Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Manuel Pinto

‘Josep Maria Casasús é catedrático de Jornalismo da Universidade Pompeu Fabra, em Barcelona, e provedor do leitor (‘defensor’, como dizem os espanhóis) do diário ‘La Vanguardia’. Encontrámo-lo, na semana passada, na sede do jornal, na capital da Catalunha. Para um provedor que está a iniciar a sua actividade, é sempre enriquecedor poder trocar impressões com alguém como Casasús, que exerce a função desde 2001. É uma experiência que nos marca, numa profissão ou num qualquer cargo, a de poder aprender com alguém que admiramos e que tem certamente algo de importante a dizer-nos. Sobretudo quando, ao exercício dessa função, aquele provedor alia o facto de ser um nos nomes mais marcantes do estudo do jornalismo em Espanha e, em particular, na Catalunha, com vários livros e numerosos artigos publicados sobre esse campo.

O jornal ‘La Vanguardia’ tem uma idade que não anda longe da do ‘Jornal de Notícias’. Foi fundado em 1881, por Carlos e Bartolomeu Godó, e ainda hoje se mantém na posse da mesma família. Nasceu numa altura em que era novidade um jornal feito de notícias e já não, como até então, feito sobretudo de tribunas de opinião, de polémicas partidárias e de lutas ideológicas. Curiosamente, porém, nos seus primeiros anos de vida, esse periódico surgiu como um jornal doutrinário, provindo o nome da vontade dos seus fundadores de afirmar a proposta liberal face ao ‘obscurantismo e imobilismo conservador’ (declaração de princípios do nº1). A sua sede, na Rua Pelai, a escassas dezenas de metros da conhecida Plaça de Catalunya, é um edifício que acaba de completar cem anos, e que está prestes a ser trocado por uma nova, na Avenida Diagonal. Hoje, ‘La Vanguardia’, com uma carteira de pequenos anúncios superior a ‘El País’ e com uma tiragem que ronda os 200 mil exemplares, é um jornal sério e dinâmico, com uma imagem de ponderação e equilíbrio, onde escrevem intelectuais de prestígio, como por exemplo Manuel Castells (e, no passado, Menendez Pelayo, Maria Zambrano ou António Machado). Um slogan que pôs a circular diz bem o registo em que se posiciona: ‘La Vanguardia não é responsável pela opinião dos seus leitores, mas sente-se responsável por que a tenham’.

Josep María Casasús recebe-nos no seu gabinete de provedor. Várias caixas em que vai reunindo as pastas de arquivo indiciam que também aqui se prepara a mudança de instalações. Diferentemente do que se passa por exemplo no JN, aquele provedor tem períodos de presença no jornal, para receber pessoalmente os leitores ou as chamadas telefónicas que lhe sejam dirigidas. Quando não está presente, pode sempre aceder ao gravador de mensagens através de um código de acesso à distância.

