Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Paulo Machado

‘Geralmente observa-se uma enorme ‘coincidência’ entre os assuntos que estão na pauta diária da mídia e na ‘agenda do dia’ do poder político ou econômico. Ao influir de maneira privilegiada naquilo que deve ser notícia, o poder determina o que quer que a sociedade saiba, e as informações advindas desse processo trazem no seu bojo o filtro ideológico, no sentido das idéias e valores de quem as concebeu. Ou seja, não são informações inócuas, imparciais, mas ao contrário, refletem justamente o olhar da instituição ou da autoridade sobre os assuntos nos quais têm algum tipo de interesse que estejam em discussão.

Como a maioria das redações se pauta pelos mesmos releases, boa parte das notícias diárias em diferentes veículos de comunicação praticamente se repetem. São assuntos abordados da mesma forma em matérias que baseiam suas informações nas mesmas fontes e com o mesmo enfoque sobre um determinado assunto. É o que chamamos de ‘pasteurização da notícia’ como se todos os fatos passassem por uma única máquina que padronizará o olhar da mídia sobre eles, eliminando, ou evitando olhares diferentes, que informações imprevistas cheguem ao público. Raramente o repórter ou o editor conseguem apresentar um olhar diferenciado ou uma abordagem inédita, pois a notícia tem o que podemos chamar de um vício de origem.

Mas, se a mídia em geral está presa a uma agenda do poder que determina o que é notícia, uma empresa pública de comunicação não está, pois ela, e só ela, tem condições e a missão de buscar uma agenda própria – a agenda da cidadania. Diferentemente da agenda dos veículos de empresas comerciais de comunicação que, se não pautarem o que ‘todos querem saber’, perderão anunciantes, a agenda pública deve se pautar por aquilo que os cidadãos precisam saber e não encontram em nenhum outro lugar.

Sobre isso alguns leitores têm escrito para esta Ouvidoria. Tânia Mara Saldanha perguntou em sua mensagem por que a Agência Brasil vem dando destaque aos assuntos relacionados ao governo do Distrito Federal e afirmou: ‘a Agência é do Brasil e não do DF’, referindo-se a uma foto publicada na primeira página da ABr onde aparece o secretário do Trabalho do governo do Distrito Federal em entrevista coletiva para a divulgação da Pesquisa Mensal de Emprego e Desemprego do Dieese.

Apesar de ser uma foto ‘muito específica’ como disse a leitora, ela ilustrava um assunto de abrangência nacional que é a pesquisa do Dieese com informações sobre o emprego e o desemprego em diversas capitais. A Agência explicou que excepcionalmente foi usada uma foto local, mas que a prioridade é publicar matérias e fotos que tenham foco nacional.

Como faz parte do trabalho da Ouvidoria identificar, a partir de demandas específicas dos leitores, o que elas possam conter de possíveis desvios de procedimentos e condutas, verificamos se estaria ocorrendo algum tipo de favorecimento ou de privilégio às notícias de um estado em relação a outro, ou ainda de notícias locais em detrimento de notícias nacionais na pauta da Agência Brasil.

Neste sentido, apuramos que esses casos são exceção e não a regra. Dentre as exceções, há algumas notícias que tratam de políticas públicas de governos como de São Paulo, Rio de Janeiro e Distrito Federal. Talvez isso se justifique pelo fato de a Agência manter sucursais nessas capitais e ter sua sede em Brasília, o que levaria a uma maior aproximação dos fatos ocorridos nesses locais bem como de sua repercussão. Mas o fato de eventualmente se pautar por assuntos de governos locais não leva à conclusão de que se trate de uma tendência e sim muito mais de pequenos desvios da regra de pautar apenas assuntos ditos ‘nacionais’.

Mas mesmo em uma pauta que trate de um assunto local, os leitores esperam que a ABr consiga mostrar um olhar diferenciado que fuja do óbvio comumente apresentado pela mídia comercial. A leitora e jornalista Juçara Braga, vice-presidente da Associação de Moradores de Santa Teresa (Amast) foi uma das fontes ouvidas na matéria Turistas e moradores disputam bondinhos de Santa Teresa, publicada em 25 de fevereiro. Ela mandou uma mensagem pedindo reparações naquilo que classificou como ‘informações equívocadas’.

