Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Manuel Pinto

‘‘Cruzada inexplicável’, marcada por ‘insultos e desconsiderações’ para com os professores, na opinião do leitor Fernando Gomes, de Fafe, em correio electrónico enviado a este provedor. Motivo da queixa o título maior da primeira página do JN do passado dia 14, que referia que a ‘semana dos professores tem 21 horas’ e acrescentava, ao lado: ‘passam menos 10 horas nas escolas do que os colegas dos restantes países da OCDE’ (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económicos).

O motivo da notícia foi a divulgação, no dia anterior, do estudo ‘Education at a Glance’, em que anualmente aquela instituição nos põe a par dos indicadores estatísticos mais recentes no campo da educação.

Na secção de Sociedade, lá vêm números que não nos podem deixar especialmente satisfeitos fracos índices de escolarização da faixa etária dos 25-34 anos, que nos colocam na cauda da lista de países da OCDE; um gasto médio com os alunos bastante inferior à media dos parceiros; e, ao mesmo tempo, turmas com um número médio de estudantes menor do que na OCDE. É neste contexto que surge o tal dado relativo aos docentes: um parágrafo apenas, metido no meio da peça, embora destacado com um entretítulo. E refere o seguinte: ‘o estudo revela que os professores portugueses do ensino Básico e Secundário passam, em média, menos 379 horas por ano nas escolas que os seus colegas da OCDE, apesar de o número de semanas ser idêntico’. E ainda: ‘Os docentes portugueses estão cerca de 21 horas por semana nas escolas, enquanto a média dos professores da OCDE ultrapassa as 31 horas semanais’.

Foi isto que indignou alguns leitores, alguns dos quais têm vindo a ver publicadas as suas mensagens na secção que este jornal diariamente lhes reserva. Fernando Gomes, por exemplo, considera que o destaque dado pelo JN ‘evidencia um tratamento de informação pouco sério, populista e propagandístico, que, se não denota má fé, só pode indiciar perda de objectividade e rigor jornalístico’. Desde logo, observa, porque não há correspondência entre o destaque da primeira página e ‘a essência da questão desenvolvida na pág. 5’ em que os dados focam sobretudo ‘a escolarização dos portugueses’; e, depois, porque o horário de trabalho é de 35 horas, pelo que, ao comparar ‘realidades incomparáveis’, se lança uma ‘inverdade que calunia os professores portugueses’.

Já o leitor António José Lima Bastos, que se identifica apenas como ‘professor do Q.N.D do Grupo 03’, entende que os dados da OCDE são ‘apenas um dos lados da questão’, e que o jornal devia ter verificado ‘a história junto de outras fontes’. O leitor começa por não entender de onde vem o tempo médio de 21 horas semanais, visto que o horário lectivo é de 22. E acrescenta ‘O restante tempo do horário (o total são 35 horas) destina-se à preparação de actividades lectivas (preparação de aulas, pesquisa, elaboração de materiais, elaboração de fichas de avaliação, correcção de todo o tipo de materiais, trabalho burocrático, reuniões de trabalho, etc). Juntando a componente lectiva com a não lectiva, só um professor incompetente (que os há, como em qualquer actividade) não trabalha mais de quarenta horas por semana, ultrapassando as tais 35 h. Esse trabalho é feito maioritariamente em casa, porque as escolas não possuem condições para que os professores lá trabalhem’.

Há, nestes reparos e críticas, vários aspectos a considerar. O JN não inventou os dados do relatório da OCDE e esta organização não é propriamente um qualquer grupo de vão de escada. Aquilo que difunde tem, por assim dizer, carácter oficial, ainda que discutível, naturalmente. Que o ‘Jornal de Notícias’ tenha chamado a questão das assimetrias dos horários de docentes em Portugal e nos diferentes países da OCDE para manchete também parece ser uma opção jornalisticamente defensável, ainda que não agradável para os professores. Afinal, a actualidade torna esse assunto matéria de evidente interesse público. E, com muita frequência, nós só somos capazes de construir uma imagem adequada de nós próprios quando nos vemos numa escala comparativa com outros grupos ou com os mesmos grupos noutros contextos.

Há, contudo, dois pontos em que o JN, a meu ver, não esteve bem quem se interessa pelo título na primeira página, vai ao interior do jornal ler o desenvolvimento. Ora o desenvolvimento só muito pontualmente tem que ver com a manchete. Se o assunto era tão importante para ser realçado na ‘primeira’, não deveria ter sido tratado com outro destaque e desenvolvimento na respectiva secção?

A segunda nota diz respeito à consistência dos dados apresentados. Todas as entidades que tratam e difundem dados estatísticos inserem os critérios utilizados na recolha da informação, os quais são, frequentemente, relevantes para a leitura e interpretação. Como foram calculadas as médias horárias dos docentes, nos vários países? Provavelmente recorrendo a um mesmo critério aferidor. Mas isso não é referido na notícia. Sabendo-se, à partida, que esta informação teria enorme impacto público, seria recomendável um maior cuidado no modo de a trabalhar e difundir.

Duas vias para cobrir a conflitualidade social

Assistimos, nos últimos tempos, a múltiplos sinais de descontentamento entre os vários sectores profissionais, em particular da área dos serviços do Estado e da Administração Pública. Aqueles grupos que entendem que alguns ‘direitos adquiridos’ são postos em causa ou que práticas e rotinas há muito instaladas são objecto de questionamento movimentam-se no sentido de travar a mudança ou, pelo menos, de exigir que as medidas sejam ‘negociadas’ com os directamente interessados. Tais movimentações traduzem-se em tomadas de posição pública, em ameaças, manifestações, greves e outras modalidades de expressão de interesses. Tudo isto faz parte do funcionamento dos regimes democráticos, que assentam não apenas na representatividade eleitoral, mas na capacidade de pressão, em especial através dos média ou da rua.

Cabe, neste quadro, perguntar como é que um meio com as responsabilidades e a implantação do ‘Jornal de Notícias’ deve acompanhar estes processos de acentuado conflito social e político?

Partindo do óbvio pressuposto de que o JN pretende ser completo, equilibrado e rigoroso em tal cobertura, vejo dois caminhos possíveis para o fazer. Um é o de se assumir como ‘caixa de ressonância’ do mundo à sua volta. Outro é o da iniciativa jornalística. O primeiro é predominantemente passivo o jornal acompanha o que vai acontecendo, procurando fazer um trabalho tão honesto quanto possível. O segundo é proactivo: não se conforma com os ‘termos de referência’ colocados pelos actores sociais. Assume-se ele próprio como terceiro factor, capaz de fazer vir ao de cima elementos, situações, contradições que mais ninguém é capaz de enunciar. Na prática, o mais provável e sensato será conjugar os dois caminhos, sendo que a falta do segundo representará sempre uma certa forma de demissão do papel que o jornalismo pode e deve ter na sociedade.

Aplicando esta reflexão ao caso da notícia sobre os professores e das reacções que provocou (entre docentes), entendo que o jornal não pode limitar-se a reproduzir as ‘falas’ e discursos das partes intervenientes. Precisa de ir ouvir outros actores e, sobretudo, precisa de ir para o terreno ver o que se passa. Há argumentos exibidos que não resistiriam à prova dos factos. E o caso concreto dos horários dos professores, a ser devidamente investigado, em todos os níveis de ensino, daria provavelmente matéria escaldante. Assim não passaremos do ‘dizes tu, digo eu’.

Assunto pertinente com tratamento insuficiente’