Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

José Queirós

Pode dizer-se do jornalismo que é um ofício em que se aprende a saber um pouco de tudo, sem se ficar a saber muito de nada. Grande parte dos profissionais são polivalentes — têm de se informar e informar diariamente o público sobre temas da mais variada natureza — e, mesmo nos casos em que se especializam numa área temática, não dispõem geralmente de uma formação específica prévia. As reconhecidas excepções ao retrato do jornalista como detentor de muita informação dispersa mas pouco conhecimento aprofundado sobre áreas específicas do saber resultam quase sempre do esforço pessoal, da especialização continuada em determinadas temáticas e, em alguns casos, de uma preparação científica específica combinada com o talento para o exercício da profissão.

Compreende-se que assim seja. As redacções não são formadas por especialistas nos vários domínios do saber e o que se espera de um bom jornalista é que seja um bom mediador de informação e um bom avaliador do seu interesse noticioso. Compete-lhe, em geral, descodificar situações, problemas, controvérsias ou acontecimentos que podem apresentar diferentes níveis de opacidade ou complexidade para a generalidade dos leitores, e por isso o rigor e a clareza expositiva são duas das principais virtudes que lhe são requeridas. Em matérias de maior densidade técnica, que na sociedade actual cada vez mais surgem no caminho de uma imprensa que queira informar bem o seu público, pede-se-lhe que domine as artes de duvidar e questionar, de saber formular as perguntas certas e encontrar as respostas de interesse geral.

É dessas regras e artes do ofício que um jornalista deve mostrar-se sabedor. O seu exercício impõe uma regra básica, mas muitas vezes esquecida. Quando confrontado com matérias noticiosas que para serem bem elucidadas não podem dispensar o recurso a conhecimentos especializados, deve escrever tendo em conta que muitos dos seus leitores saberão tão pouco como ele, ou até menos do que ele, sobre o tema em questão.

Mas terá de ter também em conta que, face a qualquer notícia, haverá sempre leitores que sabem mais do que ele. Seja por proximidade aos factos, seja por dominarem o conhecimento de uma qualquer área temática. Serão esses os seus leitores mais críticos. Muitas vezes, as suas razões, ainda que legítimas, não são compatíveis com a razão própria do jornalismo: é o fenómeno conhecido de que ninguém se revê inteiramente numa notícia sobre um acontecimento em que participou ou a que assistiu (o jornalismo, para cumprir a sua missão com eficácia, implica selecção, simplificação, distanciamento e noção de pluralidade de perspectivas e destinatários). Outras vezes, e a experiência mostra que geralmente com razão, essas críticas dirigem-se à falta de rigor técnico em matérias que implicam conhecimentos especializados. E são especialmente úteis quando indicam que um erro ou uma falha de rigor podem resultar em má informação para o público em geral.

Um olhar atento aos comentários às notícias publicadas na edição on line deste jornal (que podem ser também peças incluídas na edição em papel), e sobretudo às de índole científica ou técnica mais pronunciada, mostra que o grau de exigência dos leitores do PÚBLICO é elevado neste domínio. As suas chamadas de atenção deveriam aliás ser mais bem aproveitadas, com vista à correcção de erros que, de outro modo, permanecem indefinidamente no espaço virtual, associados ao nome do jornal.

Trabalhando para uma audiência exigente — que é também uma soma de audiências atentas ao rigor da informação nas matérias que melhor conhecem —, compete à imprensa de qualidade encontrar os melhores mecanismos e métodos para combinar rigor e clareza na divulgação de informações que interessam a muitos, mas envolvem conhecimentos que só alguns detêm. Em vários domínios, a aposta na especialização temática dos jornalistas é indispensável, mas o processo tem limites: é inviável formar uma redacção de peritos em todos os domínios, para além de que o resultado seria provavelmente desastroso, pela razão já apontada de que o que se espera de um bom redactor é que seja perito, sim, na arte e nas técnicas da mediação informativa.

Por outro lado, o número compreensivelmente reduzido de jornalistas especializados em certas áreas temáticas — ciências, educação, saúde, ambiente, entre muitas outras — não permite evitar que, num jornal diário, esses temas tenham muitas vezes de ser confiados a outros redactores, de quem se espera que, mesmo não acompanhando habitualmente esses temas, saibam abordá-los de acordo com as boas práticas do ofício. Haverá outros caminhos a explorar — nos domínios da edição, da circulação da informação e da crítica, da cooperação interna, da formação ou até do recurso à consultadoria especializada em certas áreas mais complexas. Mas nada substituirá o requisito essencial do jornalismo: questionar, não abdicar de nenhum meio para saber ou compreender o que não se conhece ou se conhece mal, a bem da transmissão rigorosa e clara da informação. E corrigir, de imediato, o que se revelar errado ou equívoco.

Aos leitores, por seu lado, caberá compreender que a um jornal diário, por muito que zele pela qualidade informativa, não pode exigir-se o rigor e a profundidade de uma publicação científica ou técnica especializada. E este é também um aspecto relevante na análise da reclamação que hoje me ocupa.

