Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Plínio Bortolotti

‘Em O Mundo Assombrado pelos Demônios, Carl Sagan faz uma defesa emocionante da ciência, em um momento em que ele via o obscurantismo e a superstição ganharem precedência em mentes sugestionáveis e suscetíveis a qualquer impostura. Sagan começa por repelir vigorosamente aqueles que negam a objetividade científica: ‘A objetividade é sacrificada em nome de objetivos mais elevados. Com base nesse fato lamentável, alguns chegaram ao ponto de concluir que não existe história, que não há possibilidade de reconstruir os acontecimentos reais; que tudo o que temos são autojustificativas tendenciosas; e que essa conclusão se estende da história para todo o conhecimento, inclusive para a ciência. Entretanto, quem negaria a existência de seqüências verdadeiras de eventos históricos, com linhas causais reais, mesmo que nossa capacidade de reconstruí-las em todo o seu entrelaçamento seja limitada, mesmo que o sinal se perca num oceano de ruído autoelogioso? O perigo da subjetividade e do preconceito tem sido perceptível desde o começo da história. Tucídides alertou contra esse perigo. Cícero escreveu: ‘A primeira lei é que o historiador jamais deve se atrever a registrar o que é falso; a segunda, que jamais deve se atrever a ocultar a verdade; a terceira, que não deve haver suspeita de favoritismo ou preconceito em sua obra.’’ (Págs. 251 e 252, edição de 1996, Companhia das Letras.)

Sagan combate os mistificadores, que se opõem à ciência em nome de um certo relativismo, que iguala o valor de um estudo e experiência rigorosos à arenga das explicações mágicas para os fenômenos naturais. Mas poderíamos estender crítica equivalente àqueles que, a pretexto de criticar os meios de comunicação, fazem um ataque generalizado e condenatório à imprensa, como se fosse algo a ser erradicado – em lugar de aperfeiçoado. Não faltam os oportunistas afirmando, também genericamente – como se a imprensa fosse una e indivisível -, que a ‘mídia’ é partidarizada e subordinada a interesses econômicos (quando não simplesmente escusos). E, golpe final e irrespondível: que a precisão, a objetividade e a veracidade seriam impossíveis, pois jornalistas, como todos os humanos, são seres subjetivos por natureza, por isso todos os textos estariam ‘contaminados’ desde o princípio. Chamo novamente o socorro de Sagan: ‘Que área do empreendimento humano não é moralmente ambígua? Até as instituições populares que pretendem nos dar conselhos sobre comportamento e ética parecem carregadas de contradições.’ (pág. 285). Mas, justamente, por isso, diz ele, o cientista tem de se apegar rigorosamente aos procedimentos de seu ofício: ‘A credibilidade é conseqüência do método’ (pág. 184), escreve.

Transferindo a lição da Sagan para o jornalismo, poderíamos dizer o seguinte: a verdade e a objetividade, não estão no terreno da ética, mas do conhecimento, e são resultado da aplicação intransigente do método. Este serve, justamente, para ajudar a conter os preconceitos e a subjetividade, próprias de todas as pessoas. Ou, como dizem Bill Kovach e Tom Rosenstiel em Os Elementos do Jornalismo: o método tem de ser objetivo; não o jornalista. Muitos dirão que é difícil alcançar a verdade e a objetividade. De fato. Mas é uma luta da qual jornalista não pode abdicar.

DETECTOR DE MENTIRAS

No livro, Sagan diz que os cientistas são equipados com um ‘kit de detecção de mentiras’, que poderia servir aos jornalistas. De maneira resumida e adaptada, o kit tem os seguintes elementos: 1) sempre que possível, deve haver confirmação independente dos fatos; 2) devemos estimular o debate substantivo sobre as evidências do qual participarão notórios partidários de todos os pontos de vista; 3) os argumentos de autoridade têm pouca importância – as ‘autoridades’ cometeram erros no passado e voltarão a cometê-los no futuro; 4) devemos considerar mais de uma hipótese; 5) se alguma coisa deve ser explicada, é preciso pensar em todas as maneiras diferentes pelas quais poderia (grifo no original) ser explicada; 6) devemos tentar não ficar demasiados ligados a uma hipótese, só por ser nossa; 6) devemos nos perguntar por que a idéia nos agrada, comparando-a imparcialmente com as alternativas; 7) devemos quantificar: se o que estiver sendo explicado é passível de medição, de ser relacionado a alguma quantidade numérica, seremos muito mais capazes de discriminar entre as hipóteses concorrentes. O que é vago e qualitativo é suscetível de muitas explicações; 8) se há uma cadeia de argumentos, todos (grifo no original) os elos na cadeia devem funcionar (inclusive a premissa) – e não apenas a maioria deles.

O método jornalístico é parecido: planejar, pesquisar, apurar com rigor, ouvir as várias versões, avaliar com honestidade, depurar, hierarquizar de acordo com a importância, escrever com independência. Sagan conclui o seu ‘kit’, escrevendo: ‘Os céticos inveterados devem ter a oportunidade de seguir o nosso raciocínio, copiar os nossos experimentos e ver se chegam ao mesmo resultado.’ Também o leitor, se quiser refazer os passos do jornalista, o caminho apontado pelo texto deverá levá-lo ao início da meada. Aceitam-se argumentos afirmando que jornalistas nem sempre agem assim; que o método nem sempre é aplicado corretamente ou que o jornalismo está longe do patamar ideal. Mas, quantas instituições poderíamos considerá-las perfeitas?

OBSERVAÇÕES

1) Jornalismo não é ciência, mas, a meu ver, depende de método equivalente; 2) por dever à verdade informo: os jornalistas não ficam muito bem no livro de Carl Sagan; em um dos capítulos, para mostrar como é fácil sugestionar as pessoas, ele conta como o mágico americano James Randi enganou, em 1988, vários jornais dos Estados Unidos e da Austrália – como também centenas de crédulos – treinando um jovem artista para se apresentar como sensitivo, capaz de operar milagres. (Se os jornais, na ocasião, tivessem usado o ‘kit detector de mentiras’ não teriam caído no conto); 3) Espero que não se considere presunçoso o título da coluna.’