Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Marcelo Beraba

‘A melhor história da semana foi produzida por uma alagoana de 80 anos, empregada doméstica aposentada. Por dois anos ela filmou, da janela de seu apartamento, escondida, o tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana.

No momento em que o país discute a legitimidade de grampos, fitas e delações como armas para o enfrentamento da corrupção, sua iniciativa só provocou elogios. Ela entregou para a polícia do Rio 33 horas de filmagens gravadas em 22 fitas.

O trabalho foi acompanhado, a partir do ano passado, pelo jornalista Fábio Gusmão, e seu resultado, publicado no jornal ‘Extra’ de quarta-feira, possibilitou a prisão, até anteontem, de 13 traficantes e nove PMs.

Antes de dar publicidade ao material, a senhora foi protegida: vendeu o apartamento onde morou por 38 anos, foi incluída no Programa de Proteção à Testemunha. Seu nome foi preservado: é chamada de dona Vitória.

Sua sala ficava de frente para a boca-de-fumo. Através da janela, acompanhava o comércio das drogas, a demonstração de força dos bandidos armados e a corrupção de policiais. Cansada de reclamar com a polícia sem resultado, comprou uma filmadora em 12 prestações. Gravou, juntamente com as imagens, suas impressões. ‘Não vou dizer que não tenho medo deles, mas deixar de filmar esses bandidos, isso não vou mesmo. Estão enganados, estão enganados.’

O material que colheu foi transformado em reportagem por Fábio Gusmão, o mesmo repórter que dias antes tinha revelado a convivência promíscua de jogadores de futebol com o principal traficante da Rocinha. Gusmão teve o mérito de descobrir dona Vitória e de perceber a importância de seu esforço. Trabalhou com calma os fatos gravados e só publicou a reportagem quando ela estava segura. Um cuidado óbvio, que nem sempre a pressa competitiva respeita.

A seguir, o depoimento do repórter: ‘O que motivou dona Vitória foi a indignação por ter sido desacreditada em todos os órgãos que procurou. Ela quis provar que estava dizendo a verdade e que as coisas não poderiam continuar como estavam.

O papel do jornalismo é descobrir, ouvir e tratar com sensibilidade, respeito e cuidado casos e pessoas que passam pelo mesmo problema. Acredito que fizemos jornalismo da forma que dona Vitória merecia. O meu papel foi acreditar que estava com uma grande história. Mas, para publicá-la, tive de percorrer um longo e cansativo caminho. Digo cansativo porque é impossível manter a distância e não se envolver quando você convive por mais de um ano com uma pessoa como ela. Tinha o medo de que um dia ela não atendesse o telefone, precisava convencê-la de que era muito perigoso para ela continuar lá, precisava convencer as autoridades de que algo precisava ser feito. Isso foi conseguido com o apoio dos editores que, desde o início, colocaram como inegociável a condição de só publicar a reportagem quando ela estivesse em local seguro’.’

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‘O Brasil no atoleiro’, copyright Folha de S. Paulo, 28/8/05.

‘O Exército comemorou o 25 de agosto, Dia do Soldado, com um anúncio em que lembrou a participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial e, agora, na força de paz da ONU no Haiti: ‘No passado, heróicos pracinhas. Hoje, valorosos capacetes azuis honram o legado de Caxias ao levar a paz do Brasil para o mundo’.

A situação das forças brasileiras no Haiti não é tranqüila como faz crer o anúncio. A imprensa vem dando sinais de que o problema por lá se agrava e há um questionamento sério sobre o comando brasileiro da missão da ONU.

A Folha deu a devida atenção quando houve o envio das tropas, em 2004. Mas, agora que a violência se dissemina e o Brasil é responsabilizado por parte dos erros cometidos naquele país, a cobertura é irregular, salvo uma ou outra reportagem, como a publicada em 12 de junho (‘Apesar da ONU, Haiti vira ‘terra de ninguém’).

A Folha publicou dois editoriais recentes com o mesmo título, ‘O Brasil no Haiti’, e as mesmas advertências: ‘A missão brasileira no Haiti completa um ano neste mês em meio a crescentes sinais de fracasso’ (14 de junho) e ‘O Haiti já está se tornando um atoleiro para o Brasil’ (anteontem).

