Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Marcelo Beraba

‘Enrico, de um ano e oito meses, é o personagem da capa da Folhinha do dia 6. Ele está fotografado parado, com os olhos para cima, atento aos movimentos de um pente e uma tesoura que ajeitam seu topete. A foto ilustra a reportagem principal do caderno: ‘Com que cabelo eu vou? Novos cortes e penteados fazem a cabeça das crianças em salões com muitas brincadeiras’.

Na mesma capa, no terço inferior, há um anúncio. Uma mulher deitada de lado e sem blusa vende sandálias femininas. A foto mais insinua do que expõe, mas tem um claro objetivo de apelo erótico.

Nenhuma outra edição do suplemento infantil da Folha despertou, neste curto período em que exerço a função de ombudsman, tantas cartas e ligações -e todas de reprovação.

Duas leitoras reclamaram do tema escolhido para a capa. Uma delas considerou ‘um estímulo às futilidades, à vaidade desenfreada e sem sentido’. E perguntou: ‘O que há na cabeça dos pais (e o jornal parece concordar com eles, já que lhes dá espaço), que permitem que crianças tão pequenas façam tintura no cabelo?’.

Mas a reclamação principal foi sobre o anúncio. Reproduzo trechos da carta de Ana Claudia Peters Salgado que sintetizam o que outros leitores manifestaram: ‘Sou professora e mãe de dois meninos, de oito e sete anos. Meus filhos estudam em um colégio que estimula a leitura de jornais e, inclusive, sugere a Folhinha como o mais interessante e adequado à faixa etária deles. Acontece que, ao comprar a Folha no sábado [6], fiquei surpresa ao encontrar uma contradição: num dos cadernos [página C6 de Cotidiano] havia uma notícia sobre a condenação de Zequinha Barbosa [ex-atleta] por exploração sexual de menores; e, na primeira página da Folhinha, uma propaganda de uma sandália com uma foto de uma modelo adolescente e seminua. Fiquei em dúvida! Será que não estamos condenando com uma mão e instigando com outra? Precisamos mesmo vender sandálias infantis usando meninas seminuas? Se precisamos, não deveria essa foto estar em outro caderno que é mais lido por pais e Zequinhas? Se não precisamos, por que então ela está ali? Não resta dúvida que há maneiras e maneiras de lidarmos com as imagens e informações que nossos filhos vêem nos jornais. Mas os jornais não poderiam ser mais cuidadosos com os nossos jovens leitores?’.

Poderiam e deveriam.

O erro da Folha

No caso, não resta dúvida de que a Folha errou ao publicar o anúncio na capa da Folhinha. O erro foi da área comercial, que aceitou o anúncio e não o submeteu à aprovação ou ao veto da Redação, como costuma acontecer nos casos de publicidade que possam trazer incômodo aos leitores.

Segundo Sylvia Colombo, editora do suplemento, o anúncio é ‘nitidamente impróprio à publicação num caderno voltado ao público infantil’.

Quanto ao tema da capa, os novos cortes e penteados que estão na moda para as crianças, ela assim o justifica: ‘A Folhinha tem buscado aproximar os temas de suas capas a assuntos relativos à vida das crianças. Sem diminuir o espaço para reportagens de tom educativo e de estímulo à leitura, já tradicionais no caderno, buscamos introduzir assuntos que estão presentes no dia-a-dia. Daí a inclusão de pautas mais urbanas e relativas a consumo, que inegavelmente fazem parte do cotidiano das crianças. De maneira nenhuma a intenção é incentivar a ‘vaidade desenfreada’, e sim tratar desses temas com algum humor, e de forma parcimoniosa’.

A Folhinha de ontem deu dicas para as crianças fazerem pesquisas na internet, e o anúncio da moça sem blusa foi substituído por um com desenhos infantis.’

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‘A imagem da guerra’, copyright Folha de S. Paulo, 14/11/04.

