Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Marcelo Beraba

‘Difícil imaginar um caso mais dramático. No dia em que sua filha Victória, de 1 ano e 3 meses, morreu, em 29 de outubro, Daniele Toledo do Prado, 21 anos, foi presa em flagrante pela polícia de Taubaté (SP) acusada de ter matado a criança com uma dose de cocaína misturada na mamadeira. Victória, segundo informação da Folha, tinha uma vasculite cerebral de causa desconhecida. A prisão foi baseada em laudo preliminar que detectou a presença da droga.

Os horrores que Daniele viveu começaram três semanas antes da morte da filha, quando foi estuprada no hospital de Taubaté, onde buscava assistência, e se estenderam pelos dias seguintes à prisão, quando foi espancada por 19 presas na cadeia de Pindamonhangaba. ‘Teve a mandíbula quebrada, uma caneta enfiada no ouvido direito e a cabeça batida contra as grades’, segundo a Folha.

Na última terça-feira, Daniele foi libertada. O laudo definitivo do material colhido não encontrou vestígio de cocaína. O caso não está concluído porque até sexta-feira não havia sido divulgado a causa da morte. Mas a vida desta moça está irremediavelmente transtornada.

A imprensa

A Folha publicou na quinta-feira a carta do advogado Mário Henrique Ditticio, que analisou o caso e distribuiu a responsabilidade pela tragédia que se abateu sobre Daniele entre a polícia, o Ministério Público, a Justiça, o hospital e a imprensa: ‘Mais uma vez foi explosivo o resultado da combinação entre uma sociedade apavorada que ignora os mais básicos princípios democráticos, um sistema de persecução penal falido e uma imprensa preocupada sobretudo em faturar com a tragédia alheia. (…) Estado e imprensa praticamente destruíram a vida de mais uma pessoa inocente’.

Os jornais trataram o caso de maneiras diferentes. A Folha decidiu não publicar nada sobre a acusação e a prisão. A primeira reportagem saiu na quarta-feira, com as notícias de que o laudo definitivo não encontrou cocaína e de que Daniele tinha sido libertada. O enfoque era o drama vivido por ela.

‘O Estado de S. Paulo’ e ‘O Globo’ noticiaram a acusação da polícia, identificaram a mãe, mas sem destaque. O ‘Agora’, do grupo Folha, acompanhou o caso com notas desde o dia 30 de outubro, mas não revelou o nome da mãe, que só foi identificada quando ficou livre. O ‘Diário de S. Paulo’ foi o que deu mais destaque, identificou a mãe e publicou fotos suas. Há uma gradação, portanto, entre o comportamento da Folha e o do ‘Diário’.

Escola Base

Este caso tem muitas semelhanças com o da Escola Base, de 1994. Nos dois episódios houve acusações formais (das mães, em 1994; de médicos, agora), nos dois houve laudos preliminares que emprestavam alguma credibilidade para as acusações e em ambos a autoridade policial assumiu publicamente a denúncia contra os acusados.

Mas a Escola Base sepultou a idéia de que basta atribuir a informação a uma autoridade ou tomar cuidados como o uso dos verbos no condicional. A imprensa também tem responsabilidade. Não são casos simples para os jornais porque, embora envolvam pessoas comuns, podem ter, se comprovados os crimes, interesse social. É o caso, por exemplo, de abuso sexual de crianças. O problema é evitar o sensacionalismo e garantir, até prova final, o direito à presunção da inocência.

Há duas maneiras de fazê-lo, e ambas exigem coragem: não publicar nada até que se obtenha informação segura ou editar as informações sem identificar os acusados. O leitor Mário Henrique Ditticio sugere que os jornais informem exaustivamente em suas reportagens que os acusados são inocentes até prova em contrário. É uma idéia.

Em tese, os procedimentos jornalísticos de checagem foram atendidos agora e no caso da Escola Base -há acusação formal, há ‘provas’ (os laudos) e há a palavra da polícia-, exceto por um detalhe fundamental: as vítimas não foram ouvidas. No caso da Escola Base, quando o foram, suas histórias foram descartadas. Agora, a moça só foi ouvida quando deixou a prisão, um mês depois da morte da filha.

Critérios iguais

A leitora Débora Lúcia Martins não ficou satisfeita com a cobertura da Folha. Ela não entendeu por que o jornal não identificou a médica que levantou a suspeita da cocaína e o médico residente acusado de ter estuprado Daniele. ‘Por que seus nomes e fotos não foram mostrados pelo jornal? Se uma pessoa pobre é acusada de cometer algum crime, ela ganha foto e nome completo em qualquer matéria ou numa simples nota. Agora, quando os implicados são médicos, policiais ou, no olhar do jornalista, pessoas ‘qualificadas’, eles são poupados do constrangimento da exposição pública’.

Estou de acordo que não pode haver dois critérios. Discordo, no entanto, de que a regra deva ser a malhação de todos em praça pública. O caso ainda está muito confuso, e o erro cometido com Daniele não pode justificar novos erros.

Há uma regra que um parte da imprensa brasileira já adotou, mas que nem sempre é respeitada: não se confia na polícia. Não basta a acusação de um delegado, não basta um laudo provisório, não basta a formalização de uma acusação. Os arquivos dos jornais guardam dezenas de exemplos de irresponsabilidade da polícia e da imprensa.’



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‘Trabalho investigativo’, copyright Folha de S. Paulo, 10/12/06.

No caso da Escola Base, todos os jornais, exceto o então ‘Diário Popular’, deram ampla publicidade às acusações da polícia e um tratamento no geral sensacionalista. O ‘Diário Popular’ teve a informação em primeira mão e decidiu não publicá-la por entender que a história estava mal contada e incompleta. Acertou.

No caso Daniele, um jornal deu o caso com muito destaque, com foto e identificação da mãe -por coincidência, o mesmo ‘Diário’, agora ‘de S. Paulo’. Errou, na minha avaliação. Não é o entendimento, no entanto, de Bruno Thys, diretor de Redação do jornal. Seus comentários:

‘O mérito do Diário foi ter feito um trabalho investigativo, que resultou na descoberta de um erro absurdo. O nome da mãe não foi omitido porque havia flagrante, prova técnica e testemunha. Por ordem: a suspeita foi presa com base num laudo atestando que o pó branco era cocaína, e o secretário da Saúde de Taubaté, Pedro Silveira, afirmou que a criança tinha o cérebro corroído pela droga. Daniele foi denunciada pelo promotor João Carlos Maia por homicídio duplamente qualificado -denúncia pela Justiça. Não há na imprensa brasileira norma clara de se preservar nome de suspeitos. A rigor, uma pessoa só pode ser considerada culpada quando a sentença estiver transitada em julgado. A repórter Cristina Christiano teve a atenção despertada para a possibilidade de erro ao fazer o perfil da mãe. Na casa de Daniele, ela viu roupas bordadas e detalhes que revelavam zelo, e não desdém da mãe. Orientada pelo editor Décio Trujilo, Cristina ouviu um toxicologista que foi categórico: os sintomas (pressão e temperatura baixas, batimentos cardíacos lentos e sono) não eram os de overdose, mas de quem tomava antidepressivos, ou seja, o fenobarbital, que efetivamente Victória usava. A repórter colheu informações em laboratórios e com uma professora de toxicologia da USP que afirmou: o exame (blue test) feito no dia da prisão poderia apresentar um falso resultado. Assim, em 10 de novembro -15 dias antes do resultado do laudo oficial-, Cristina publicou reportagem levantando a hipótese de erro, mostrando a incoerência dos sintomas de Victória e os de overdose, elementos suficientes para afirmar que Daniele era vítima’.’