Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Marcelo Beraba

‘Mais de 250 leitores escreveram para o ombudsman desde o domingo passado sobre as eleições presidenciais. O teor de uma boa parte das mensagens repete o acirramento constatado nas baixarias das campanhas eleitorais do PT e do PSDB. A disputa criou um ambiente de conflito e, conseqüentemente, de irracionalidade. Leitores dos dois partidos não apenas vigiam o jornal, o que é de todo desejado, como o tratam como aliado ou inimigo de acordo com a opção partidária. Uma foto de Lula ou de Alckmin tomada em um ângulo inusual é razão suficiente para um questionamento definitivo sobre as intenções do jornal.

É possível se perceber também uma crescente ‘vilanização’ da imprensa (tomo emprestado o termo usado pelo cientista político Renato Lessa no ‘Observatório da Imprensa’). Os discursos dos políticos em relação à imprensa sempre foram dúbios e ziguezagueantes, ora tratando-a como esteio da democracia, ora acusando-a de parcialidade, conforme o interesse do momento. O que há de novo nestes dias é a tentativa, na minha opinião irresponsável, de colocar a grande imprensa como participante de um golpe.

Os erros, desvios, fraudes, crimes ou que nome se queira dar para os escândalos que acompanhamos têm origem nas ações de políticos e partidos -como o PT e o PSDB- e não foram inventados pela imprensa.

Os erros

Isso não significa que a imprensa venha fazendo um bom trabalho nestas eleições. Há problemas sérios. O primeiro deles é a subordinação à Polícia Federal, ao Ministério Público e à CPI dos Sanguessugas, sem a contrapartida de um trabalho de investigação jornalístico próprio. A divulgação do andamento das investigações oficiais é indispensável, mas a cobertura não deveria se limitar a isso.

Um aspecto que contribui para o ambiente de acirramento que tomou conta dos partidos, dos meios de comunicação e dos leitores é a morosidade na apuração policial nos casos dos sanguessugas e do dossiê dos Vedoin.

A dificuldade de se avançar nas investigações, a falta de transparência da Polícia Federal e as desconfianças que se levantaram contra a PF e o Ministério Público concorrem para o uso eleitoral desses casos e para uma cobertura jornalística sempre inconclusa e açodada.

O caso mais emblemático destes desvios ocorreu na semana passada com as edições de capa das revistas ‘Veja’ e ‘Carta Capital’. As duas trataram da campanha eleitoral com mãos trocadas. Ambas partiram de algumas poucas informações e de muita especulação para conclusões ainda sem comprovação.

A própria formulação das capas demonstra essa fragilidade. Na ‘Veja’, a manchete é conclusiva – ‘Limpeza de alto risco’- , mas o texto da chamada, não: ‘A operação para encobrir a origem do dinheiro [para comprar o dossiê dos Vedoin contra os tucanos] pode ser ainda mais devastadora para o governo’. Pode ser. E pode não ser.

A reportagem principal da ‘Carta Capital’ -’A trama que levou ao segundo turno’- responsabiliza parte da imprensa por ter beneficiado ‘o candidato tucano de forma decisiva, às vésperas das eleições presidenciais, com a divulgação das fotos do dinheiro [para a compra do dossiê] e a ocultação de informações cruciais na cobertura do escândalo do dossiê’.

De acordo com a revista, ao entregar, na manhã do dia 29 de setembro, um CD com as fotos que fez do dinheiro encontrado com os petistas flagrados no hotel em São Paulo, o delegado Edmilson Pereira Bruno teve uma conversa reservada com quatro jornalistas, um deles da Folha, em que informa que tirou as fotos sem conhecimento de seus superiores e combina um estratagema para garantir que não fosse descoberto. Ele informou que diria a seus superiores que um CD com as fotos tinha sido furtado de sua mesa. A parte da reportagem baseada na conversa entre o delegado e os repórteres foi se desmanchando ao longo da semana porque a versão da revista era incompleta.

A impressão que as duas revistas passam, para quem as lê com o mínimo de distanciamento, é que tinham de fato algumas informações relevantes que mereciam, e ainda merecem, ser investigadas, mas que foram publicadas de forma precipitada. Os dados que tinham exigiam mais apuração. São, as duas, exemplos, com vieses opostos, de um mesmo modelo de jornalismo.

As fotos

Há um aspecto da reportagem da ‘Carta Capital’ que diz respeito diretamente à Folha e exige uma avaliação. Todos os jornais editaram as fotos com destaque na véspera do primeiro turno, e vários publicaram a história do furto mesmo sabendo que tinha sido inventada pelo delegado, inclusive a Folha.

Como avalio os procedimentos do jornal? Primeiro, ele agiu certo ao publicar as fotos. Elas têm indiscutível interesse público.

O jornal também acertou ao preservar o nome do delegado que passou as fotos e que pediu para não ser identificado. A garantia constitucional de preservação da fonte é um dos pilares da imprensa e da democracia.

Mas o jornal errou, na minha opinião, ao endossar a história inventada pelo delegado de que o CD tinha sido furtado.

A posição da Folha

A Folha, no entanto, acha que agiu corretamente, segundo Eleonora de Lucena, editora-executiva: ‘A Folha considera que agiu com correção, rigor e transparência no episódio das fotos com o dinheiro do dossiê. Em primeiro lugar, as imagens tinham evidente interesse público, o que justificou a publicação. O jornal obteve a informação sob o compromisso do sigilo da fonte, uma garantia constitucional. Por isso a Redação não identificou o responsável pelo vazamento. Na mesma reportagem, a Folha relatou a posição ‘on the records’ do delegado Edmilson Pereira Bruno, que falava em furto e negava sua participação no caso. Omitir essas palavras significaria censurar uma declaração pública do protagonista do evento. Qualquer outra ressalva ou adendo representaria a quebra do compromisso de sigilo da fonte assumido pelo jornal. O trabalho criterioso e responsável da repórter Lilian Christofoletti foi crucial para que a Folha acompanhasse todo o caso e seus desdobramentos. No dia seguinte, quando o delegado assumiu a responsabilidade pelo vazamento, o jornal registrou o fato na Primeira Página. Também publicou as opiniões do governo e do PT sobre a divulgação das fotos. Fez jornalismo independente, crítico e apartidário, como estabelece o seu projeto editorial, que não se presta a operações de manipulação política e deturpações da realidade’.

A Folha podia ter publicado as fotos com a informação de que as tinha recebido de uma fonte que não poderia aparecer. Não precisava coonestar a farsa armada pelo delegado.

Desde 1984, quando lançou o seu primeiro ‘Manual da Redação’, o jornal adotou um procedimento para fugir de artifícios e mentiras quando tem uma informação relevante, comprovada, mas cuja origem deve ser mantida no anonimato: é a fórmula ‘A Folha apurou…’. Ela traz para a direção do jornal a responsabilidade pela veracidade da informação e evita que se invente histórias ou personagens e que se engane o leitor.

No dia seguinte, quando o delegado assumiu o vazamento das fotos, o jornal estava liberado para publicar a conversa dele com os repórteres, de evidente interesse jornalístico.

A responsabilidade

Um último aspecto da cobertura jornalística. A imprensa deixou claro nesta eleição que, apesar do amadurecimento experimentado nas últimas duas décadas, continua preferindo uma fofoca, um bate-boca, um jogo de cena, uma pesquisa, uma pauta subordinada aos caprichos dos marqueteiros, ao trabalho estafante de pensar, refletir, analisar e investigar.

Neste sentido, ela sem dúvida também contribuiu para o clima deteriorado neste fim de campanha eleitoral.’