Reafirma-nos aquilo que escreveu na sua coluna de domingo passado: que globalmente o seu jornal se portou bem na cobertura dos atentados de 11 de Março. Refiro a Casasús o facto de o JN, logo na edição do dia 12, ter publicado como manchete o título ‘Bárbárie – Pista da Al-Qaeda na matança de Madrid’. Comentário do meu interlocutor: ‘Vários media internacionais começaram cedo a apontar para esse cenário, quando aqui se continuava a propalar a versão que o Governo de Aznar procurou impor. Ora, este jornal foi dos raríssimos meios de comunicação social espanhóis a colocar cedo sobre a mesa a pista da Al Qaeda. Mas como tem uma imagem de jornal conservador, ninguém notou ou quis notar o facto’. O telefonema de um leitor interrompe a conversa. Percebo que o motivo da chamada se prende com um lapso do jornal, que tinha trocado o nome do santo do dia. Casasús faz-me um sinal cúmplice, enquanto regista a queixa. É que antes havíamos estado a conversar precisamente sobre os motivos dos contactos de muitos leitores, que pouco têm que ver com o conteúdo editorial do jornal. Refere conversa recente com a provedora de ‘El País’ em que comentavam a qualidade das mensagens de análise do jornal que recebe, por exemplo, o ‘médiateur’ de Le Monde. É que – nota com argúcia – a qualidade das observações dos leitores também faz a qualidade do trabalho do provedor. Enquanto trocamos impressões sobre a ideia de reunir os provedores de Portugal e de Espanha, sugerida pelos organizadores do Fórum Mundial das Culturas, que decorrerá a partir de Maio em Barcelona, o provedor de ‘La Vanguardia’ anuncia que está a escrever um livro sobre o papel dos provedores, em que contrapõe o perfil dos ‘ombudsman’ anglo-saxónicos’ ao dos europeus. É uma ideia que propõe há algum tempo. Desenvolveu-a, por exemplo, em Abril de 2001, em Paris, no encontro anual da associação internacional de provedores. Os norte-americanos, que são maioritários nessa organização, é que não terão simpatizado excessivamente com a perspectiva do ‘defensor’ catalão. Em termos gerais, os ‘ombudsman’ (e as empresas jornalísticas que os contratam) partilham preocupações comuns de rigor e qualidade da informação jornalística. Segundo Josej Maria Casasús, enquanto, porém, na Europa (latina e nórdica), se acentua o serviço público que o jornalismo deve prestar e se coloca o acento na cidadania, nos direitos humanos, e num quadro ético de referência, no espaço anglo-saxónico, ou por ele influenciado, é-se mais sensível a uma lógica de serviço ao cliente e de controlo de qualidade, medida por parâmetros devidamente tipificados. O provedor teria, nesse quadro, um papel de relações públicas do jornal. Não sei se essa catalogação faz justiça à generalidade dos provedores, particularmente aos anglo-saxónicos. Só uma análise comparativa do trabalho que desenvolvem o poderia revelar. Conheço, por outro lado, as reticências que outros exprimem sobre a natureza e a eficácia do provedor, seja ele de que linha for. Do que não duvido é da importância de neste e noutros jornais se poder debater e reflectir sobre os valores fundamentais do jornalismo que neles se faz, abrindo uma porta à participação dos leitores.

A criação da figura do ‘defensor’ do telespectador na televisão pública e a institucionalização de um Conselho de Comunicação Audiovisual que assegure independência face ao Governo e promova a qualidade são algumas das medidas propostas pelo novo poder socialista que está prestes a começar a governar em Espanha.

Além disso, o novo Ministério da Cultura e da Comunicação, cuja criação se anuncia, irá propor um acordo social com vista à elaboração de um código ético para a dignificação dos conteúdos nos meios de comunicação.

Do lado dos utilizadores dos media, está prevista a introdução da educação para os media nos currículos escolares e um vasto plano nacional de ‘alfabetização digital’ dos cidadãos, assente quer no sistema formal quer informal de educação.

O director do prestigiado diário espanhol ‘El País’ acaba de pedir desculpa à sua própria Redacção e aos leitores do jornal, por não ter tomado cautelas face ao telefonema do chefe do governo espanhol, que lhe garantiu, no dia dos atentados de Madrid, que a autoria do massacre se devia à ETA. O facto de ter considerado a inusitada diligência de José Maria Aznar como digna de todo o crédito levou-o a assumir a responsabilidade de alterar a manchete da edição especial publicada ao princípio da tarde do próprio dia 11. O título principal, que era para ser ‘Matança terrorista em Madrid’, acabou por ser alterado para ‘Matança da ETA em Madrid’. O pedido de desculpas – um gesto que só honra quem o assume – foi feito, curiosamente, na coluna da provedora do leitor daquele jornal.

[A esse propósito, aproveito para corrigir um lapso que cometi no texto de domingo passado: Pablo Torres Guerrero, que captou algumas das fotos mais impressionantes dos atentados de Madrid, é um fotógrafo profissional, certamente com sentido de repórter, mas não é jornalista de ‘El País’.’