Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Plínio Bortolotti

‘É difícil, mesmo para quem tem a obrigação de criticar o jornal, como é o caso do ombudsman, ler todas as edições da primeira à última linha. Algumas matérias, mesmo com assuntos importantes, terminam escapando à atenção, principalmente quando editadas sem o destaque merecido. Foi o que aconteceu com a notícia sob o título ‘Movimento realiza protesto’, publicada no dia 27 de julho. Não havia atentado para ela até segunda-feira, quando recebi o boletim do Sindicato dos Jornalistas informando que o repórter fotográfico do O Povo, Mauri Melo, havia sido agredido por seguranças da Companhia Energética do Ceará (Coelce) quando cobria manifestação do Movimento dos Atingidos por Barragem, protestando contra o preço das tarifas da empresa, por eles consideradas excessivas.

Como não me lembrava de ter lido a informação no jornal, voltei às edições passadas. Encontrei a matéria sobre o protesto editada como a menos importante da página 8, na editoria Fortaleza. O relato da agressão a Mauri Melo foi descrita no fim do segundo parágrafo, depois de 28 linhas de texto, da seguinte maneira: ‘Quando fotografava a ação dos seguranças contra os manifestantes, o repórter fotográfico do O Povo, Mauri Melo, foi agredido. Durante o tumulto, ele teve os óculos quebrados’.

Falei com Mauri Melo; perguntei-lhe sobre o ocorrido. Ele disse que os manifestantes saíram em passeata do Ginásio Aécio de Borba (Benfica), dirigindo-se à sede da companhia, na avenida Barão do Rio Branco (Dionísio Torres). Segundo Mauri, os manifestantes (cerca de 500 pessoas) encontraram aberto o portão da sede da empresa; entravam em seu pátio quando os seguranças tentaram contê-los, sem violência. Especificamente sobre a agressão sofrida por ele, o repórter assim a descreve: ‘O segurança me deu uma `mãozada´ e tentou puxar minha máquina (fotográfica), enquanto o chefe dele me segurava por trás; eu protegi o equipamento, o tapa quebrou os meus óculos. Se os manifestantes não tivessem me protegido, eles teriam batido mais’. Com 62 anos de idade, 34 deles dedicados ao O Povo, o instinto profissional de Mauri falou mais alto: ele protegeu o equipamento (de propriedade do jornal) e deixou o rosto exposto. (O chefe de segurança da Coelce, citado por Mauri, é Sérgio Lima, coronel reformado da Polícia Militar.)

Além da falta de destaque ao assunto, o jornal deixou de relatá-lo corretamente. O texto sugere que a agressão partiu de seguranças da Coelce, sem deixar isso claro o bastante. Também não foi ‘durante o tumulto’ que os óculos de Mauri foram quebrados: ele foi agredido com violência pelos seguranças da empresa, levou um tapa no rosto, tentaram impedi-lo de trabalhar – uma afronta à liberdade de imprensa – e teria sofrido violência maior se não o socorressem.

Falei com a gerente de Comunicação da Coelce, Conceição Rodrigues. Ela disse que a empresa limitaria seu pronunciamento à nota oficial, anteriormente divulgada. No comunicado, a empresa faz estas anotações: ‘(A Companhia Energética do Ceará) respeita, acima de tudo, a liberdade de imprensa e o acesso de todos à informação, reconhecendo o papel fundamental da imprensa dentro da sociedade. (…) Por pautar-se nesses referenciais e também ser comprometida com a ética, a Coelce lamenta profundamente o mal-entendido (…) durante a invasão de nossa sede pelo Movimento dos Atingidos por Barragens, envolvendo o repórter Mauri Melo. (…) Esclarecemos que, em momento algum, houve intenção de impedir o livre exercício de sua função de jornalista e de sua tarefa de informar os acontecimentos’.

Primeiro, não houve ‘mal-entendido’ – o fato é que o jornalista foi agredido por funcionários da empresa. Depois, é justo admitir que não existe registro de que a Coelce tenha, alguma vez, utilizado da truculência física para impedir o trabalho jornalístico. Portanto, não custava à empresa reconhecer a agressão cometida por seus seguranças – testemunhada por dezenas de pessoas – e, em acordo com princípios divulgados em seu comunicado, comprometer-se a apurar os fatos e advertir os funcionários que exorbitaram de suas funções. Além da agressão, parece ter havido desídia por parte da segurança: é difícil supor que os agricultores fossem arrombar os portões se estes fossem fechados com a aproximação dos manifestantes.

Quanto ao O Povo, o que se poderia esperar seria a defesa apropriada de seu profissional. No mínimo, informando corretamente e interpelando, ao modo jornalístico, a Coelce, para que ela se explicasse. Se o jornal quer aqueles que oferecem o melhor de seu trabalho, como é o caso de Mauri, o mínimo a fazer é dar a eles a certeza de uma retaguarda segura quando enfrentarem problemas advindos do ofício.

O diretor geral de jornalismo, Arlen Medina, entende que O Povo tomou a atitude correta no caso: ‘O jornal informou o fato (invasão à sede da Coelce por parte dos manifestantes). A matéria foi publicada com foto. Os jornalistas estavam acompanhando essa manifestação desde o início, quando o repórter fotográfico Mauri Melo sofreu a lamentável e inexplicada agressão física por parte dos seguranças da empresa. A matéria registrou isso. O Povo lamenta que um de seus profissionais, com mais de três décadas aqui trabalhando, tenha sido agredido durante o cumprimento de suas atividades. Assim que soube do ocorrido, o jornal pediu providências à Coelce para ampará-lo e ressarci-lo do dano material sofrido. A empresa se comprometeu a fazê-lo’.

Mas, há que pôr a mão na consciência para se refletir severamente: se a violência contra o jornalista houvesse partido dos trabalhadores rurais, e não de uma empresa poderosa, o fato seria descrito do mesmo modo, e teria sido divulgado de forma tão discreta?

Feitas as críticas, por dever de justiça, é preciso considerar o histórico do jornal, e este mostra que ele se põe ao lado dos jornalistas quando estes estão em perigo. O destaque ao assunto nesta coluna pretende ser um alerta, de forma a contribuir para afastar o risco de uma exceção tornar-se regra.’