Chegam-me com alguma frequência queixas de leitores que apontam falhas a notícias que lidam com áreas de saber especializado. Uma delas é a medicina, o que se explicará pelo visível esforço do PÚBLICO em responder à crescente procura de boa informação em matérias relacionadas com a saúde. Deixarei para outra ocasião algumas críticas pertinentes a certos títulos susceptíveis de causar alarme injustificado em assuntos de saúde pública, para exemplificar com um caso que não será dos mais relevantes, mas é o mais recente.

O leitor Fernando Cardoso Rodrigues, que se identifica como médico pediatra — e que já no mês passado criticara no plano técnico a legenda de uma infografia sobre a fome no Corno de África —, considerou “desadequados” e “perniciosos” os títulos “Queda abrupta na vacinação contra meningite infantil” e “Crise faz descer a pique número de crianças vacinadas contra a meningite”, que na capa e na página 4 da edição do passado dia 5 foram, respectivamente, os escolhidos para destacar uma notícia em que a jornalista Ana Cristina Pereira informava que está a diminuir o recurso das famílias à vacinação contra a bactéria “streptococcus pneumoniae” (pneumococo) — facto que um especialista ouvido atribui ao preço elevado da vacina —, e que o Bloco de Esquerda propôs a sua inclusão no Programa Nacional de Vacinação ou, pelo menos, a sua comparticipação pelo Estado.

Motivos da crítica: a vacina em questão protege contra as infecções provocadas por aquela bactéria (“ou, mais rigorosamente, por algumas estirpes mais virulentas desta”), e “essas infecções tanto podem ser otites, pneumonias, septicemias, meningites ou outras”. Por outro lado, “o pneumococo não é o agente causador da meningite mas um dos causadores, pois esta pode ter outros microorganismos (bactérias, vírus e outros) como agentes etiológicos”. Seria assim “desadequado” referir nos títulos uma “vacina contra a meningite”, quando o agente imunizador que está em causa não protege apenas contra essa doença (ponto aliás perfeitamente claro no texto de Ana Cristina Pereira), nem previne outros processos de infecção das meninges. E seria “pernicioso” por poder criar “angústia a [pais] que não têm dinheiro para comprar a dita vacina” ou que “lá arranjam o dinheiro (…) e ficam convencidos de que [a sua criança] nunca terá uma meningite, quando o que nunca (?) terá é uma meningite… por aquelas estirpes de pneumococo”.

Fernando Rodrigues insistiu nesta crítica quando, na edição do passado dia 10, o PÚBLICO voltou a referir a vacina “contra a meningite”, aliás num contexto errado, em que se referia a sua eventual “descomparticipação”. E voltou a fazê-lo por não ter sido feita a “reposição da verdade” na última quarta-feira, quando a direcção do jornal publicou uma nota em que reconhecia um erro de edição, de outra natureza, na notícia do dia 5.

O autor dos títulos, o editor Tiago Luz Pedro, reconhece que o leitor tem razão no plano “técnico”, mas sublinha que era a prevenção da meningite “o foco principal” da iniciativa parlamentar noticiada. E refere que a vacina em questão é habitualmente designada por “vacina contra a meningite”, não apenas pelos políticos activos na área da saúde, mas no próprio meio médico, um facto também salientado pela autora da notícia e que eu próprio pude confirmar.

No meu entender, o título — não sendo errado — não é rigoroso, pelos motivos que o leitor aponta, e que o PÚBLICO deverá ter em conta quando regressar ao tema, mas parece-me um exagero considerá-lo “pernicioso”. E, mesmo no plano do rigor, convirá relativizar: segundo as informações que pude obter, e que não são contraditórias com o que escreveu, a vacina contra o “streptococcus pneumoniae” protege contra grande parte das meningites de origem bacteriana prevalecentes no nosso país (e as de origem viral, por exemplo, são geralmente menos graves). Sendo conhecida a perigosidade da doença em causa e a importância da sua prevenção, compreende-se que essa vacina seja associada na linguagem corrente à meningite. Por isso, e sem prejuízo do acolhimento à clarificação feita pelo leitor, julgo que a oportunidade da peça de 05.09 é indiscutível e que os seus títulos, certamente desaconselháveis numa publicação científica, não são “desadequados” num jornal de informação geral.

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Documentação complementar

Primeira carta do leitor Fernando Rodrigues

Não quero valorizar exageradamente o que vou dizer, e só o faço no sentido de melhorar o que o PÚBLICO nos oferece. Assim, no jornal de domingo 7/8, as páginas centrais (28 e 29) traziam uma excelente reportagem sobre “Fome no Corno de África…”, com didácticos “bonecos” acerca do assunto. Só que no da direita, que esquematiza uma figura humana e tem o sub­título “Efeitos da fome no corpo humano por falta de nutrientes”, há um erro que era evitável se quem o escreveu tivesse mantido a parcimónia informativa por que se regeu nas outras cinco legendas do mesmo “boneco”. Mas na que se inicia por “Os rins e o fígado funcionam deficientemente…”, quando diz “…a barriga incha devido aos parasitas que se alojam nos intestinos. E também devido à deficiente circulação sanguínea, que pode causar edemas (fluidos que o organismo não consegue expulsar”, as coisas não são bem assim!

