Tuesday, 23 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Osvaldo Martins

‘Logo nos primeiros comentários nesta página lancei ao debate da assembléia de acionistas o papel de uma TV pública no Brasil. A Cultura, que nasceu estatal e educativa, procura – solitariamente – esse caminho há 35 anos. Agora, com a chegada do Festival Cultura – A Nova Música do Brasil, as paixões começam a ferver – o que é um bom começo.

Junte-se ao Festival toda a sólida tradição da emissora em programas com música brasileira e temos aí mais que um bom começo: uma trajetória. Exemplos não faltam. Viola, Minha Viola, com a emocionante Inezita Barroso, talvez seja a abordagem mais representativa da música nascida nas entranhas do país. Agora, com o Sr. Brasil, o boa praça Rolando Boldrin agrega ingredientes de brasilidade que lavam a alma. Sem falar no Ensaio, do Fernando Faro, moderno hoje como há 30 anos, precursor que é de uma estética televisiva inimitável. O Bem Brasil que mudou de Sesc mas manteve a qualidade lá em cima, também faz parte desse time.

E o que dizer do Professor Pasquale, que utiliza letras de canções para suas aulas de gramática? Um achado. Semana passada a Cultura lançou no mercado publicitário um novo projeto, o da Fábrica do Samba, outra iniciativa que tem tudo para emplacar. E aos poucos, quase um luxo, ganha espaço na programação da emissora essa jóia da coroa que é a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, que foi objeto de um excelente documentário de sua turnê pelo Brasil, escrito e dirigido pela jornalista Neide Duarte.

Voltando ao papel da TV pública: em um país como o Brasil, que tem na musicalidade do seu povo um dos mais fortes traços da sua formação cultural, que outro tema será tão ou mais adequado à difusão do conhecimento? Além do mais, que outra TV, senão a pública, pode nos defender do lixo musical que domina os palcos das emissoras comerciais?

Chico Buarque, um gênio da raça, disse recentemente em entrevista à Folha de S. Paulo que é ‘um homem do século 20’, e que sua produção musical brotou, àquela época, fruto do ambiente de então. Bendito século 20, o mesmo de Antonio Carlos Jobim, Heitor Villa Lobos, Pixinguinha, Guerra Peixe, Cartola, Camargo Guarnieri, Adoniran Barbosa, Ary Barroso, Heitor dos Prazeres, Radamés Gnatalli, Vinícius de Moraes…

Bendito o país que, tendo o século 20 que teve, formou um imenso estoque de variedade de gêneros com qualidade musical sem paralelo no mundo inteiro. Um patrimônio como esse não pode ficar empoeirado nas prateleiras da memória nacional. Seria um crime de lesa-pátria condenar as novas gerações ao bate-estaca importado e às medíocres baladas dessa massa amorfa chamada MPB.

MPB só serve para nomear qualquer coisa sonora feita em território brasileiro; é um rótulo deliberadamente genérico para não identificar coisa alguma. A Cultura devia banir essa sigla de seus textos e resgatar os verdadeiros personagens da música brasileira – o samba, o samba-canção, o partido alto, a bossa nova, o choro, a valsinha, o xote, o xaxado, o coco e muitos outros gêneros musicais. A marca MPB põe todo o lixo musical no mesmo saco, incluindo o rock tupiniquim, que pouco difere dos seus similares argentino ou japonês, com todo respeito.

Daí a enorme responsabilidade do Festival Cultura. Qual será a nova música do Brasil? Com certeza, é a música do século 21, que até hoje não disse a que veio. Mesmo assim, vale como um painel fotográfico deste momento do país, e o momento não é lá grande coisa. Consola saber que boa parte da primorosa produção musical do século passado foi criada debaixo da censura da ditadura, outra ‘página infeliz na nossa história’, como lembra o verso de Vai Passar.

Tomara que o Festival surpreenda positivamente, que surjam novos talentos e que a boa música brasileira se revigore. Como canta Nelson Sargento, ‘o samba agoniza mas não morre’. Mas, se o resultado for fraco, não faz mal. Valeu a intenção. E a Cultura sempre poderá recorrer às imagens do século 20 toda vez que quiser cumprir o seu papel de TV pública comprometida com o que há de melhor na cultura popular brasileira.’