Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Manuel Pinto

‘Será que os cidadãos têm alguma coisa a ver com o debate público que o Governo tem actualmente em curso acerca do futuro Estatuto do Jornalista? A avaliar pelo que se tem passado, o assunto parece ser mera questão de jornalistas e, parcialmente, das empresas que os empregam ou cujos serviços adquirem. Não é esse o meu entendimento. E embora nenhum leitor me tenha apresentado qualquer comentário ou exigência a este respeito – provavelmente nem sequer sabia que a matéria se encontra em discussão – entendo que a sua abordagem se inscreve em pleno no âmbito da função de provedor.

Quem é considerado jornalista? Quais os requisitos para aceder à profissão? Que direitos e deveres assistem a estes profissionais? Há actividades que são incompatíveis com o exercício do jornalismo? Em caso de prevaricação, há consequências disciplinares? A quem incumbe a respectiva aplicação?

O estatuto responde a estas perguntas. E já por aqui se pode ver que a matéria em análise se prende com as condições de exercício de uma actividade profissional decisiva para uma grande parte dos cidadãos, visto que é através dos jornalistas – das suas valorações e escolhas do que consideram importante e interessante – que os cidadãos constroem a noção daquilo que se passa no mundo.

Numa profissão com a exigência sócio-cultural e humana como é a de jornalista, que lida diariamente com a crescente complexidade das situações e problemas da vida em sociedade, continua a não se exigir, quanto ao acesso, um nível mínimo de escolaridade. Do mesmo modo, nada se diz relativamente à necessidade ou obrigatoriedade da formação profissional. Ou seja, para um vastíssimo conjunto de outras actividades profissionais, são exigidos mínimos de formação. Não assim no que ao jornalismo diz respeito. É certo que tal se fica a dever à vontade de manter a profissão o mais aberta possível. Mas talvez seja chegado o tempo de rever este ponto, salvaguardando, embora, que, a exigir-se um curso superior, ele não teria de ser necessariamente do âmbito do jornalismo ou das ciências da comunicação. É óbvio que uma formação superior não garante, de per si, um jornalista de qualidade. Mas confere um lastro formativo vital no lidar com a complexidade do real.

Há uma série de pontos, no anteprojecto de diploma que o Governo conta apresentar à Assembleia da República, que podem representar, se bem aplicados, um reforço das garantias de independência e de credibilidade do trabalho jornalístico. Continua a ser vedado aos jornalistas exercer actividades ligadas à publicidade, marketing, assessoria de imprensa ou relações públicas. Mas porque será que a incompatibilidade se mantém até três meses depois de cessar essa actividade no caso da publicidade e não no caso das assessorias de imprensa, por exemplo? Será credibilizador para o jornalista e para o jornalismo deixar uma função dessas, que em alguns casos pode envolver alguma visibilidade, e retomar a actividade sem um período de ‘nojo’?

Merece ser salientado o esforço corporizado no documento no sentido de clarificar, à luz do direito, as condições em que o jornalista pode e deve recusar-se a divulgar as suas fontes de informação. Aí se estabelece que ‘a revelação das fontes de informação apenas pode ser ordenada pelo tribunal (…) quando tal seja necessário para a investigação de crimes graves contra as pessoas, incluindo, nomeadamente, crimes dolosos contra a vida e a integridade física, bem como para a investigação de crimes graves contra a segurança do Estado, desde que se comprove que as respectivas informações não poderiam ser obtidas de qualquer outra forma’. O código deontológico dos jornalistas portugueses estabelece que as fontes de informação, como norma, devem ser referidas. Mas há casos em que as fontes só aceitam colaborar com a condição de a respectiva identidade ser mantida em segredo. E manter a fidelidade a este compromisso deontológico já tem levado, entre nós, jornalistas a serem condenados por obstrução à justiça. Tudo indica que a ordem jurídica virá agora a reconhecer o valor público (e não apenas corporativo) deste dever da profissão.

A cláusula de consciência (que prevê que os jornalistas ‘não podem ser constrangidos a exprimir ou subscrever opiniões nem a abster-se de o fazer, ou a desempenhar tarefas profissionais contrárias à sua consciência, nem podem ser alvo de medida disciplinar em virtude de tais factos’) e a regulamentação do direito de autor constituem outros tantos aspectos inovadores deste anteprojecto de proposta de lei.

Como é evidente, tudo isto assumiria tons muito mais positivos se pudesse ser articulado com uma cultura assente em valores éticos por parte das próprias empresas jornalísticas e se, em muitas redacções, a precariedade da profissão jornalística não deixasse o profissional – sobretudo nos anos iniciais de actividade – perante o dilema de decidir como seguir os princípios orientadores do jornalismo sem comprometer o seu lugar na redacção.

Será aceitável a inexistência de um limiar mínimo de habilitações?’