Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Paulo Machado

‘A Ouvidoria recebeu esta semana uma mensagem da leitora Carolina Bonando na qual ela relatou que havia lido a matéria ‘Primeira vacina eficaz contra vírus HPV custa R$ 364’, sobre a comercialização da vacina produzida por um laboratório particular sob o nome de Gardasil, publicada pela Agência Brasil em 3 de fevereiro de 2007. Ela tentou adquirir a vacina pelo preço estipulado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos (Cemed), que definiu o valor de R$ 364,16 como preço máximo a ser cobrado por dose, conforme informava a matéria. A leitora afirmou: ‘Fui ao Méier, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, e recebi a vacina por R$ 590, e pior, não encontrei outro local de vacinação, nenhum, nem mais barato nem mais caro, nada. Ninguém nos postos de saúde soube informar e agora que já tomei a primeira dose da vacina, quero saber se haverá no prazo de um mês, a esperança de que baixe de preço para o valor estabelecido ou que seja aplicada gratuitamente nos postos de saúde. Como ficará a situação?’

A Agência Brasil acompanhou desde agosto de 2006 o processo de liberação pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) da vacina contra quatro tipos do vírus papilomavírus humano (HPV), principal causador do câncer de colo de útero. Até esta semana publicou 12 matérias sobre assunto.

Em fevereiro, a matéria citada pela leitora, também informou que o laboratório criador da vacina havia recorrido do valor estipulado pelo governo e esperava a tramitação final do processo na Justiça para iniciar a comercialização. Nenhuma matéria posterior informa como transcorreu o julgamento do caso. No entanto, a vacina já está sendo vendida. Se o processo ainda está tramitando na Justiça, a empresa pode estabelecer o preço que quiser para o medicamento? Ou será que o processo já tramitou e por isso o laboratório iniciou sua comercialização pelo preço de R$ 590, pago pela leitora? Com base nas declarações dela ainda podemos perguntar: para que serviu a decisão da Anvisa sobre o preço da vacina se o mercado não a respeita? A matéria citada diz que ‘o Gardasil poderá ser vendido ao público em clínicas de imunização e comercializado por distribuidores de vacinas, ao preço estabelecido pelo governo’. Mas, pelo visto, não é isso que está acontecendo.

No caso, a leitora pagou pela dose inicial da vacina um preço quase duas vezes maior que o anunciado pela reportagem. Ela agora pede respostas, quer saber como ficará a situação quando for tomar a próxima dose. Ela já poderia até saber se a reportagem tivesse apurado onde o cidadão pode encontrar a vacina e a que preço. A própria Agência poderia ter visto que são citados vários preços diferentes para a vacina ao longo de sua cobertura e essa informação faz toda a diferença para quem tem que pagar pela imunização.

As informações dadas pelas fontes oficiais precisam ser conferidas e confrontadas com a realidade. O preço desse medicamento não é um número qualquer, trata-se do valor pago pelo cidadão para obter uma imunização contra um vírus que pode ser fatal. Com a informação correta e precisa sobre o preço e o local onde encontrará a vacina, o cidadão decidirá se procura ou não esse tipo de proteção.

Em outras matérias há referências aos fatores que deveriam influir na determinação do preço da vacina estipulado pelo fabricante como os regulamentos do governo, as negociações entre o governo e o fabricante, os impostos cobrados. Mas a composição do preço final da vacina, a parte que cabe a cada elo na cadeia, não foi analisada em nenhuma das matérias – um gráfico informativo poderia ter facilitado a compreensão pelo leitor.

Há problemas também em outros números apresentados nas 12 matérias. São contradições sobre o número de mortes anuais causadas no Brasil por câncer de colo do útero: 4 mil, 5 mil ou 7 mil? A matéria publicada no último dia 6 de junho informa que no Brasil há 12 milhões de mulheres infectadas pelo vírus e que ocorrem 5 mil mortes anualmente, enquanto, no mundo, são diagnosticados a cada ano 20 mil casos desse tipo de câncer (colo de útero). Outra matéria, publicada em 3 de fevereiro, diz que a média anual, só no Brasil, é de 20 mil novos casos e 7 mil mortes. Na matéria publicada em 17 de setembro de 2006, sob o título ‘Vacina anti-HPV pode ser lançada nesta semana durante congresso em Santos’, a informação é: ‘Estima-se que mais de 685 mil casos de HPV sejam registrados no Brasil a cada ano. Dados do Instituto Nacional do Câncer (Inca) informam que cerca de 18 mil novos casos de câncer uterino são registrados no país anualmente e que cerca de 4 mil mulheres morrem por ano’.

Deixando de lado essa divergência de números, que compromete a credibilidade da informação, a cobertura da Agência consegue refletir o debate institucional sobre a questão. Por meio dela podemos saber o que pensam os especialistas, as autoridades governamentais, os parlamentares e os empresários. Só não conseguimos saber o que pensa o cidadão, a mulher infectada, o adolescente portador ou não do vírus, mas que corre o risco permanente de contaminação, familiares das quatro, cinco ou sete mil vítimas que falecem anualmente.

Faltou às matérias mostrarem que não estão falando de números abstratos, mas de seres humanos que estão padecendo de uma doença, um problema de saúde pública. É uma epidemia? O que representa o fato de a doença atingir 12 milhões de brasileiros neste momento? Como a doença chegou a esse número de infectados? Como a sociedade pode participar desse debate, em que se discute se o governo deve ou não disponibilizar gratuitamente uma vacina? E as outras formas do vírus HPV contra as quais a vacina não imuniza? O que está sendo feito para combatê-las?

Quais as políticas públicas e os direitos do cidadão que estão em jogo quando um laboratório particular desenvolve uma tecnologia, incorpora um conhecimento universal e depois vende a solução para um problema de saúde pública? Essas e muitas outras questões poderiam ter sido contempladas nas matérias da Agência.

O fato é que o impacto de um depoimento do leitor sobre uma realidade retratada somente com base em fontes oficiais pode mostrar o quanto uma cobertura está distante do cotidiano do cidadão. O jornalismo com foco no cidadão não significa olhar o cidadão como se ele fosse uma cifra citada num discurso ou um alvo passivo de políticas e programas do governo. Cada cidadão é único e tem sua compreensão da realidade diferentemente do que possam pensar políticos, especialistas e jornalistas. O grande desafio é revelar o ponto de vista desse ser humano que vivência os problemas e incorporá-lo ao debate público na busca de soluções. O foco no cidadão significa exatamente tratá-lo também como protagonista da história e não somente as personalidades de plantão.

Até a próxima semana.’