Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

OMBUDSMAN

Lira Neto

“Quando o bicho dá o bote, é porque já olhou tudo que tinha de olhar”
Guimarães Rosa (1908-1967) – escritor brasileiro

 

N

a natureza, ao longo da evolução das espécies, algumas plantas e animais desenvolveram a capacidade de sobreviver à custa de um intrigante fenômeno: por um extraordinário processo de seleção natural, conseguiram tomar a cor ou a forma dos objetos do meio em que vivem. Outros, como o camaleão, modificam a sua coloração de acordo com o ambiente.

É o chamado mimetismo. Uma garantia de que seus predadores naturais dificilmente conseguirão vê-los. E, também, de que suas possíveis presas não os perceberão até o momento fatal do bote. Na cruel luta pela vida, fazer-se passar pelo que não se é funciona como uma providencial estratégia de defesa e, ao mesmo tempo, como uma das mais eficazes armas de ataque.

No mundo dos homens, não é muito diferente. Nos jornais, conseqüentemente, também não. Na semana passada, os leitores do O Povo puderam perceber um exemplo peculiar de mimetismo. No domingo (15) e na terça-feira (17), um anúncio publicitário de página inteira, pago pelo Governo do Estado, fazia-se passar por material jornalístico. A camuflagem tinha tomado cuidado nos detalhes: reproduzia os mesmos elementos do projeto gráfico do O Povo. A abertura das “matérias” e os grafismos das legendas copiavam a formatação utilizada pelo jornal. O selo “Ceará em Pauta” e a tipologia (tipo de letras) empregada nos títulos e manchetes também mimetizavam os padrões do O Povo.

No salve-se quem puder da natureza ou das páginas de jornais, o mimetismo nunca acontece por acaso. Tem a intenção clara de disfarce. No caso do louva-a-deus verde nas folhas de uma árvore, ele serve como a camuflagem perfeita para abocanhar pequenos insetos. Já um anúncio disfarçado de notícia tem o propósito claro de enganar o leitor mais incauto. A série de peças publicitárias intituladas “Ceará em Pauta” aproveita-se da credibilidade do O Povo para promover ações do governo estadual. Quer que o leitor acredite que aquilo é notícia. Na verdade, trata-se de propaganda política. Armadilha de louva-a-deus.

A resposta do jornal

O tema “Ceará em Pauta” ocupou um bom espaço em meus comentários internos enviados ao jornal na semana passada. Critiquei o fato do jornal vir aceitando pacificamente a veiculação daqueles anúncios, que se fazem passar por material editorial. Reproduzi inclusive um e-mail enviado ao Ombudsman pelo leitor Roberto Rodrigues, que considera que “é o prestígio e a credibilidade do O Povo que está em jogo”.

Como resposta, recebi um telefonema do Diretor de Marketing do O POVO, Ribamar Gomes, e um fax enviado pelo Diretor-Superintendente do jornal, Osvaldo Araújo. Os dois insistiam em um mesmo ponto. O jornal havia tomado o cuidado de utilizar o recurso recomendado em convenção internacional: o uso da cercadura nos anúncios e do termo “informe publicitário”. O fax de Osvaldo Araújo reforçava ainda que “regimes democráticos exaltam a liberdade de expressão que, óbvio, não exclui a propaganda”. Araújo dizia ainda que “não diferenciamos o tratamento para o cliente anunciante público. Para qualquer efeito, ele é tratado como anunciante privado”.

No entanto, nesse caso específico, creio que a simples obediência às convenções internacionais – utilizar a cercadura e a expressão “informe publicitário” no topo da página – talvez seja insuficiente para advertir os leitores menos afeitos a esse tipo de tecnicismo. A semelhança entre a forma dos anúncios e o projeto gráfico do O Povo é mais evidente do que qualquer um desses pormenores técnicos. Em uma linguagem mais próxima ao mundo dos homens do marketing, poderíamos dizer que alguém estava pirateando o nosso projeto gráfico – a nossa embalagem – para vender um produto que não era o nosso. E nós consentimos.

Em tempo: o “Ceará em Pauta” veiculado terça-feira no O Povo não veio sob cercadura, o que só aumentava o seu poder de mimetismo.