‘Na quarta-feira os leitores voltaram a se manifestar, desta vez contra a publicação de uma foto do ‘New York Times’ em Mundo. A imagem, que rasga a página A10 do alto até abaixo da dobra, mostra soldados dos Estados Unidos que dominam uma calçada de Fallujah, no Iraque, e dois corpos de iraquianos mortos no chão.

É comum que leitores reclamem quando o jornal publica imagens de guerra. São sempre chocantes. Quase sempre a publicação é justificada pela denúncia das atrocidades. Mas às vezes parecem, pela repetição rotineira de cenas degradantes e extremamente violentas, desnecessárias e redundantes.

Nesse caso específico a imagem é de um impacto muito forte porque um dos mortos está em primeiríssimo plano, de olhos abertos; e o outro tem a cabeça arrebentada e sangra.

Os leitores que escreveram ou telefonaram chocados consideraram que Folha foi ‘sensacionalista’ ao publicar a foto.

Marco Chaves é assinante do jornal. Sua reação: ‘Nunca me senti tão indignado ao ver fotos de pessoas mortas como hoje. Não creio que o jornal necessite de algo deplorável como isso para vender e também não acredito ser necessário receber esse tipo de informação visual, que não agrega nada e somente banaliza a violência’.

Doris Satie Fontes faz outro tipo de ponderação: ‘Já sabemos que guerras são terríveis e absurdas. Neste caso, em particular, já estamos cansados, inclusive, do tema!’. Outra leitora, e não obtive autorização para identificá-la, argumenta: ‘Penso que a Folha esteja com a intenção deliberada de direcionar seus leitores contra a invasão norte-americana do Iraque, mas creio que há outras formas mais polidas de tratar do assunto, e logo pela manhã’.

Memória visual

Levei essas questões e impressões para o editor de Fotografia da Folha, Toni Pires. Sua resposta: ‘Realmente a foto é chocante, e não é sempre que publicamos esse tipo de imagem. Chegam até nós diariamente muitas imagens clichês da guerra. Essas, os leitores já decodificaram e não mais se chocam. Em alguns momentos, vejo a necessidade de mostrar os fatos ‘mais de dentro’. Os últimos acontecimentos no Iraque são a demonstração de atos bárbaros praticados por ambos os lados envolvidos. As poucas imagens diferentes que recebemos nos mostram um cenário de horror. Acredito que, por mais inquietante e doloroso que seja para o leitor, é nosso papel mostrar algo mais. Não com o objetivo simplista de uma certa estética do horror. Mas com o compromisso de levar até o leitor um pouco mais do que o simples comentário ilustrativo. São fotografias que devem ser lidas e entendidas como a memória visual de nossa época. Não acho que devamos sair publicando esse tipo de imagem todos os dias, mas vejo importância de, em determinados momentos, enfrentarmos o desagrado e o incômodo. O que mostramos é nada perto do que está acontecendo. Afinal, 600 iraquianos já foram mortos em Fallujah, segundo os EUA, em apenas quatro dias de combates’.

O assunto é antigo e já foi discutido por outros ombudsmans. Como conciliar o respeito à sensibilidade dos leitores com a responsabilidade de revelar os horrores de guerras e atentados? É difícil, e não há uma fórmula que oriente a decisão do editor. Alguns jornais se guiam pelo que os americanos chamam, de brincadeira, do teste do café da manhã. Qual será a reação do leitor no desjejum? Mas esse não pode ser o único critério.

Em março, os iraquianos, nessa mesma Fallujah, queimaram, arrastaram pelas ruas e penduraram em uma ponte sobre o rio Eufrates os corpos de quatro americanos. Era o início da insurreição na cidade, que depois seria completamente dominada pelos iraquianos, e as fotos eram um documento chocante da barbárie.

A imagem de quarta-feira dos iraquianos mortos e abandonados não tem o mesmo peso porque eram soldados anônimos -mais dois. Mas é igualmente um atestado da mesma estupidez.

O jornal poderia ter escolhido uma foto menos explícita? Poderia ter dado sem tanto destaque? Poderia. Mas, ao publicar, avalio, erra menos pelo excesso do que erraria pela omissão.’