Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Plínio Bortolotti

‘A cada vez que emerge o debate em torno do papel dos meios de comunicação, observa-se um comportamento regular da mídia: a ansiedade em afastar rapidamente o tema incômodo e o massacre sobre os argumentos contrários à sua tese. Foi assim na polêmica sobre o Conselho Federal de Jornalismo, assim é quanto à classificação etária aos programas de TV e, neste momento, com o projeto do governo federal de construir uma rede nacional de televisão. Goste-se ou não da iniciativa ou da forma como ela se apresenta, o debate começa mal, com alguns jornais pespegando-lhe o carimbo de ‘TV Lula’. Ou seja, em vez de perscrutar, esclarecer, polemizar ou mesmo criticar a iniciativa, opta-se por passar o trator por sobre as idéias – as boas e as más, nivelando-as.

Se isso pode ser visto empiricamente, o estudo ‘Mídia e Política Pública de Comunicação’, da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi), divulgado recentemente, quantifica e qualifica de modo científico a forma como os meios de comunicação tratam os temas que lhe dizem respeito diretamente. A Andi analisou – entre os anos 2003 e 2005 – 53 jornais (de todos os estados brasileiros) e as quatro maiores revistas semanais. Foram vistos 1.184 textos jornalísticos com temas relacionados ao assunto. Revelou-se o seguinte: os jornais publicam 0,19 texto diariamente sobre o tema. Isto é, a cada cinco dias, os diários publicam um artigo, coluna, editorial, entrevista ou matéria sobre o tema. Quanto às revistas, a média é de 0,43 texto/semana ou praticamente um a cada 15 dias. Se for retirada a Carta Capital, com maior destaque à cobertura das políticas de comunicação, essa média cai para um texto ao mês.

Além do pouco destaque, o estudo mostra que a mídia brasileira fala de si mesma seletivamente, deixando de lado os temas que lhe são desconfortáveis. Os grupos que detêm a chamada ‘propriedade cruzada’ – donos de tevês, rádios, jornais, revistas, portais na internet simultaneamente ­-, são mais refratários a abordar temas relativos às políticas públicas de comunicação, comparando-se aos de perfil oposto. Jornais ou revistas cujas empresas também são proprietárias de estações de televisão, respondem por 1,47% do material publicado, em média. Os que estão em grupos proprietários concessões de rádio são responsáveis, cada um, por 1,61% (em média). Já os que não possuem nem rádio nem televisão contribuem, em média, com 6,2% da cobertura. Ou seja, os jornais têm dificuldade em cobrir criticamente assuntos relativos às outras empresas do grupo do qual fazem parte. Os periódicos que mantêm relação de proximidade com grupos políticos teriam a mesma dificuldade. O estudo revela que a maior parte da cobertura sobre o assunto está concentrada nos jornais de influência nacional, sendo bem menor no Nordeste: ‘Um dos fatores que possivelmente explicam este cenário diz respeito à elevada vinculação dos diários da região com grupos políticos locais – limitando, assim, o interesse dos proprietários por esse tipo de discussão’.

Perguntas e respostas

A pesquisa procurou responder perguntas assim: ‘Como a mídia, um dos guardiões da democracia, guarda a si mesma?’ ‘Como o jornalismo, que contribui para o controle social das políticas públicas e para o agendamento dos temas que obtêm destaque na sociedade, se comporta quando a mídia passa a ser o centro das atenções?’ ‘Em outras palavras, como os guardiões guardam a si mesmos?’

A resposta que surge, como se viu, apresenta um quadro negativo para os meios de comunicação. Mas é preciso ressaltar fortemente que o estudo da Andi não reproduz o discurso duvidoso, difundido em alguns setores, demonizando a imprensa como um mal em si. Ao contrário, parte do pressuposto que os meios de comunicação (públicos, privados e estatais) são inerentes à democracia, imprescindíveis à construção da cidadania, por isso pugna pela sua liberdade e combate em favor de sua diversidade. Ao mesmo tempo advoga que a mídia, como um ‘ator relevante para a sociedade contemporânea’, tem o dever de prestar contas à sociedade e de se submeter ao seu controle democrático.

Controle

É importante ressaltar que o debate sobre a atividade jornalística e dos meios de comunicação é um assunto universal, preocupando especialistas, governos e a sociedade civil em todo o mundo, justamente por seu papel decisivo nas democracias modernas. Não é um assunto, portanto, como querem fazer crer alguns, de meia dúzia de acadêmicos desocupados ou de uma esquerda que não tolera a ‘imprensa capitalista’ e, por isso, quer garroteá-la com iniciativas exóticas.

Em janeiro deste ano, o Conselho de Ministros da Europa – instância decisória máxima do Conselho da Europa, composto pelos Ministros de Relações Exteriores de todos os Estados membros da União Européia – divulgou uma declaração e duas recomendações relativas às políticas públicas de comunicação. A Declaração reforça a necessidade de proteger o papel dos meios de comunicação nas democracias e alerta para o contexto de concentração da propriedade que vem se verificando. As recomendações ressaltam a necessidade de promover o pluralismo e a diversidade nos conteúdos midiáticos e a centralidade da mídia pública na sociedade da informação.

O controle democrático e a pluralidade da mídia, com regulamentação e/ou com uma poderosa rede pública comunicação, como é o caso da BBC no Reino Unido, é prática corrente nos países mais democráticos do planeta. Nos Estados Unidos proíbe-se a propriedade cruzada; na Alemanha, controla-se a audiência das TVs (se uma emissora alcança 30% da audiência, por exemplo, não poderá ter novas licenças); na Holanda o sistema é inteiramente público; no Chile, um conselho de personalidades indicadas pelo presidente da República e aprovado pelo Senado é encarregado de fiscalizar os programas de TV, de conceder e cassar concessões; muitos países restringem fortemente a propaganda dirigida às crianças; a Suécia simplesmente a baniu da TV em 2004.

(Este texto teve como referência a pesquisa da Andi, porém, os comentários são de responsabilidade deste ombudsman. O estudo é longo, tem 226 páginas, mas é escrito de modo claro e agradável. Pode ser lido na íntegra aqui).’