Segundo ela: ‘Eu, efetivamente, disse que Santa Teresa sempre dividiu os bondes, democraticamente, com os visitantes, mas, em momento algum eu reconheci que a circulação de moradores fica prejudicada por causa dos turistas, já que há poucos bondes em circulação. Eu disse sim que os usuários deste meio de transporte sofrem com a precariedade do serviço devido à falta de bondes, que estão parados para reforma sem previsão de retorno.’

Continuando em sua mensagem a leitora informa que: ‘Eu também não disse que os turistas são bem-vindos ‘porque movimentam o roteiro gastronômico e cultural’. Eu disse que os turistas são bem-vindos, sim, mas não por esse motivo e também não em massa. A posição da Amast neste sentido é bastante clara: ‘Repudiamos o turismo de massa e a idéia estapafúrdia da gestão municipal anterior de transformar o bairro em roteiro gastronômico, pois nossas ruas e ladeiras são íngremes e estreitas e não suportariam um turismo de massa, predatório, a exemplo do que já vem sofrendo outros destinos, como, por exemplo, a Ilha Grande (RJ). A perspectiva é ruim para o bairro, pois o excesso de circulação de veículos pode causar danos estruturais ao seu casario, além de prejudicar a tranquilidade dos moradores. ‘Santa Teresa está em Area de Proteção Ambiental (APA), que estamos atuando para regulamentar, e prevê uma série de regras para usos do bairro, tais como localização e limitação do comércio. Um bairro que integra uma APA e o turismo de massa são incompatíveis, pois este último agride, não preserva, destrói e não acrescenta.’

A Agência Brasil respondeu que: ‘A Agência Brasil considera improcedente os questionamentos feitos pela leitora e vice-presidente da Associação dos de moradores do bairro Santa Tereza, Juçara Braga. 1) A jornalista Isabel Vieira, diferentemente do que aponta a leitora, adotou todos os procedimentos adequados de apuração jornalística. Usou o transporte do bondinho, conversou com vários usuários e registrou a opinião de dois usuários, Rafael Fernandes e o advogado Teodomiro Almeida. A repórter teve o cuidado de procurar representantes da Associação dos Moradores, e entrevistou a sua vice-presidente, Juçara Braga, e falou com o secretario estadual dos Transportes, Julio Lopes. Todos os quatros estão com declarações na matéria. Assim, a leitora não pode dizer que a matéria tem apenas uma opinião. A matéria traz opinião de usuários, de representantes da sociedade civil organizada e de autoridade local. 2) Não temos nenhum reparo a fazer nas declarações feita pela leitora e publicadas pela Agência Brasil. Ao contrário do que ela afirma na mensagem enviada a Ouvidoria em que diz: ‘Eu não disse que os turistas são bem-vindos porque movimentam o roteiro gastronômico e cultural’ não existe esta frase em nossa matéria. A gravação com a frase de Juçara Braga está à disposição.’

Ou seja, a partir dos problemas de infra-estrutura de transportes de Santa Teresa, uma fonte deu informações para que se construísse um outro olhar sobre a questão. Poderia ter sido uma abordagem em que a notícia discutisse o crescimento econômico a qualquer preço, às expensas da depredação ocasionada por um turismo de massa, em contraposição ao desenvolvimento econômico sustentável, que respeite as características sócioculturais e ambientais do bairro. Essa contradição entre crescimento e desenvolvimento é uma discussão que permeia nossa sociedade e nada melhor do que exemplos práticos como esse para deles se extrair o caráter universal das questões que contemplam.

