Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Marcelo Beraba

‘Os três principais diários brasileiros -Folha, ‘O Estado de S.Paulo’ e ‘O Globo’- e duas revistas semanais – ‘Veja’ e ‘Época’ – receberam, no início de dezembro, um release da Editora Record, a maior da América Latina em livros não didáticos. O texto de orientação para a imprensa trazia no alto um lembrete em letras maiúsculas, vermelhas e sublinhadas: ‘Atenção: livro distribuído à imprensa com embargo até sexta-feira 10/12 (a publicação de matérias e resenhas só está liberada a partir de sábado 11/12)’.

Embargo é como os jornalistas designam o acordo em que os meios de comunicação abrem mão da informação exclusiva e se comprometem a publicar juntos determinada notícia no dia escolhido pela fonte, que pode ser uma editora, uma gravadora ou um instituto de pesquisas.

O livro enviado para as redações com a advertência do embargo foi a ‘História da Beleza’, de Umberto Eco e Giromolo de Michele. É uma obra de arte, com centenas de imagens ao longo de suas 440 páginas, e chega às livrarias às vésperas do Natal com o preço de R$ 150.

No sábado, dia 11, tal como tinha ficado combinado, os três jornais saíram com seus cadernos culturais muito parecidos. ‘História da Beleza’ foi a capa da Ilustrada (Folha), do ‘Caderno 2’ (‘Estado’) e do suplemento literário ‘Prosa & Verso’ (‘Globo’).

Quem ganha?

Como escrevi na crítica interna de segunda-feira, 13, não é a primeira vez nem será a última que os jornais e revistas fazem acordos com editoras, gravadoras e distribuidoras de filmes e anunciam juntos um grande lançamento mercadológico.

Uma pesquisa não exaustiva feita com a ajuda do Banco de Dados da Folha mostrou operações semelhantes em 14 de novembro (‘Uma viagem pessoal pelo cinema americano’, de Martin Scorsese e M.H.Wilson, editora Cosac & Naify), 23 de outubro (relançamento de ‘O Continente’, de Érico Veríssimo, editora Companhia das Letras), 7 de agosto (‘Por um Fio’, de Drauzio Varella, editora Companhia das Letras) e 26 de junho (‘A Ditadura Encurralada’, de Elio Gaspari, editora Companhia das Letras).

Sempre aos sábados, dia em que alguns jornais publicam seus suplementos literários e todos dão mais espaço para o mercado de livros. A impressão que fica é que os jornais estão mais a serviço das editoras do que de seus leitores. A pergunta é: quem ganha com esta política?

Clóvis Saint-Clair, gerente de Imprensa da Editora Record, justifica a prática: ‘O embargo deve ser utilizado sempre que o material a ser divulgado interessa não apenas a um veículo mas a todos. O recurso é utilizado pelas assessorias para garantir uma divulgação justa e equânime de suas informações na grande imprensa, sem privilégios para ‘A’ ou ‘B’. Neste aspecto, a ‘garantia de exclusividade’ exigida por alguns veículos como moeda de troca para publicação de resenhas, entrevistas ou reportagens também deve ser discutida: não raro, mesmo privando seus leitores da informação, muitos veículos deixam de publicar determinadas matérias só porque a concorrência já as antecipou’.

É evidente que não existem apenas duas alternativas: ou participa do acordo ou não publica nada. Há o caminho intermediário, nem sempre seguido pelos jornais, principalmente quando estão diante de mitos, do questionamento, do aprofundamento do assunto, do confronto com outras produções culturais tão boas sem o mesmo apelo mercadológico.

No caso do livro de Eco, embora tenha sido colocado nas mãos de excelentes jornalistas, o tratamento que recebeu foi semelhante, quase que exclusivamente descritivo. Foi tratado pelos jornais como a editora planejou, como um presente de Natal. Com exceção da ‘Veja’, que foi dura: ‘Só vale pelas figuras. Organizado por Umberto Eco, ‘História da Beleza’ não cumpre o que seu título promete’.

