria qualquer tipo de sentido estar a analisar os prós e contras de uma candidatura quando se tratava tão-só de fazer um perfil de apresentação da candidata. Outras candidaturas se seguirão e na altura se fará a caracterização dos candidatos. É assim que se tem feito neste jornal, e certamente que assim decidirão os directores e editores. (…) Tão pouco me pareceria correcto que fossemos à procura de opiniões menos abonatórias, só porque aquelas que ouvimos lhe possam parecer (e esta é matéria de livre interpretação) de teor laudatório ou panegírico. Isso sim, é que seria falta de isenção e distanciamento. O facto é que foram ouvidas fontes de origens diversas, tanto políticas como profissionais’.

Não obsta a que o provedor sinta não ter sido aqui respeitado o princípio do distanciamento do jornalista perante os factos que narra, contido no ponto 9 dos ‘Princípios e normas de conduta profissional’ do Livro de Estilo do PÚBLICO (impressão para a qual também contribui, em grande parte, o título filho de pai incógnito). Trata-se, claro, como diz Filomena Fontes, de ‘matéria de livre apreciação’, mas é o tipo de apreciação que se pede ao provedor que faça.’