Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Manuel Pinto

‘Um grande jornal não pode deixar de se assumir como um espelho daquilo que de mais importante acontece no mundo. É verdade que é um espelho muito especial, necessariamente muito selectivo, devolvendo uma imagem ora brilhante ora desbotada ora estilhaçada. Mas mal iríamos se os critérios de escolha das matérias e o destaque que lhes é dado não se pautassem pelos princípios da importância relativa e do equilíbrio, tendo em conta a linha editorial e os interesses dos leitores.

O mês de Agosto, em que esta crónica esteve interrompida, foi um período particularmente agitado, no plano noticioso, contrariando, em alguma medida, aquela ideia feita de que em férias tudo é ligeiro e frívolo. É caso para dizer que, também no jornalismo, já não há verões como antigamente.

Analisando o conteúdo do JN ao longo do mês de Agosto, chego a algumas conclusões, que partilho com os leitores, mas, também, e principalmente, com a Direcção, os editores e, em geral, com os jornalistas deste Jornal.

Sobretudo para os leitores, gostaria de anotar um ponto que ajuda a compreender algumas das minhas notas. Os jornalistas também têm férias e merecem-nas como qualquer outra pessoa. E embora possam, teoricamente, pelo menos, gozá-las em qualquer período do ano, por muitas razões, nomeadamente familiares, não é de estranhar que muitos deles as tenham precisamente nesta quadra estival. Ora se este período for agitado e houver muitas frentes a carecerem de atenção, é natural que o resultado final – aquilo que o JN publica – se ressinta de tal circunstância. Este ponto ajuda a compreender, mas não justifica tudo. Como iremos ver.

O mês de Agosto arrancou com a Volta a Portugal em Bicicleta e terminou com as primeiras notícias sobre a devastação e a tragédia provocadas pelo furacão Katrina, nos Estados Unidos da América. Pelo meio tivemos a saga do vaivém espacial, as Jornadas Mundiais da Juventude, em Colónia, as declarações polémicas do vice-presidente da Câmara Municipal do Porto, os desenvolvimentos nas candidaturas à Presidência da República e, acima de tudo, voltamos a conhecer uma onda de incêndios que pôs uma vez mais à vista de todos enormes carências e não pequenas negligências.

Com excepção do futebol, o ciclismo é talvez o desporto que mais interesse desperta na população. O JN tem, de resto, uma ligação histórica a esta modalidade, tendo sido, durante longos anos, o organizador da Volta. Mais uma vez o jornal esteve presente, destacando dois jornalistas para a cobertura das diferentes etapas. Foi um trabalho digno e, dentro da sua esfera de acção, a secção de Desporto conferiu-lhe destaque nos momentos que me pareceram mais apropriados. Já o mesmo não se poderá dizer da primeira página do jornal. Sobretudo nas etapas finais, a Volta adquiriu uma competitividade e um suspense que se traduziu num enorme interesse da população, que quis acompanhar de perto o empolgante desfecho. O JN poderia ter trazido esse interesse e essa competitividade com outro destaque para a primeira página, o que não aconteceu.

Como não podia deixar de ser – e por alguma razão anotava, no início deste texto, a ideia do espelho – os incêndios estiveram no centro das atenções de quem coordenou as edições deste mês escaldante. Inúmeros jornalistas, colaboradores e correspondentes deram o seu melhor não só para cobrir e reportar alguns dos mais dramáticos fogos, mas também na recolha e tratamento de dados e na elaboração de infografias que procuraram ajudar-nos a nós, leitores, a reflectir sobre este flagelo.

Se exceptuarmos as entrevistas de ‘grande plano’, aos domingos, as quais têm uma natureza específica, o JN dedicou praticamente metade dos seus destaques (as páginas 2 ou 3 e seguintes) directa ou indirectamente ao problema dos incêndios. Por oito vezes a rubrica ‘Em foco’ se intitulou ‘Portugal a arder’, o que sendo uma forma metafórica de escrever, dá bem a ideia da catástrofe para a floresta e para a economia do país.

Uma intervenção do deputado Francisco Louçã, para quem as televisões deveriam auto-conter-se na divulgação das imagens das labaredas, para, dessa forma, não estimularem potenciais pirómanos, suscitou um debate que passou também pelas páginas deste Jornal, nomeadamente pela coluna do sociólogo Paquete de Oliveira (na edição do dia 13) e no espaço assinado pelo director do JN (na edição do dia 23). Não seria nem salutar nem sensato restringir a informação, mas já seria desejável que a matéria não fosse aproveitada de forma sensacionalista e abusando frequentemente do estado deprimido das pessoas entrevistadas.

O JN esteve, em geral, bem nesta matéria. Pareceu-me apenas que, a exemplo do discurso mediático (e político) geral, se não se interroga, investiga e debate suficientemente o problema do civismo das pessoas e das comunidades; não basta o ordenamento florestal. É também preciso educar para o ambiente, para a riqueza das zonas verdes e florestais, para o lado criminoso de atear um fogo, para os riscos que advêm da negligência, etc. Esta faceta parece-me pouco tematizada.

(Prossegue na próxima semana)

Um jornal também é um espelho da sociedade’