Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O ovo e a linha

A impressão que Saul Steinberg sempre me deu foi a de que era um tipo de aranha, com um carretel na barriga de onde puxava um fio com o qual construía seus mundos. Mundos muito próprios, feitos de linhas, restos de passaportes e documentos, labirintos, infância, sombras e reflexos. Quase tudo de perfil. Mas quem era? Pintava, era cartunista, ilustrador?

Diz Robert Hughes que era um mestre da escrita. De uma forma de escrita. O artista e seu desenho andavam juntos, entrelaçados, sem possibilidade de separação. Muitas vezes ele começa com a linha, vai andando, transformando-a em casas, brinquedos, gente, varais de roupa e chega ao fim com um homenzinho todo enroscado no traço que é a cara dele mesmo.

Acaba de sair um livro, Reflexos e Sombras [trad. Samuel Titan Jr., IMS, 184 págs., R$ 45], que é o fruto de conversas com seu amigo Aldo Buzzi. É bem bom de ler, uma biografia pequena.

Culinária

Buzzi conheceu Steinberg em Milão, na faculdade de arquitetura. Arquiteto e ensaísta, trabalhou no cinema italiano e em editoras. Escreveu um livrinho de culinária culto, engraçado, que vai de Apicius ao francês da “nouvelle cuisine”, Michel Guerard. E adivinhem quem ilustrou?

Nas 14 ilustrações de Steinberg para The Perfect Egg, há um toureiro de toque esgrimando um touro; garçons trogloditas; uma mesa posta com uma chave de fenda, um alicate e um martelo.

Buzzi não fala só de ovos. The Perfect Egg [trad. Guido Waldman, St. Martin’s Press, 150 págs., R$ 39] é um minitratado sobre comida do mundo inteiro. Coisas gostosas que comeu, principalmente italianas. Passa pela cozinha futurista de Marinetti. Preocupa-se com o ovo, é verdade. Os problemas que um simples ovo pode trazer a quem vai cozinhar. Quais são os melhores? Casca branca ou vermelha? Pequenos ou grandes? Até o ovo frito tem seus segredos. E uma omelete, então? E os ovos mexidos, como fazê-los? Quem quer a receita de uma sopa de Kafka?

Nariz afiado

Steinberg nasceu em 1914, num lugarejo romeno. A família logo se mudou para Bucareste, onde ele passou toda a infância e adolescência. Suas lembranças são as de um menino de nariz muito afiado, ou, como diria ele próprio, do “nariz do cérebro”. Cheiro de toda a sua vida de criança e adolescente, de latas de tinta, de caixas de papelão, cheiro de cola, até cheiros da relojoaria do tio, de pinturas de cartazes para as lojas. Cheiro de material escolar, caixas de lápis.

Depois de um ano na Universidade de Bucareste, onde estudou filosofia e literatura, Steinberg foi para Milão, fez o curso de arquitetura. O que se percebe na sua vida futura, cheia de perspectivas, desenhos de casas, de ruas e de prédios. Quase toda história de sucesso começa com fracasso após fracasso até o reconhecimento. Não foi o caso do nosso desenhista. Já estreou em revistas milanesas e sempre teve editores para qualquer coisa que fizesse.

Foi muito imitado. Uma de suas imagens mais plagiadas foi a capa da revista The New Yorker que colocava NY no centro do mundo, numa insularidade a toda prova.

Em 1941, deixou a Itália fugindo do antissemitismo. Era preciso naturalizar-se, e o fez em 43, mas, para adquirir a cidadania americana, tinha que fazer serviço militar. Inscreveu-se na Marinha, o que o levou para China, Índia e Itália. Documentou tudo com sua linha de barriga de aranha.

New Yorker

Em 1944, se estabelece em NY. Alcança sucesso imediato, e a New Yorker foi sua “pátria”, como dizia. Em Manhattan, redescobre a cidade que não era sua e passa a amá-la e a destrinchar cada pedaço daquele bolo enfeitado, os táxis coloridos (não só amarelos), as comidas em cada esquina, a gente comum que se divertia, chorava e ria, andava a pé, subia de elevadores, dormia.

O Chrysler Building, o Empire State, os “jukeboxes”, os cafés, as lojas, os vestidos das mulheres, tudo era feito de elementos cubistas enfraquecidos num art déco, segundo ele. Brincava com o Chrysler Building como se fosse um Lego, dele extraía “doughnuts”, nuvens, conchas, fragmentos e tudo o que o pós-Guerra trazia de novo. Vamos poder conferir seus desenhos das décadas de 1940 e 50 em As Aventuras da Linha, catálogo [org. Roberta Saraiva, IMS, 310 págs., preço a definir] e exposição organizada pelo Instituto Moreira Salles, que estreia em 28/5, no Rio, e vem a São Paulo em setembro, na Pinacoteca.

A cidade era fonte contínua de inspiração, o mundo que o acolhera, que ele amava, mas do qual podia rir.

Pesquisava tudo, das pontes aos cartões-postais, o lado de baixo e o de cima, os muitos reflexos de NY.

Lembrava-se de que na Romênia, nas noites de luar, as camponesas olhavam para o fundo dos poços até ver a lua. Então, jogavam o balde no poço, lentamente puxavam a água com a lua dentro e bebiam o reflexo com uma colher.

Tinha urgência de enxergar o mundo diferentemente de quem viera antes dele. O seu esforço é no sentido de esquecer tudo o que sabia ou que lhe haviam contado para inovar, reconstruir um olhar primeiro.

Reportagens desenhadas

A New Yorker salvou Steinberg durante a Segunda Guerra, deu-lhe apoio total. Lá, foi deixando para trás a ideia de cartuns com legendas para fazer só desenhos. Eles se encaixavam tão bem na revista que não era preciso escrever nada. Como uma marca. Os leitores consideravam seus desenhos como reportagens desenhadas.

Saul gostava de pensar que escrevia romances, mas seu dom era maior para o conto curtíssimo, o fragmento, a pensata. Julgava o estilo como substância e, com seu traço estenográfico, queria provar que o estilo era substância.

Dizia: “As pessoas que veem um desenho na New Yorker vão achar que é engraçado por estar lá. Se o vissem num museu, o achariam artístico, se o achassem dentro de um biscoitinho chinês da sorte, diriam que era profético”. E ele tentava confundir os leitores para que realmente não soubessem interpretar o que estavam vendo, ou que tivessem muitas interpretações ao mesmo tempo.

Os críticos veem a linguagem de Steinberg como “a de um palhaço sofisticado nos anos 40, documental e crítica nas suas viagens, bem americana nos anos 50, e cômica e filosófica nos 60”. Seus desenhos não ilustram, mas complementam o que foi escrito, fazem pensar.

Artista

Quem era um artista? Ele responde em 1986: “Claro que podemos decidir se vamos nos tornar artistas de museu, mas, aos meus olhos, isso é tão ruim quanto tornar-se um artista comercial, no sentido em que você não é mais um artista moderno. Tem que estar submetido ao Papa ou ao Príncipe. A essência do artista moderno está na procura, está na sua posição precária, está em não ser profissional”.

E Steinberg teimava em não se encaixar em categoria nenhuma. Tudo que viesse do Papa ou do Príncipe o aborrecia. Chamava de lição de casa.

E ele odiava lição de casa. E também não queria ser chamado de artista, pensava nos compradores de quadros, nas manias de colecionadores. Só vendia os direitos da publicação de seus desenhos para editores. Conservava os originais para impedir “todos os desenhos, chorando à noite, baixinho, morando nas casas erradas”.

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Colunista da Folha de S.Paulo, autora de Não É Sopa (Companhia das Letras)