Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Marcelo Beraba

‘É fato que estamos acostumados a toda sorte de violência nas nossas grandes cidades, principalmente em São Paulo e no Rio. Mas o que aconteceu, dez dias atrás, nas proximidades da praça da Sé, o marco zero da maior cidade brasileira e espaço histórico de grandes manifestações cívicas e religiosas, deveria nos chocar.

No intervalo de três dias, 15 moradores de rua foram atacados de madrugada enquanto dormiam. Na primeira investida, na noite de quarta (18) para quinta-feira, três pessoas foram assassinadas e sete gravemente feridas. No dia seguinte, um dos feridos morreu. No segundo ataque, na madrugada de sábado (21) para domingo, outros cinco infelizes foram agredidos. Uma mulher morreu.

Seis mortos, nove feridos, sendo que cinco ainda correm risco e podem morrer – esse foi o saldo da maior chacina de excluídos já perpetrada no coração da cidade mais rica do Brasil.Até o fechamento desta coluna, a polícia não tinha pistas dos assassinos e a cidade não sabia o que tinha acontecido. Havia hipóteses, especulações, mas a violência silenciosa que marcou aquelas duas madrugadas ainda está por ser decifrada. Quem matou? E por quê?

O que faz dessas chacinas um caso maior? O número de mortos e feridos, a forma cruel e covarde como as pessoas foram atacadas e assassinadas, o fato de terem sido abatidas no centro de São Paulo, a exposição pública de um problema que teimamos em não encarar, que é o das populações de rua, o ambiente acirrado de disputa pela prefeitura, a intolerância, que parece estar por trás dos ataques em série -tudo isso fez com que os crimes da Sé deixassem de ser um caso local e policial para se transformar em caso de repercussão e de interesse nacional.

Nas páginas dos jornais

Folha e o ‘Estado’ não perceberam imediatamente a dimensão dos crimes, não entenderam que não se tratava apenas de atos de barbárie, mas que escancaravam as contradições da cidade. O que explica que tenha 10 mil pessoas morando nas ruas? E o que explica que uma pessoa, ou várias, se disponha a matá-las pelas madrugadas? O que acontece com essa megalópole?

Nenhum dos dois grandes jornais considerou que o caso merecesse manchete. O ‘Estado’ de sexta, dia 20, anunciou que ‘Estados atacam novo teto de inativo’. E registrou a chacina no meio da capa: ‘Mendigos mortos a pauladas em São Paulo’.

A Folha foi ainda mais fria. O alto de sua primeira página tinha uma grande arte colorida com três mapas ilustrando a manchete ‘Área pobre de SP concentra mais jovens’, resultado de uma pesquisa sobre indicadores sociais da cidade. A foto era de uma ginasta em Atenas. E o título da matança saiu espremido: ‘10 moradores de rua são atacados a pauladas em São Paulo; 3 morrem’. Apenas um registro.

Comentei, na crítica interna que faço diariamente: ‘Sem foto, sem uma arte que mostrasse o local dos crimes, sem um recurso gráfico que valorizasse a notícia, ela foi dada na primeira página sem a indignação que o jornal costuma se permitir em casos de afrontas à cidadania’.

E esse foi, na minha opinião, o grande erro do jornal ao longo de quase toda a cobertura: faltou à Redação sensibilidade para perceber a dimensão dos fatos.

No domingo, dia 22, o jornal não tinha preparado nada de especial sobre o assunto. Na segunda, o caso foi manchete pela primeira vez: ‘Moradora de rua morre em novo ataque’. Na terça, foi despejado e perdeu espaço para assuntos sem o mesmo impacto e importância. Na quarta, voltou a ser manchete (‘Morador de rua diz que foi atacado por bando’), mas na quinta e sexta acabou reduzido aos registros de rotina.

E os leitores?