A lógica do embargo

O Ombudsman tem consciência do que representaria para a Empresa Jornalística O POVO recusar um anúncio do Governo do Estado, principalmente quando o poder público reduziu a verba para anúncios em jornais e tem preferido a mídia eletrônica para a veiculação maciça de suas mensagens publicitárias. Mas esse não pode ser um pretexto para aceitar as regras do jogo sem discuti-las, sob pena de estarmos apenas reforçando a lógica de dependência que parece estar por trás do “embargo econômico” promovido de forma inflexível, até bem pouco tempo, pelos governos estadual e municipal em relação aos jornais locais.

Lixo e jornalismo

É incrível a explícita falta de disposição da imprensa cearense para contextualizar a polêmica sobre a cobrança da taxa do lixo em Fortaleza. Até aqui, os jornais foram incapazes de estabelecer qualquer relação entre o aumento da taxa e as irregularidades da licitação em 1996. Os dois fatos são apresentados de maneira isolada, como se não tivessem uma íntima ligação entre si. Fica evidente aí a característica fragmentação do discurso jornalístico, onde os fatos são apresentados como episódios desconexos, sem nenhuma vinculação com um contexto que os explique. É o artifício deliberado de apresentar a realidade como algo estanque, onde os fatos aparecem jogados
no mundo, sem nenhuma origem e sem vinculação com nada. A forma como o tema do lixo tem sido tratado pelo O Povo – e pelos demais jornais cearenses – é exemplo típico de uma das formas mais freqüentes de manipulação da informação: a redução da história a fragmentos, o encobrimento da lógica que permeia todos os processos sociais.

De olho nos colunistas – Parte II

Não é apenas o Ombudsman que está de olho neles. Os leitores são muito mais atentos do que podem imaginar alguns colunistas do O Povo . Na próxima semana, completo três meses no cargo de Ombudsman. Aproveitarei a oportunidade para fazer um balanço geral do período, apresentando os números de ligações, e-mails e faxes recebidos até agora. O maior alvo dos leitores continua sendo os colunistas que utilizam as colunas para defender causas próprias. Após o Ombudsman ter tocado no assunto [ver OBSERVATÓRIO número 41, de 20/3/98], parece que os colunistas citados em minha penúltima coluna, por pura provocação, adotaram a tática de abusar ainda mais desse tipo de procedimento. Pensam que estão atingindo o Ombudsman. Na verdade, só conseguem mostrar um desrespeito ainda maior pelos leitores.

 

 

Na próxima quarta-feira, completo três meses no cargo de Ombudsman do O Povo. Um quarto de meu mandato de “representante dos leitores” já foi cumprido. Como havia prometido aqui na semana passada, aproveito a oportunidade para fazer o primeiro balanço trimestral, prestando contas publicamente de meu trabalho de ouvidor.

Assumi o cargo de Ombudsman do O Povo com um propósito definido, devidamente acertado com a Redação e a Diretoria logo no primeiro dia de trabalho: dedicar-me, com mais afinco, à crítica editorial do jornal. Isso se tornou possível porque, a partir deste ano, o Ombudsman conta com o trabalho complementar do controller, atualmente exercido pelo jornalista Gibson Antunes. Entre outras tarefas, cabe ao controller – ironicamente, apesar do modismo do nome em inglês – detectar e prevenir os erros de português cometidos diariamente por nossos redatores.

Assim, o Ombudsman teve a chance de dispensar um tempo maior à análise de conteúdo do jornal. Isso, é claro, não impediu que, em meus comentários internos, fossem incluídas todas as reclamações dos leitores em relação a erros de português cometidos pelo jornal. Que ainda são muitos. Descuidos na ortografia, escorregões na concordância e derrapadas na pontuação são os problemas mais visíveis. No entanto, se tais erros enervam e desapontam os leitores, os erros de informação e os deslizes éticos são classificados, pelos mesmos leitores, de “imperdoáveis”. Os primeiros, erros de varejo, causam um justificado mal-estar ao leitor. Os outros, erros de atacado, despertam violentas indignações.