Relativamente ao “inchaço da barriga” (edema que tem o nome científico de ascite), tem por causa primeira ( para além de outras) a baixa de proteínas por défice de aporte alimentar (baixando portanto a pressão oncótica) e não os parasitas intestinais que, acompanhando embora a mal­nutrição proteica, por défice sanitário, só são adjuvantes porque “comem” as já parcas proteínas que não entram na boca da pessoa. Quanto à circulação sanguínea, é verdade o que disse, mas já a jusante da tal baixa da pressáo oncótica (pelo tal défice de aporte proteico, baixa de pressão oncótica, chamada de água para fora dos vasos sanguíneos, etc, etc).

Bom, palavra que não quero “armar-me” e nunca escreveria isto se o autor fizesse aquilo que, como já referi, fez nas outras quatro legendas do “boneco”: informação breve, correcta e adequada a todas as pessoas, independentemente da cultura que tenham. Mas, na que me trouxe aqui, tentou a explicação fisiopatológica e… pumba!

08.08.2011

Fernando Cardoso Rodrigues

Médico

 

Segunda carta do leitor Fernando Rodrigues

O PÚBLICO de 5 de Setembro traz em 1ª página um título, “Queda abrupta a vacinação contra a meningite infantil”, com um pequeno texto que remete para informação mais alargada na página 4 (texto de Ana Cristina Pereira). Neste última o título é do mesmo teor. Ora ambos os títulos são manifestamente desadequados e, mais que isso, perniciosos. Aliás os textos que os sustentam, confirmam-no, pois acaba por se saber que o que a vacina previne são as infecções por um bactéria chamada “sreptococus pneumoniae” (pneumococo) ou, mais rigorosamente, por algumas estirpas estirpes mais virulentas desta.

Ora essas infecções tanto podem ser otites, pneumonias, septicemias, meningites ou outras. Ou seja, o pneumococo não é o agente causador da meningite mas um dos causadores, pois esta pode ter outros microorganismos (bactérias, vírus e outros) como agentes etiológicos. A meningite é tão somente a infecção das meninges e a que é desencadeada pelo pneumococo nem sequer é das mais frequentes, embora seja das mais graves.

Dir-me-á, mas se o texto explica, onde está o erro dos títulos? Bom, sabe-se perfeitamente, para além do léxico ser um pouco para iniciados, que muitas vezes a leitura dum jornal é feita em parte só por alguns títulos e este… é de 1ª primeira página!! E já imaginou a angústia duns pais que não têm dinheiro para comprar a dita vacina e… um dia o filho tem uma meningite? Muito provavelmente, como já disse atrás, ela será causado por um germe “benigno” mas… Ou então ao contrário, lá arranjam o dinheiro para a vacina e… ficam convencidos que o menino nunca terá uma meningite! Quando o que ele nunca (?) terá é uma meningite… por aquelas estirpes de pneumococo contidas na vacina!

Este é assunto que me levou a escrever. Fica ainda por discutir se a vacina deve ou não ser incluída no Plano Nacional de Vacinação (PNV). Mas isso é uma discussão de política de saúde que tem que ser bem alicerçada pois há critérios rigorosos para o fazer ou não. Não cabe no âmbito desta simples missiva.

 06.09. 2011

 Fernando Cardoso Rodrigues

 Médico Pediatra

 

Terceira carta do leitor Fernando Rodrigues

Ainda há dias enviei uma carta sob o mesmo tema e erros similares mantêm-se. No jornal de hoje (10/Setembro) um texto de Catarina Gomes, na pág.7, volta a cometer erros, desta vez nos planos factual, científico e social ao escrever “Depois dos protestos… de que iriam ser descomparticipadas… as pílulas…, as vacinas contra o cancro do colo do útero, a hepatite B e contra a meningite…”. Primeiro, como já afirmei, não há nenhuma vacina contra a meningite! Há-as contra alguns agentes microbianos que, entre outras doenças, provocam meningite. Segundo, o governo do país vai (afinal já não vai…) é descomparticipar uma vacina contra a gripe e não… “contra a meningite”! Escrevo porque estas notícias mal dadas podem provocar danos sociais e políticos, como é bom de ver.

 10.09. 2011

 Fernando Cardoso Rodrigues

 Médico Pediatra

 

Quarta carta do leitor Fernando Rodrigues

Por duas vezes, a 6 e 10 do corrente mês, enviei “mails” sobre o assunto em epígrafe [“Vacina contra a meningite”]. Depois que o PÚBLICO publicou hoje uma carta “direito de resposta” da Socedade Portuguesa de Pediatria (SPP) poderia parecer que o assunto estava encerrado, mas a verdade é que aquilo que escrevi continua sem uma reposição da verdade. E, lamento ter que o dizer, a SPP não contribuiu para o esclarecimento total pois só repôs a “verdade política” (usarem o “nome da SPP em vão”…), mas não disse aquilo que me parece muito importante: não há “a vacina contra a meningite” (…)!

 14.09.11

 Fernando Cardoso Rodrigues

 Médico Pediatra

19 de Setembro de 2011