Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Jornalão cai em farsa literária

Em sua coluna de domingo [16/3/08], o ombudsman do New York Times, Clark Hoyt, conta como descobriu, com alguns cliques no computador e a ajuda de Jack Begg, supervisor do departamento de pesquisa do diário, que o livro autobiográfico Love and Consequences (Amor e Conseqüências, tradução livre), da autora Margaret Jones, não passava de uma farsa. Em apenas cinco minutos, Hoyt tomou conhecimento de que não havia registro de nenhuma Margaret B. Jones em Eugene, Oregon, e que a casa da qual a autora dizia ter sido proprietária foi comprada por Margaret Seltzer em 2000.


No entanto, esta simples checagem dos fatos não foi feita antes da publicação de uma crítica positiva sobre o livro, assinada por Michiko Kakutani no dia 26/2. Dois dias depois, o diário publicou outra matéria com Margaret e sua filha, em sua casa em Eugene, na seção destinada a artigos sobre o lar, na qual ela mostrava como conseguiu dar a volta por cima de uma vida marcada por violência e drogas.


Uma semana depois, o NYTimes reconheceu que, na verdade, a pessoa da foto não era Margaret Jones, mas sim Margaret Seltzer. Foi sua irmã quem viu o jornal e ligou para a editora Riverhead Books para dizer que a história não era verídica. Posteriormente, em uma entrevista a Motoko Rich, jornalista que escreve para a seção literária do diário, Margaret (Seltzer) admitiu que inventou sua biografia – ela não viveu nas ruas com gangues, nem se formou na Universidade do Oregon.


Fato vs. ficção


Não é a primeira vez que ocorre um caso deste tipo no mercado editorial americano. Há dois anos, o autor James Frey confessou que a autobiografia A million little pieces continha partes inventadas. Na suposta biografia Love and Consequences, a autora faz um relato de uma vida nada fácil: ela teria sido levada de sua família aos cinco anos, sofrido violência sexual e vivido em abrigos antes de entrar para uma gangue em Los Angeles. Mas não foi apenas o NYTimes que caiu no conto do vigário. Dentre outras organizações de mídia, a National Public Radio e o Los Angeles Times divulgaram artigos sobre a publicação.


Hoyt questiona como o diário pode ter caído na farsa. A crítica literária Michiko Kakutani e a editora Penelope Green, da seção sobre lar, receberam o livro da Riverhead Books. Ambas consideraram o material interessante. Penelope achou que Margaret seria uma ótima personagem: era alguém que não teve casa e viveu uma saga em busca de um lar.


Conflito de interesses?


Alguns blogueiros chegaram a escrever que tudo não passava de conflito de interesses. Sarah McGrath, editora do livro, é filha de Charles McGrath, crítico do NYTimes que já editou a seção de crítica literária. Hoyt alega, porém, que ele não teve influência nenhuma na publicação da matéria. Michiko nunca conversou com McGrath sobre os livros que resenha e eles mal se conhecem. Ela trabalha de casa e raramente vai à redação. Michiko diz ainda que não sabia que McGrath tinha uma filha.


A crítica alega que não verificou os dados de Margaret porque a editora havia lhe enviado uma entrevista de 10 páginas com a autora. Mimi Read, que recebeu a pauta para escrever o artigo para a seção de lar, passou cinco horas com a suposta ‘Margaret Jones’. Ela não duvidou da veracidade da história porque a pauta havia sido enviada pelo NYTimes e porque ela não deveria entrevistar mais ninguém em uma matéria de perfil. ‘Margaret contou tudo com muitos detalhes. Havia fotos de membros de gangues em sua casa’, relatou a jornalista. No entanto, uma foto de um casal branco, que Margaret disse se tratar de seus pais biológicos, chamou a atenção da repórter, já que no livro ela se dizia mestiça de índios. Questionada por Mimi sobre as pessoas da imagem, Margaret afirmou que havia reencontrado seus pais biológicos quando tinha 20 e poucos anos. Hoje, ela tem 33.


A repórter então a questionou sobre o abuso sexual, mas Margaret afirmou que não foi violentada por ninguém da família. A partir daí começaram as dúvidas: se o agressor não era da família, por que ela foi tirada de sua casa? Mimi e seu editor, Tom de Kay, concordaram que deveriam procurar outras fontes para a matéria. A jornalista conseguiu conversar com um homem que alegava ter sido noivo de Margaret, mas não conhecia nada de seu passado. Outros esforços para falar com conhecidos não deram certo. Ainda assim, o texto foi publicado.


Lições aprendidas, na visão de Hoyt: Michiko diz que, no futuro, será ‘extra cética em relação a este tipo de literatura’. Craig Whitney, editor de qualidade do diário, reforça que perfis devem ter checagem de dados de maneira independente. A Riverhead Books recolheu os exemplares dos livros das livrarias.