A participação do leitor

Nas colunas de segunda-feira, o Ombudsman tem privilegiado análises de conteúdo. Pormenores, incorreções e falhas de edição são discutidos nos comentários internos, para que a Redação providencie a necessária correção na seção “Erramos”. Os gráficos ao lado são uma evidência de que o recado do Ombudsman está sendo percebido – e assimilado – pelos leitores. Um dado significativo é o aumento, mês a mês, no número de mensagens recebidas através do correio eletrônico. O leitor utiliza o telefone principalmente para reclamações pontuais e imediatas. Já o e-mail tem sido utilizado pelos leitores para críticas mais conceituais e análises mais alentadas sobre o conteúdo ético e jornalístico de algumas matérias e coberturas. O volume crescente de e-mails – e a manutenção no número de telefonemas – confirma, assim, a resposta positiva dos leitores em relação ao perfil adotado pelo
Ombudsman em sua coluna semanal.

Em tempo: fax e carta são, até aqui, meios pouco utilizados pelos leitores. O fax parece estar sendo substituído, definitivamente, pelo correio eletrônico. A carta, meio mais lento em comparação às novas tecnologias, talvez não corresponda à necessidade do leitor de obter um retorno urgente a suas críticas e conseqüentes pedidos de retificação. Mas as cartas continuarão sempre bem-vindas.

Trabalho de Sísifo

Tenho consciência de que o Ombudsman desempenha um trabalho pedagógico, de longo prazo. Nesse processo de aprendizagem, é impossível corrigir vícios históricos de uma hora para outra. Há, portanto, um longo caminho a ser percorrido. Talvez por isso, um leitor já chegou a comparar o trabalho do Ombudsman ao de Sísifo, aquele que, segundo a mitologia, foi condenado a carregar uma enorme pedra ao alto da montanha, para logo depois vê-la despencar lá de cima. E assim voltar a carregá-la, para ela sempre tornar a cair. A mesma tarefa todos os dias, indefinidamente.

Há, infelizmente, uma certa verdade na comparação. Basta citar o que ocorreu após a publicação das duas colunas que, nestes três meses de trabalho, mais receberam retorno de leitores: a que criticava a hesitação da imprensa em ter uma postura crítica em relação ao Judiciário (“Os ?amigos? do meritíssimo”, em 9/2) e a que questionava a utilização da mão-de-obra infantil pelos jornais (“Perversa contradição”, em 2/3). [Reproduzida no OBSERVATÓRIO número 40, de 5/3/98.]

Pois nos dois casos, mesmo após a crítica do Ombudsman, o jornal continuou insistindo no erro. Na última quarta-feira, por exemplo, O Povo noticiou que havia sido inaugurado a nova sede do Juizado da Infância e da Juventude. A matéria informava que estava presente o juiz Cândido Couto, “cujo nome foi escolhido para o novo fórum”. O repórter não se deu conta, ou fez de conta que não viu, que estava testemunhando mais um flagrante desrespeito à lei patrocinado pelo próprio Judiciário. Batizar obras e prédios públicos com nome de pessoas vivas é proibido por lei. Mas O Povo, mais uma vez, fechou os olhos.

Há duas semanas, estiveram no Ceará os membros de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, que investiga a exploração do trabalho infantil em todo o País. A CPMI dedicou boa parte de seu tempo no Ceará à questão dos gazeteiros. Em dois dias seguidos, O Povo trouxe duas matérias a respeito do trabalho da comissão em Fortaleza. Em nenhuma das duas informou que o assunto dos pequenos vendedores de jornal foi um dos temas centrais dos debates. O Ombudsman não pode abrir mão de sua tarefa. Mesmo que, para isso, tenha que por vezes encarnar o papel de Sísifo. Mas adverte: os leitores não têm a mínima obrigação de ter a mesma paciência com a imprensa. Podem cansar de carregar pedra. Afinal, há mesmo um limite a partir do qual a tolerância deixa de ser uma virtude.

 

(*) Coluna publicada em O Povo, de Fortaleza, em 22/3/98.

(**) Coluna publicada em O Povo, de Fortaleza, em 29/3/98.