Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

José Queirós

‘‘Se o jornal tem um conjunto de padrões de qualidade, não deve permitir que nenhum dos espaços subordinados ao seu título se situe abaixo desses padrões. Por muito importante que seja a participação, se é grosseira e de baixo nível, em nada serve os leitores ou o jornal. Até agora quase todos os jornais optaram pela abertura, porque aumenta o tráfego. Mas chegou a hora de escolher, também na participação, entre a qualidade e o tráfego. Um controlo mais apertado dos comentários fará baixar a participação num primeiro momento, mas aumentará a qualidade e, a prazo, interessará mais aos leitores’.

As palavras que acabo de citar são da provedora dos leitores do diário espanhol El País, Milagros Pérez Oliva, e servem de conclusão a um texto seu de Julho passado, que se insere no debate em curso na imprensa internacional sobre os efeitos perversos da abertura generalizada das edições electrónicas dos jornais à publicação de ‘comentários dos leitores’. Subscrevo-as, tornando clara a minha posição de partida num tema que está na origem de muitas das reclamações que recebo, e que me parece oportuno abordar quando o PÚBLICO celebra, com excelentes motivos, o 15º aniversário do lançamento da sua edição na Internet. Considero que a opção do jornal pela publicação automática — isto é, sem edição prévia — de comentários às notícias em linha está a tornar-se um factor de deterioração da sua imagem.

Não vou dar exemplos dos inúmeros comentários que não passam de exibições de boçalidade, sucessões de insultos e ataques pessoais injuriosos, manifestações de xenofobia, racismo e outras formas de intolerância, quase sempre publicados sob a capa do anonimato ou do pseudónimo. Os leitores que acedem ao Público Online e se interessam pelo espaço de reacções às notícias conhecem bem esse lado menos frequentável do jornal. Para vergonha de quem o faz e lê, o PÚBLICO, estando longe de ser o único veículo deste tipo de ‘lixo’ — recorro ao termo adequado que José Pacheco Pereira usou para intitular um artigo que dedicou há meses, nesta páginas, à degradação das caixas de comentários dos jornais em linha —, é talvez o que mais se destaca pela negativa, ao atrair, com os seus duzentos mil visitantes/dia, a apetência comunicativa de uma pequena legião de arruaceiros, cuja paixão pela ofensa gratuita e gosto pela obscenidade se derramam principalmente, mas não só, pelas áreas de comentário ao noticiário político e desportivo.

Prefiro citar uma ínfima parte das reclamações que me chegam dos leitores inconformados. Por exemplo: ‘ A qualidade do PÚBLICO é arrastada na lama com os comentários que pululam no vosso site’ (Marta Santos). ‘É esta linguagem admissível num jornal sério?’ (Aníbal Loureiro). ‘Há utilizadores que apenas insultam e nada contribuem para a discussão civilizada que muitos desejam levar a cabo sobre as notícias do dia’ (Raul Covita). ‘É cada vez mais desinteressante ler as notícias e tentar contribuir com o que quer que seja, quando muitas das pessoas que comentam se limitam a ofender’ (Paulo Abreu).

Ou ainda: ‘Confesso que tenho sentido alguma tristeza e vergonha de cada vez que leio o Público.pt. (…) Deparo-me diariamente com comentários cujo conteúdo é xenófobo, insultuoso e muito pouco edificante para um jornal de qualidade (…) No caso de notícias referentes aos homossexuais e a minorias étnicas, o caso é particularmente grave e ofensivo. Em vez de um debate construtivo, encontramos palavras que destilam ódio e violência (…). Julgo que se torna urgente uma moderação mais atenta ou uma alteração dos critérios de publicação (…) Estou consciente de que não é fácil moderar milhares de comentários e que o tráfego gerado por esta interactividade se traduz em receitas para o jornal. Mas a que preço? (…) Tenho cada vez menos vontade de ler um jornal assim’ (Ana Sousa Carvalho).

Não é fácil, de facto, moderar os cerca de dois mil comentários que, em média, chegam diariamente ao jornal. Sérgio Gomes, responsável editorial do Publico Online, que me forneceu o número, recorda, em depoimento que me enviou em Julho, que, ao princípio, ‘o trabalho de selecção e edição de comentários era feito pelos editores do Online, até que se tornou humanamente impossível garantir essa tarefa’. ‘Há cerca de dois anos’, explica, ‘o PÚBLICO libertou a publicação de comentários, dando aos leitores a possibilidade de denunciarem aqueles que, na sua opinião, não respeitassem as regras de publicação que estão disponíveis para consulta em todas as notícias’.