Principalmente porque o assunto da pauta era a privatização dos bondes conforme consta da matéria: Modelo de concessão dos bondes de Santa Teresa sai ainda no primeiro semestre , publicada dois minutos antes da outra. Nela, o secretário estadual de Transportes do Rio de Janeiro, Julio Lopes, ‘defende um modelo de concessão, como o aplicado para outros meios de transportes na cidade, com o objetivo de melhorar o serviço’. Mas será que o modelo funcionaria em um sistema de transporte com tantas peculiaridades como o de Santa Teresa? Ou o bairro secular, que possui o único sistema de bondes em funcionamento na cidade, mereceria uma administração diferenciada que preserve suas características sócioculturais e ambientais, mesmo que o estado tenha que continuar subsidiando o preço da passagem? Quais as implicações da privatização do sistema? Essa poderia ter sido a discussão por trás da pauta que partindo de um exemplo local daria uma dimensão nacional ao assunto.

Hoje vivemos um momento singular em que o mesmo Estado que deveria ser mínimo e não se intrometer nos assuntos de mercado, segundo os paradigmas neoliberais, está sendo convocado para salvar, com dinheiro do contribuinte, alguns bancos e empresas que outrora enriqueceram, se locupletaram, concentrando poder e riqueza graças à ausência do Estado. Desconstruir paradigmas como o da privatização, explicar como funcionaram e como estão presentes no cotidiano de nossa economia pode ser uma oportunidade histórica para que a comunicação pública se estabeleça como um diferencial, quer seja discutindo os níveis de emprego quer seja discutindo a matriz de transporte de Santa Teresa, a partir dos interesses da cidadania e não a partir dos interesses do poder político e econômico.

Por que os bondes de Santa Teresa são notícia para a ABr? O objetivo dessa pauta seria o de mostrar quais são as outras soluções possíveis e que talvez estejam sendo ignoradas pelo governo ou apenas informar que o governo vai privatizar o serviço? Apesar de ser a função de a Agência fornecer informações para promover o debate sobre o problema mostrando os diversos pontos de vista sobre a questão, em algumas frases a reportagem dá a entender que a decisão já está tomada ‘Com o preço subsidiado e inúmeros problemas, o governo não vislumbra outra solução.’

No entanto, na leitura das duas matérias aparecem informações que revelam soluções alternativas à que está sendo tomada pelo Poder Público, mas as matérias não explicam por que não foram aplicadas. Por exemplo: o que aconteceu com ‘os R$ 22 milhões destinados pelo Banco Mundial (Bird) para a restauração de 14 composições há dois anos’? Por que o banco colocaria esse dinheiro na mão do governo se não fosse para recuperar um sistema de transportes ‘tombado pelo patrimônio histórico’? Quais são os argumentos da sociedade civil que ‘obteve uma liminar obrigando a devolução dos bondes em 2008’? Por que o estado não cumpriu a liminar? Em que se baseou a decisão da Justiça? Qual o impacto sóciocultural da privatização desse ‘cartão postal’ ‘[bondinhos] que já transportaram a intelectualidade e boa parte da elite carioca nas décadas de 1930 e 1940’? Qual a posição do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) sobre a privatização? Quantos profissionais trabalham ‘no sistema de bondes, que incluiu também a conservação dos trilhos, das garagens, oficinas e da rede aérea de eletricidade.’? Quanto vale o conhecimento desses profissionais sobre uma tecnologia secular que está em extinção? E a relação afetiva com seu trabalho? Será que os custos indiretos e imateriais foram computados pelo governo quando o secretário de Transportes alega ‘que o preço da passagem (R$ 0,60) não é suficiente para cobrir todas as despesas. O valor está defasado de qualquer realidade de transporte’? Os usuários do transporte público concordam com a afirmação do secretário de que ‘o modelo de concessão, como o aplicado para outros meios de transportes na cidade, com o objetivo de melhorar o serviço’ realmente o melhorou ou é somente um objetivo?

Mais importante do que saber o que é notícia e reportar o fato em si, seja ele local ou nacional, talvez seja explicar porque tal fato aconteceu. Assim, mesmo que os assuntos cobertos pela ABr sejam comuns aos outros veículos de comunicação, o público espera que ela consiga ir além dos fatos mostrando porque eles aconteceram, quais foram as suas origens, o que determinou que eles ocorressem de uma determinada maneira e não de outra, quais são os processos históricos em curso e suas possíveis conseqüências, quem ainda não foi ouvido e precisa ser para que se estabeleça o debate democrático no espaço público de comunicação.

Até a próxima semana.’