Não foi só na edição que faltou sensibilidade para destacar a relevância do drama da cidade. O ‘Painel do Leitor’, que deveria ser um espaço de manifestação, publicou, até sexta-feira, apenas seis mensagens. E não foi por falta de motivação dos nossos leitores, porque o ‘Painel’ havia recebido, até anteontem, 31 correspondências. No mesmo período, ‘O Globo’, que é um jornal do Rio, publicou 15 mensagens dos seus leitores comentando, debatendo, propondo soluções.

A cobertura da Folha teve uma outra falha: não soube aproveitar o momento para abrir uma discussão sobre a população de rua. O que os cidadãos dessa cidade pensam sobre esse problema. Por que 10 mil pessoas são obrigadas a viver nas ruas? O que fazer com elas? Como evitar que esse número aumente?

Exceções nesse quadro de equívocos foram os três editoriais publicados ao longo da semana, ‘Barbárie em São Paulo’ (sábado), ‘Selvageria’ (terça) e ‘Grave suspeita’ (quarta). Demonstrou uma atenção maior para os problemas de São Paulo do que a Redação.

Encaminhei várias perguntas para a Direção sobre a cobertura. Queria saber por que o jornal foi tão irregular nesse caso. A Redação preferiu não comentar.

O jornal perdeu, nesta semana, uma boa oportunidade para praticar um jornalismo que vá além dos fatos, dos crimes e das aspas. Ainda tem tempo para fazê-lo.’



***

‘‘Quem são essas pessoas?’’, copyright Folha de S. Paulo, 29/8/04

‘O padre Júlio Lancellotti é o responsável pela Pastoral do Povo de Rua da Arquidiocese de São Paulo.*

Ombudsman – Na sua opinião, os jornais de São Paulo fizeram uma boa cobertura dos assassinatos ocorridos no centro?

Júlio Lancellotti – Uma das coisas que a gente tem pedido para imprensa, mas parece que o pessoal não ouve, é não chamar de mendigo. É um pedido deles, que os chamem de pessoas em situações de rua, moradores de rua, povo da rua. Quanto mais a gente pede para não chamar de mendigo, mais o pessoal chama.

Ombudsman – O senhor acha que isso altera alguma coisa?

Lancellotti – Altera na formação da opinião pública. Qual o conceito de mendicância? Ele tem um certo sentido pejorativo. Entre eles, existem pessoas que vivem da mendicância. Agora, por que continuam na mendicância? Esse fenômeno, o drama humano, acaba ofuscado. Quem é essa pessoa? Por que tem esse comportamento?

Nós temos trabalhado muito com o conceito de cidadania. Seria um avanço para um jornal do porte da Folha ajudar a opinião pública a perceber que a mendicância não é uma condição social. Há pessoas na rua que até pedem, mas têm as que pegam latinha, que trabalham com papelão, que fazem outras coisas. Na verdade, o termo mendicância não mostra a vulnerabilidade social.

Ombudsman – O senhor viu outros problemas na cobertura?

Lancellotti – Acredito que essas coberturas poderiam ajudar a perceber mais quem são essas pessoas, por que esse é um fenômeno que cresce e traz esse tipo de resultado para a sociedade. Por que a sociedade e o poder público estão tendo tanta dificuldade de lidar com isso?

Sinto que a imprensa, e a Folha também, fica muito mais interessada na briga política, nas acusações do município contra o Estado, e vice-versa, do que em perceber como a sociedade pode mudar de visão e tratar esse assunto de uma maneira mais adequada.

Ombudsman – Em casos como esse, o Estado e o município têm responsabilidades, e os jornais tem de apontá-las, não?

Lancellotti – Tem sim. Mas não adianta simplesmente apontar responsabilidades através de um conflito, porque desfoca.

Ombudsman – O senhor acha que os jornais não aprofundaram a discussão?

Lancellotti – Há um ensaio de mergulho no problema, mas não há um aprofundamento. As coberturas em geral, não só a da Folha, ficaram mais na questão policial, política e eleitoral e não se aprofundaram no fenômeno social que está por trás dessa questão toda e na compreensão desses personagens. Nós não queremos só albergues. Precisamos encontrar saídas. O grande desafio que se coloca hoje é o que fazer com os mais vulneráveis que acabam ficando nas ruas.’