O jornal deve a seus leitores uma grande reportagem sobre o que está ocorrendo naquele país. Reescrevo a observação que fiz na Crítica Interna de 6 de junho: ‘A cobertura está parecendo uma repetição, em escala tupiniquim, do que ocorreu com a mídia dos EUA na Guerra do Iraque: um primeiro momento de patriotada [extensas e orgulhosas coberturas dos embarques de tropas para o Haiti] e, depois, o acompanhamento acrítico. A próxima fase, se bem avalio, será a da crítica violenta à participação brasileira. O leitor, como sempre, não vai entender como o país passa de uma hora para outra de herói a vilão’.

Sei que a prioridade do jornal é a crise interna, mas a verdadeira história da participação do Brasil na missão da ONU no Haiti precisa ser escrita com urgência.’

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‘Leitores – As religiões’, copyright Folha de S. Paulo, 28/8/05.

‘Recebi nos últimos dias mensagens de leitores que se queixaram da forma como o jornal tratou as suas religiões.

Arthur Kaufman reclamou de o jornal ter usado ‘terrorista judeu’ e ‘atentado judeu’ na Primeira Página e no título de reportagem do dia 18, ‘Atentado judeu conturba retirada de Gaza’. Ele acha que o correto seria usar ‘israelense’, porque judeu refere-se à religião e não à nacionalidade: ‘Manchetes como essa servem apenas para provocar animosidade contra os judeus, inclusive contra os judeus brasileiros que, em sua maioria, são totalmente favoráveis ao fim do conflito no Oriente Médio’.

O editor-adjunto de Mundo, Marcos Guterman, justifica a escolha da Folha: ‘O termo ‘terrorismo judeu’ foi usado pelo primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Já ‘terrorismo israelense’ poderia confundir a questão, pois não há apenas judeus como cidadãos de Israel. Além disso, um dos principais motivos do atentado foi, sim, a religião, porque a ‘Grande Israel’ que os colonos judeus defendem é a Israel bíblica, muito maior do que o país designado pela Partilha da Palestina, em 1947’.

Dois leitores reclamaram da reportagem ‘Promotoria acusa Universal de demolir casarões que seriam tombados’, no dia 24, em Cotidiano. Um dos textos se refere a um templo da Igreja Universal em Belo Horizonte como ‘shopping da fé’. Os leitores consideraram o termo desrespeitoso.

Júlio Veríssimo, coordenador da Agência Folha, não viu preconceito: ‘O uso do termo ‘shopping da fé’ foi feito com o objetivo apenas de falar sobre os espaços que as religiões criam próximos a seus templos para comercializar objetos religiosos. Esse termo já foi usado pela Folha em situações similares desde 1994 para as mais diversas igrejas, inclusive a Católica -para exemplificar, os quiosques ao lado da Basílica de Aparecida. Não houve nenhuma intenção de atacar ou desmerecer as atividades dos evangélicos’.

E, por fim, o leitor Anderson da Silva Neves reclamou do tratamento que o jornal deu à religião Wicca na reportagem ‘Para os raelianos, ETs criaram a Terra’, no dia 14, em Mundo. O leitor se sentiu ofendido com esse trecho: ‘Com referências a divindades celtas e associada à feitiçaria, a Wicca ofende muitos porque parte de seus seguidores fazem cerimônias nus ao ar livre’. Discorda ainda da informação de que a Wicca foi criada por Gerald Gardner há 50 anos. ‘Somos uma religião nascida em berço celta’ e que ‘antecede em séculos o cristianismo’.

Para o editor de Mundo, Vinicius Mota, não houve desrespeito: ‘A reportagem toma a cautela de dizer que parte dos adeptos (e não todos) da Wicca fazem cerimônias nus ao ar livre. Toma a cautela de dizer que ‘a Wicca rejeita a classificação de seita satânica feita por alguns críticos’. Quanto à origem da religião, a reportagem seguiu os historiadores.

Estou de acordo com o jornal no primeiro caso. Nos outros, acho que deveria ter havido mais cuidado. No caso da Universal, ‘shopping da fé’ não se referia ao comércio próximo do templo, mas ao próprio templo, o que é um erro.’