Wednesday, 24 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Osvaldo Martins

‘Durante seis anos (1998-2004) os profissionais da TV Cultura discutiram à exaustão a natureza e as características do jornalismo que deva ser praticado em uma televisão pública. Esforço louvável esse, digno de elogios sobretudo pela seriedade com que foi conduzido e pelo entusiasmo com que todos se entregaram à formulação de conceitos éticos fundados no compromisso da TV pública com a valorização da cidadania.

Desse longo debate resultou um guia de princípios adotado como o ‘corão’ do jornalismo da casa. A rigor, qualquer Redação de jornalismo de qualquer emissora que respeite o seu público deveria adotar tais princípios. Eles ensinam que o jornalismo não deve render-se à tentação do espetáculo e muito menos às fórmulas primitivas de conquista fácil de audiência pelo uso de apelos à emoção barata das tragédias do cotidiano.

Até aí, tudo bem. Mas esses princípios, todos eles adequados e irrefutáveis, são apenas isso – princípios. A discussão necessária, agora – e que não pode consumir mais seis anos – é sobre o tipo de jornalismo a ser praticado com base nesses princípios. É menos sobre o que não se deve fazer, em respeito ao público, e mais sobre o que deve ser feito, e como deve ser feito.

Esse passo adiante na discussão é urgente. O Diário Paulista e o Jornal da Cultura de 30 de setembro, quinta-feira, mostraram de forma dramática a urgência de se estabelecer os padrões mínimos de qualidade informativa a que o público tem direito.

O respeito ao público não se limita aos preceitos do ‘corão’. Repetir na íntegra, com a mesma edição, reportagem veiculada na véspera, como fez o Diário Paulista, é uma clara demonstração de falta de respeito. Essa matéria, do gênero pitoresco, sobre o eleitorado de São Lourenço da Serra, não tem relevância que justifique uma reprise amanhecida. Ainda que seu conteúdo tivesse importância para uma nova abordagem, esta deveria obrigatoriamente estar re-editada e, se possível, atualizada.

Surpreso com o que via na tela, telefonei para o diretor de jornalismo, Marco Antonio Coelho, para perguntar o que acontecia, mas fui atendido pela gerente de jornalismo, Solange Serpa. Simpática e gentil, ela disse apenas: ‘É, nós costumamos mesmo reaproveitar matérias’. Agradeci, despedi-me e desliguei.

Hora e meia depois, o principal telejornal da emissora, o Jornal da Cultura, exibia mais seis reprises de matérias que acabavam de ser vistas pelo público – cinco no Diário Paulista e uma no Hora do Esporte. É claro que o conteúdo de nenhuma delas fere os princípios éticos do ‘corão’, mas a sua simples veiculação é em si uma (outra) forma de desrespeito.

Para arrematar essa noite infeliz do Jornal da Cultura, o comentarista Juca Kfouri fez brincadeiras sem graça com Heródoto Barbeiro. Com um cartão magnético de aposentado na mão, perguntou se pertencia ao apresentador; em seguida exibiu a caneta-tinteiro de Heródoto, insinuando com essas pilhérias que ele é uma pessoa de idade avançada.

Brincadeiras como essas, típicas de bons companheiros no ambiente de trabalho, são até saudáveis – mas fora do ar. O Jornal da Cultura deve ter o mínimo de sobriedade que agregue credibilidade aos seus conteúdos.

Fica, disso tudo, a impressão de uma preocupante falta de compromisso com a qualidade. No caso das sete reprises, o que falta? Informação (para alimentar a pauta), repórter (para produzir matérias), editor (para re-editar)? Com certeza falta o indispensável controle de qualidade, apesar de os créditos dos telejornais informarem que a casa dispõe de um editor nessa função.

Depois de cerca de setenta meses produzindo um guia de princípios, e de cunhar o rótulo do jornalismo público, parece que a cúpula do jornalismo da TV Cultura cobriu-se de louros e deu sua missão por encerrada. Mas, a vida continua, a TV está no ar e o público é exigente. O telespectador, que é contribuinte e patrão, merece dedicação à qualidade como forma de respeito – e não apenas o receituário (louvável, repita-se) do ‘corão’.’