Sucede que o mecanismo de denúncia de comentários tem efeitos indesejáveis, levando à eliminação, temporária ou definitiva, de comentários irrepreensíveis à luz dos critérios em vigor, por acção concertada de grupos facciosos. Quanto às regras de publicação (‘São inaceitáveis comentários que contenham acusações de carácter criminal, insultos, linguagem grosseira ou difamatória, violações da vida privada, incitações ao ódio ou à violência ou que preconizem violações dos direitos humanos’), nada a dizer, a não ser que são desrespeitadas todos os dias ou quase.

‘O PÚBLICO’, escreve Sérgio Gomes, ‘acreditou que o espaço de comentários podia ser uma plataforma para uma discussão saudável dos mais diversos assuntos da actualidade’. É verdade que podia, e não raras vezes conseguiu sê-lo. E é certo que esse debate alargado aos leitores é um dos mais importantes contributos com que as edições na rede podem enriquecer o jornalismo tradicional. O que a experiência demonstrou é que a dignidade dessa discussão se mostra incompatível com a publicação de comentários não editados. Até porque o ‘lixo’ afugenta muitos dos que gostariam de participar nos debates.

Não se veja, na defesa de critérios de edição, qualquer apoio a restrições à liberdade de expressão, para lá das normas que protegem uma vida social civilizada e não devem ficar à porta dos jornais. Não se veja, sequer, qualquer contestação do ‘direito ao lixo’. Não faltam, no nosso espaço público, lugares onde exercer a livre expressão da boçalidade. O que está em causa é o contrato do PÚBLICO com os seus leitores e esse contrato exclui a liberdade do insulto e da calúnia.

Em papel ou na Internet, este jornal é uma só entidade, que se propôs ser uma marca de referência e qualidade. ‘O PÚBLICO tem a mesma exigência ética e de estilo em todos os suportes onde está presente’, garantem os responsáveis editoriais. Assim deveria ser, mas todos podemos ler nas caixas de comentários o que seria impensável ver publicado nas Cartas à Directora ou em artigos de opinião. O preceito do Livro de Estilo que sujeita os textos de opinião externa, tal como os da redacção, ‘ao respeito pela linguagem não insultuosa e não panfletária’ é constantemente torpedeado na edição em linha.

Vale a pena interrogarmo-nos sobre quem são esses ‘leitores’ que degradam o espaço de debate que o PÚBLICO lhes proporciona. Não são, certamente, os que escolheram este jornal pelos valores que presidem à sua matriz editorial. São, provavelmente, uma pequena (mas muito activa) minoria entre os que acedem à edição em linha. Mas, sejam muitos ou poucos, cabe perguntar: são estes os leitores que o PÚBLICO quer? É que não são só os leitores que escolhem os jornais. Estes também escolhem os seus leitores: por isso têm uma linha editorial, normas de estilo, temas e abordagens preferenciais. Querem naturalmente alargar o número desses leitores, mas não ao preço da descaracterização do seu projecto.

É bem possível que a lógica economicista que tem presidido ao laxismo editorial disfarçado de abertura total à ‘interactividade’ (mais comentários representam mais acessos, logo maior atracção de receitas publicitárias) venha a revelar-se contraproducente. O crescimento do lixo tende a afastar leitores fiéis, enquanto a qualificação do debate na edição em linha, elevando o seu prestígio, poderia atrair novos leitores e torná-la mais interessante como veículo publicitário. Ainda que assim não seja, há alturas em que é preciso escolher entre audiência e qualidade.

Conscientes disso mesmo, muito jornais estão a repensar, um pouco por todo o mundo, a gestão dos comentários nas edições em linha, e a experimentar soluções que permitam um melhor equilíbrio entre as vantagens da interactividade e os riscos da publicação de material não editado. A provedora do El País sugeriu o estabelecimento de um registo prévio da identificação real dos comentadores, e não apenas do endereço electrónico, embora admitindo que os textos possam ser assinados por pseudónimos (creio que seria preferível — mas esse é outro debate — que o anonimato fosse justificado caso a caso). Vários leitores têm proposto soluções semelhantes, visando um controlo mais efectivo da participação nas caixas de comentários.

Constatando que ‘a realidade tem mostrado que o espaço de comentários tem sido utilizado para reacções que ultrapassam as regras de publicação’, os responsáveis editoriais do PÚBLICO informaram-me, em Julho, de que ‘a actual política deverá ser revista’, de modo a garantir que o jornal ‘deixe de dar abrigo a manifestações de ódio, racismo, xenofobia e todo o tipo de radicalismos e extremismos’. Espero que isso possa acontecer a curto prazo.

Qualquer que venha a ser a solução encontrada, considero que o único modo de o PÚBLICO cumprir com segurança os seus próprios critérios para a publicação de comentários terá sempre de passar por assumir a responsabilidade pela sua selecção e edição. O que implica meios humanos qualificados, ainda que apoiados em soluções tecnológicas que facilitem o seu trabalho. Não sendo isto possível, só vejo uma alternativa decente, ainda que indesejável: o fecho das caixas de comentários.’