Em recente palestra sobre os desafios do jornalismo cultural, Daniel Piza, que já foi da Folha, agora é editor-executivo do ‘Estado’ e autor do livro ‘Jornalismo Cultural’ (Editora Contexto), advertia que os cadernos de cultura não podem ser apenas ‘caixa de ressonância da indústria do entretenimento’. Lembrava que os cadernos ‘estão presos aos press releases’.

Concordo, embora não se possa generalizar. Concordo também com outro comentário seu: ‘Em jornalismo cultural é muito mais importante fazer melhor do que fazer antes. Nossos cadernos não têm feito nem uma coisa nem a outra. Eles terminam parecidos entre si não só na escolha e na hierarquia dos temas mas também na abordagem. O tom de press release substitui a resenha crítica; as entrevistas repetem as mesmas perguntas banais. E o leitor fica sem saber o que é realmente bom em meio a tal massa de eventos e produtos’.

Os jornais não podem ignorar o mercado consumidor de cultura e de entretenimento. O ponto é descobrir até onde vai a subordinação a este mercado e onde fica o exercício crítico e diferenciado do jornalismo.

Para as editoras, gravadoras e distribuidoras de filmes, não há estratégia de campanha publicitária melhor do que o lançamento simultâneo nos principais jornais e revistas. A questão é saber o que é melhor para o leitor.’

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‘OS EDITORES – ‘Eventualmente é necessário ceder’’, copyright Folha de S. Paulo, 19/12/04.

‘A propósito dos acordos dos jornais com as editoras para a publicação simultânea de reportagens sobre lançamentos, busquei as opiniões de dois editores de cadernos culturais. A seguir, seus comentários:

** Guilherme Werneck, editor-adjunto da Ilustrada, da Folha:

‘Em relação ao embargo de editoras para determinados lançamentos, como foi o caso do livro de Umberto Eco, é preciso considerar alguns pontos.

‘Em primeiro lugar, os embargos não são a regra da cobertura na área de livros. E nós só cedemos a esse pedido das editoras caso identifiquemos que o lançamento embargado é um fato jornalístico relevante.

‘Os embargos são acordos para que determinada reportagem não seja publicada antes de uma data preestabelecida. É natural que, no caso de lançamentos importantes, todos os veículos procurem publicar na data combinada, para evitar o furo [a informação exclusiva].

‘Como há um diálogo constante com as principais editoras para conseguir materiais exclusivos, eventualmente é necessário ceder aos embargos. É óbvio que, quando há essa prática, a editora é quem leva vantagem, pois tem seu produto visível nos principais meios de comunicação do país.

‘Por outro lado, o jornal, sem a pressão do furo, tem a vantagem de conseguir produzir a sua reportagem com tempo, o que, na maior parte dos casos, resulta em um material de mais qualidade para o leitor.’

** Dib Carneiro Neto, editor do ‘Caderno 2’ do ‘Estado de S.Paulo’:

‘Embargos de editoras deveriam ser um expediente desnecessário, porque reforçam a mentalidade equivocada de que um caderno cultural é tanto melhor quanto mais numerosas forem as vezes em que conseguir publicar, antes dos outros, as entrevistas que os escritores certamente farão questão de conceder a todos, porque é do interesse deles vender livros.

‘Nos cadernos culturais, o emprego do termo ‘furo’ é, na maioria dos casos, uma grande bobagem, um equívoco. Não existe furo jornalístico nenhum nessa obsessão por conseguir primeiro as provas de um livro. O leitor habitual dessa área tem um perfil no qual o que importa não é só ‘o que’ se publica, mas ‘como’ se publica. É importante fazer bem feito.

‘Algumas editoras às vezes jogam desonestamente, porque sabem que podem privilegiar determinado jornal obcecado pela exclusividade, em detrimento de outro mais ligado ao compromisso com leitores. Podem agir assim porque sabem que esse último tipo de jornal não vai deixar de publicar a mesma coisa em outro dia. Afinal, não é um jornal burro que privaria seus leitores de um belo assunto pelo motivo pífio de que saiu antes no concorrente. Só jornalistas vêem (lêem?) mais de um jornal, só jornalistas chamam de furo uma resenha antecipada que poderia estar na edição de outro dia.’’